ZINALDO A. SANTOS

Que instituição gerenciada por homens não viveu momentos de tensão e crise? Com a Igreja não é diferente. Instituída por Deus, e por Ele dirigida num plano cósmico, conta com a participação humana na administração dos seus negócios em sua trajetória terrestre. E, não raro, lhe imprimimos a marca da nossa limitação, gerando crises. Foi assim desde os dias de Moisés, como líder do povo de Deus. A Igreja apostólica também viveu momentos críticos, após a ascensão de Jesus Cristo. Crises eclodiram em Jerusalém (Atos 10; 11:1-18), Antioquia (Atos 15:1-32; Gál. 2:1 1-14), Filipos (Fil. 3 e 4), além daquelas verificadas na igreja de Corinto.

O adventismo não fugiu à regra. E é sempre bom lembrar que a existência de uma situação crítica não desautoriza a Igreja nem deve ser motivo de escândalo. Nas crises do passado, Deus em momento algum abandonou o Seu povo. Como disse alguém, “Deus não está em crise, mas está sempre presente na crise”, ajudando, fortalecendo, possibilitando uma nova visão da debilidade humana e da fortaleza que Ele é. Presente nas crises do Seu povo, o Senhor lhe concede uma rica experiência de dependência dEle e da sabedoria do Espírito. O importante é que a Igreja, nos momentos de tensão, seja submissa à vontade e direção divinas para encontrar saídas e soluções acertadas, prosseguindo para a vitória final no cumprimento da sua missão.

O Pastor Luiz Nunes, num estudo comparativo das crises enfrentadas pela Igreja Apostólica e pela Igreja Adventista, tira lições dignas de profunda reflexão. Esse estudo é, na verdade, sua tese doutorai, defendida em maio do ano passado, no Seminário Adventista Latino-americano de Teologia do Instituto Adventista de Ensino.

Depois de trabalhar como pastor distrital e evangelista (1975-1987), nas Regiões Nordeste e Norte do Brasil, desde 1988 o Pastor Nunes serve como professor do Seminário teológico do Instituto Adventista de Ensino do Nordeste. De lá, compartilhou suas conclusões na entrevista que segue:

Ministério: O que representou ser o primeiro pastor a concluir o curso no programa doutorai aqui do Brasil?

Dr. Luiz Nunes: Para mim, foi um duplo sentimento: primeiro, de gratidão e reconhecimento a Deus: pois, sem nenhuma dúvida, esta experiência foi um privilégio que Ele me concedeu. Essa expressão de gratidão e reconhecimento também inclui pessoas que estiveram me ajudando diretamente, como foi o caso da minha esposa e do Dr. Alberto R. Timm. O segundo sentimento é o de realização pessoal. Usufruí a satisfação de concretizar um sonho.

Ministério: Qual foi o tema da tese que o senhor defendeu para a conclusão do curso?

Dr. Nunes: A tese está fundamentada em uma análise comparativa entre crises similares da Igreja Apostólica e da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Então demonstramos a maneira como essas crises afetaram o desempenho missiológico da Igreja respectivamente em ambos os períodos.

Ministério: Qual o motivo que o levou a escolher esse tema?

Dr. Nunes: Toda a minha juventude e vida adulta, dentro da Igreja Adventista, foram dedicadas à evangelização. Tive o privilégio de trabalhar como obreiro bíblico, antes de cursar Teologia: posteriormente fui pastor distrital e evangelista. Em 1988, vim para o Iaene como professor de Evangelismo Público. De modo que dediquei quase toda a minha vida ministerial a este propósito. Então imaginei que, nesta fase final, poderia oferecer à Igreja uma reflexão que pudesse contribuir, de alguma forma, para o cumprimento da missão. Essa foi a motivação que encontrei.

Ministério: Como se desenvolveu a estratégia da pesquisa? Foi fácil conseguir os dados?

Dr. Nunes: A estratégia consistiu em analisar e comparar os dados históricos e teológicos da História da Igreja Cristã Apostólica e da História da Igreja Adventista do Sétimo Dia, referentes às crises estudadas. As informações necessárias foram encontradas na biblioteca do Instituto Adventista de Ensino, campus central, no Centro de Pesquisa Ellen G. White e na biblioteca particular do Dr. Alberto R. Timm. Não encontrei grandes dificuldades neste particular.

Ministério: Quais as principais crises que o senhor identificou na Igreja Apostólica?

Dr. Nunes: Para se fazer uma análise comparativa de dois momentos históricos que estavam separados por aproximadamente 1.800 anos, foi necessário que as crises desses dois períodos tivessem uma relação de similaridade. Por isso as crises escolhidas foram as seguintes: crise de decepção, missiológica, soteriológica, de autoridade e crise escatológica.

Ministério: Poderia dar uma visão um pouco mais amplificada dessas crises?

