Ron Flowers
Pastor de igreja por muitos anos e atualmente vice-diretor do Serviço Lar e Família da Associação Geral dos ASD.
Eu estava pregando o oitavo de uma série de dez sermões so-bre a lei de Deus. Tinha apresentado o que julgava ser alguns pontos apropriados ao definir o preceito: “Não furtarás.” Entre outras coisas, furtar é deixar de pagar as dívidas, despojar alguém de sua boa reputação pela calúnia ou bisbilhotice e aproveitar-se injustamente da necessidade alheia. Mencionei também que o encobrimento de defeitos e a falsa descrição da qualidade também é uma espécie de furto. (Tenho certeza de que não salientei isso naquela ocasião, mas ao ponderar sobre o assunto posso ver que esse encobrimento dos defeitos também se aplica às pessoas quando fingem ser o que não são!)
Continuando, senti a impressão de que devia partilhar uma experiência que até aquele momento era desconhecida a todos os outros de minha família e congregação. Era algo muito pessoal. A princípio, resisti ao próprio pensamento de partilhá-lo. Pois não somente estavam presentes minha esposa e meus filhos, mas minha mãe estava visitando nossa igreja! O que ela e todos os outros pensariam de mim? Finalmente, porém, no momento apropriado, decidi contar a experiência. Todo o santuário ficou ainda mais silencioso do que de costume quando revelei um episódio muito doloroso e pessoal de minha própria vida.
Nos anos de minha experiência pastoral, levantei-me centenas de vezes para pregar. Muitas dessas ocorrências do passado desapareceram de minha memória, mas algumas ocasiões de pregação serão sempre desdobradas com alegria e gratidão nos recessos de minha faculdade retentiva, pois nessas ocasiões, no próprio ato da pregação, ocorreu algo significativo dentro de mim bem como em minha congregação. Um desses casos foi o ato de partilhar com meu povo essa experiência muito pessoal. Em retrospecto, considero-o um ponto decisivo em minha obra no púlpito e no meu ministério em sua totalidade. Foi uma linha divisória de águas, pois dela têm manado caudais de bênçãos. Constituiu um novo enfoque em meu ministério.
Falei de um tempo durante os anos no curso secundário em que furtei uma peça necessária para o meu carro. Segundo a classificação dos pecados pelos homens, suponho que não fora um grande pecado, mas ele me perturbou por diversos anos. A lembrança desse pecado afligiu-me durante o tempo no colégio, acompanhou-me no seminário e
seguiu os passos de meu minis-tério. Às vezes, ele me apoquentava na reunião de oração ou em minhas devoções particulares. Durante as férias, na casa de meus pais, eu tinha de passar de vez em quando pelo local de meu furto, sentia intenso remorso, mas não conseguia enfrentar o revendedor de carros usados que eu havia prejudicado. Afinal de contas, eu era um pastor e a confissão seria agora bastante desagradável! Ademais, eu racionalizava que a peça que surripiei não valia tudo isso, e o próprio proprietário não se destacava pe-la honestidade. Não havia cobrado um preço excessivo pelo velho automóvel que impingira a meu pai?
Mas todo o verniz com que eu procurara cobrir a coisa nunca parecia suficientemente espesso. Finalmente, angustiado, pedi perdão a Deus pelo furto e por todos os pretextos que havia inventado para não endireitar as coisas. Na outra vez em que visitei meus pais, obriguei-me a ir ter com o homem e contar-lhe o que se passara, prontificando-me a pagar a peça. Ele ficou chocado e estupefato— não tanto por causa do furto, mas por eu ter vindo fazer a confissão! É escusado dizer que ele rejeitou minha proposta de pagamento. Senti um grande alívio quando saí de seu escritório. O terrível fardo havia desaparecido, e eu estava livre. Além disso, senti um estranho apego a esse homem que eu desprezara por tanto tempo. Foi penoso revelar isso para ele, mas valeu a pena. Seus olhos embaciados pelas lágrimas quando trocamos um aperto de mãos demonstravam-no.
Após o sermão, fiquei em pé na parte de trás do santuário, à medida que a congregação ia saindo. A reação foi surpreendente. Eles apertaram-me a mão e disseram que se identificavam comigo. Agradeceram reiteradas vezes esse relato de minha própria vida. Um casal que era novo na cidade e estava à procura de uma igreja, disse: “Sabemos agora qual a igreja que iremos freqüentar. O senhor é humano as-sim como nós.”