Dr. Nunes: Como já disse, há entre as crises vivenciadas nos dois períodos (Igreja Apostólica e Igreja Adventista do Sétimo Dia), uma relação de igualdade: na natureza básica das crises, na causa comum a todas elas, a perspectiva conceituai errônea e na tendência fragmentária do corpo eclesiástico. A semelhança de natureza das decepções apostólica e milerita é salientada por Ellen G. White, ao dizer que “o desapontamento dos discípulos bem representa o desapontamento daqueles que esperavam o seu Senhor em 1844” (Spiritual Gifts, pág. 149). O mal entendimento das profecias messiânicas, entre os primeiros cristãos, e do significado da palavra santuário, entre os mileritas, causou respectivamente as decepções apostólica e milerita. A diferença das crises de decepção se deveu ao grau de intensidade do desapontamento, uma vez que a decepção apostólica foi mais dramática do que a milerita, pelos elementos históricos envolvidos antes e depois do evento. Apesar de mais dramática, a crise apostólica foi mais curta e a fragmentação mais passageira. Enquanto a decepção milerita foi mais longa, causando uma fragmentação permanente e definitiva, levando o movimento a diferentes ramificações. A suplantação da crise na Igreja Apostólica evidenciou-se pela sua unidade e eficiente evangelização realizada em Jerusalém pelos primeiros cristãos. Já a tendência separatista dos círculos ex-mileritas foi vista por Ellen White, como causa fundamental das dificuldades missiológicas das diversas facções que surgiram do movimento. Cada crise analisada comparativamente entre os primeiros cristãos e os adventistas do sétimo dia seguiu muito de perto esse padrão.

Ministério: Como o senhor pessoalmente avalia a natureza dessas crises; como as conceitua?

Dr. Nunes: As crises são simultaneamente momentos de oportunidade e de tensão entre elementos antagônicos, cujo desenrolar tem uma influência missiológica. A suplantação da crise pode ter uma conseqüência negativa ou positiva sobre a teologia e sobre a missão, dependendo da maneira como ela seja administrada por aqueles que são seus responsáveis mais diretos. As crises analisadas tinham, inicialmente, uma natureza teológica, com conseqüências missiológicas que ocorreram dentro de um arcabouço histórico bem delineado.

Ministério: Quais foram as implicações práticas dessas crises na vida da Igreja?

Dr. Nunes: As crises ameaçaram o conteúdo da mensagem que deveria ser pregada, ou o próprio desempenho da missão. Isso em virtude da tendência desagregadora que cada uma delas possuía. Devemos ressaltar, no entanto, que as crises não possuem, apenas, um sentido negativo. Elas também são instrumentos que o Senhor pode usar para fazer despertar Seu povo da letargia na qual, porventura, se encontre.

Ministério: Exemplifique como a missiologia foi prejudicada pelas crises enfrentadas.

Dr. Nunes: Nos dias apostólicos, a missão foi prejudicada por cerca de dez anos em virtude do preconceito dos primeiros apóstolos. Como judeus, eles entendiam eleição como favoritismo, e sua missão era exclusiva para o povo judeu. Foi necessária a visão especial dada a Pedro para que esse apóstolo perdesse seus preconceitos e evangelizasse Cornélio Pelo mesmo motivo Deus permitiu as perseguições judaica e romana, para tirar os primeiros cristãos de Jerusalém, a fim de que eles evangelizassem o mundo. Mesmo assim, encontramos Pedro, depois do Concílio de Jerusalém, alimentando preconceitos, conforme relato da carta aos gálatas. A primeira iniciativa espontânea de evangelização de gentios por judeus ocorre em

Atos 11:19 e 20, aproximadamente dez anos depois do Pentecostes. Na Igreja Adventista do Sétimo Dia, devido à teoria da porta fechada, advogada pela maioria dos egressos do milerismo, a missão foi prejudicada por cerca de 50 anos. A Igreja somente vislumbrou países não cristãos, como alvo de sua missão, no fim do século 19 e começo do século 20; portanto, quase cinco décadas após seu início profético em 1844 – O mesmo se pode dizer da crise soteriológica de 1888, quando Ellen White declarou que a falta de harmonia interna tinha prejudicado o objetivo missiológico de Deus para com Seu povo (RH, 22/11/1892). O objetivo era que. sob a luz da mensagem de justificação pela fé, o povo adventista evangelizasse o mundo e Cristo voltasse então. Isso não foi possível naqueles dias, mas é nosso desafio hoje, como indivíduos e como Igreja.

Ministério: De que maneira as crises foram administradas e solucionadas?

Dr. Nunes: Na Igreja Apostólica, especificamente, as crises foram quase todas tratadas de forma apropriada, com exceção da crise missiológica. Para que ela fosse suplantada de maneira positiva, foi necessário desarraigar os preconceitos existentes entre os primeiros cristãos, devido à sua origem judaica. Esses preconceitos foram originados, como já mencionei, em uma compreensão errônea da idéia de eleição, entendida como favoritismo. Esse paradigma passou aos apóstolos e aos primeiros membros da Igreja Apostólica na Palestina, por serem todos eles judeus. Já na Igreja Adventista do Sétimo Dia, não se pode dizer o mesmo. As crises tiveram soluções tardias, ou foram evitadas pela manipulação da autoridade com base em conceitos equivocados como por exemplo, a função da Lei no livro de Gálatas. Há outras que ainda estão sendo vivenciadas com certa dificuldade, como a discussão em torno da natureza humana de Cristo, as diversas linhas soteriológicas na década de 90, a crise de autoridade e a escatológica. Louis Were, por exemplo, viveu na década de 50 e advogava que o Armagedom era um conflito sobrenatural, cósmico e universal, enquanto a posição tradicional da maioria dos adventistas era que se tratava de uma guerra localizada no Oriente Médio, ponto de vista este ensinado por décadas, principalmente por Uriah Smith, que identificou o secamento do rio Eufrates como a destruição da Turquia. Esse acontecimento antecedería a grande batalha final do Armagedom, nas proximidades de Jerusalém, e culminaria com o segundo advento. Tentando resolver a questão, W. H. Branson, então presidente mundial da Igreja, convocou uma conferência bíblica, em 1952, quando confirmou a posição histórica dos adventistas do sétimo dia, popularizada por Uriah Smith, silenciando assim Louis Were. Apesar de toda oposição, a linha profética de Were tornou-se eventualmente a mais aceita nos círculos adventistas. Mais uma vez o uso da autoridade prejudicou a Igreja numa compreensão mais clara da verdade profética, que sempre foi uma de suas mais relevantes motivações missiológicas. Com o passar dos anos, a posição de Uriah Smith tende a desaparecer, pois careceu de base histórica. A Turquia foi vencida na guerra e não houve nenhum confronto mundial, no Oriente Médio, por causa desse fato.

Ministério: Há paralelo com a Igreja Apostólica, nesse sentido?

Dr. Nunes: Seja qual for o tipo de crise, é preciso administrá-lo com espírito de oração, humilde busca de sabedoria, submissão a Deus e firmeza para enfrentar heresias. A má condução de um processo de crise tem causado retardamento no cumprimento da missão.

Ministério: A existência de crises compromete a autenticidade de um movimento religioso, de sua mensagem?

Dr. Nunes: Como já afirmei anteriormente, muitas vezes a crise é a forma de Deus reconduzir Seu povo ao caminho certo, se esse povo coloca-se sob Sua orientação. Gostaria de compartilhar uma declaração de Ellen G. White, segundo a qual “o fato de não haver controvérsias ou agitações entre o povo de Deus, não devia ser olhado como prova concludente de que eles estão mantendo com firmeza a sã doutrina… Deus despertará Seu povo; se outros meios falharem, introduzir-se-ão entre eles heresias, as quais os hão de peneirar, separando a palha do trigo”. Isso está na 5ª edição do livro Testemunhos Seletos. volume dois, páginas 311 e 312. Nenhuma das crises analisadas comprometeu de forma definitiva a autenticidade do movimento adventista. Deus sempre esteve, como está e estará com Sua mão ao leme.

Ministério: Que lições o senhor gostaria de partilhar com os leitores, depois das conclusões a que chegou em seus estudos?

Dr. Nunes: Vivemos num aprendizado constante. De tudo isso, podemos concluir que necessitamos nos afastar de dois extremos: o primeiro diz respeito à tendência ufanista que não percebe a realidade dos fatos históricos. Precisamos encará-los com humildade e naturalidade. O segundo extremo é o da crítica destrutiva, que tem prazer em identificar erros, mas não apresenta soluções. Ou porque não as tem mesmo, ou porque a crítica é feita por motivos absolutamente censuráveis. Apesar das circunstâncias vividas pela Igreja, em sua trajetória no mundo, serem bastante difíceis, não se pode deixar de ter em mente duas verdades paralelas: uma advertência e uma esperança, que de fato são uma certeza. Em primeiro lugar, Deus não está limitado pela dependência interminável da vontade do povo remanescente em realizar Sua missão final na Terra. Nosso Senhor tem planos alternativos. No livro Mensagens Escolhidas, volume um, à página 118, Ellen White afirma que “Deus empregará instrumentos cuja origem o homem será incapaz de discernir; os anjos farão uma obra que os homens poderiam haver tido a bênção de realizar”. Por outro lado, no livro Evangelismo, página 692, ela igualmente declara que “a verdade há de em breve triunfar gloriosamente, e todos quantos agora escolhem ser cooperadores de Deus, com ela triunfarão”.