Em casa refleti bastante tempo sobre o que havia acontecido. Gostei da reação da congregação, pois eles também se haviam apoderado do perdão de seus peca-dos Como tinham visto que eu fizera com o perdão dos meus pecados. Naturalmente, fiquei contente porque o novo casal e seus filhos freqüentariam nossa igreja, mas confesso que não tinha muita certeza de que real-mente desejava ser tão “humano” como todos os outros. Afinal de contas, não devem os pastores ser exemplos aos cristãos “comuns”, de pessoas piedosas que vivem num mundo de pecadores, mas não pertencem a esse mundo?
Bem no íntimo de minha alma, comumente fora do alcance de minha própria percepção, estava o fato de que eu era tão humano como os outros, mas chegara lamentavelmente a crer e proceder como se um pastor em circunstância alguma devia revelar esse fato. “Se um homem tem fraquezas, receios e dúvidas, sendo na realidade um pecador em todo o sentido—perguntei a mim mesmo — como pode dirigir? Como pode falar a respeito da vida de retidão e estimular sua congregação a alcançar um nível espiritual mais elevado?” Desde a primeira compreensão do chamado divino, sempre almejei ser pastor e encontrar-me entre os melhores. Mas a busca do que eu considerava o ideal levara-me cada vez mais a fazer reservas dentro de mim. Ocultei aos outros capítulos inteiros de minha vida (um pastor não contaria isso!), muitas das experiências pessoais que eu estava tendo (a vida dos pastores é mais santa do que isso!), emoções de vasto alcance (os pastores não riem muito e certamente não ficam deprimidos!), dúvidas e receios (os pastores não as têm!). Exteriormente eu manifestava somente o que correspondia a minha imagem de um “bom” pas-tor. Como é natural, isso teve o seu preço. Havia um ar estagnado de artificialidade em meu ministério que impedia as pessoas de me conhecerem e (segundo vim a compreender mais tarde) impedia-me de conhecê-las devidamente.
Daquele momento espontâneo e quase involuntário de participação pessoal num sermão, começou a advir-me mais pro-funda compreensão do ministério pastoral. Não tinha certeza do que moldara minha atitude atual — se a cultura, o preparo, a teologia defeituosa ou apenas obstinada indiferença— mas tive de admitir que nunca havia partilhado com franqueza e sinceridade algo de minha própria peregrinação pessoal e daqueles recessos interiores. Cautelosa e timidamente, esforcei-me por descerrar minha própria vida e experiência em minha pregação e obra pessoal. Coisas importantes começaram a ocorrer. Senti-me melhor, e achei que estava me envolvendo mais profunda-mente com aqueles que procurava ajudar. Confiei-lhes minha verdadeira pessoa, e eles me aceitaram, manifestando-me amor! Como retribuição, amei-os mais ainda. Durante certo período de tempo, notei que aconteceu alguma coisa igualmente emocionante na vida de muitos em minha congregação. Percebendo que eu também tinha lutas, conflitos, sofrimentos e dúvidas na vida cristã, eles tornaram-se mais sinceros, francos e desembaraçados diante de mim, e mais à vontade consigo mesmos. Juntos confiamos na justiça de Cristo para nossa segurança pessoal, para nossa alegria e para nossas vitórias. Juntos penetramos em “águas mais profundas em nossas relações como igreja, abrindo-nos mais uns aos outros em pequenos grupos de companheirismo. Tivemos uma experiência similar na comunidade ao nosso redor. Nosso casamento e nossas relações familiares foram fortalecidos.
Não tenho dúvidas de que a Igreja é o meio de Deus para transmitir a verdade e a sã doutrina a um mundo caído. Com demasiada freqüência, porém, como ministros, definimos nosso papel como porta-vozes dessa verdade e sã doutrina, imbuídos da responsabilidade de informar os ignorantes e trazer isso continuamente à lembrança dos que supostamente já o sabem. Muitos pastores têm labutado varonilmente em sua tarefa, mas amiúde à custa de grande frustração e de não pouco senso de futilidade. A Igreja deve ser, porém, algo mais do que o veículo da verdade, por mais importante que isto se-ja; e o pastor deve ser algo mais do que um expositor da doutrina, por mais vital que isto seja. Há alguma coisa que é procurada por todo adorador e por todo membro de igreja — quer sejam oficiais e membros bem estabelecidos que freqüentem a igreja regularmente, ou pessoas perplexas, idosas, divorciadas, ou os jovens nas fímbrias da igreja. Os estudantes da conduta humana chamam essa ambicionada qualidade de intimidade. É outro termo para profundas relações pessoais.
Com demasiada freqüência, pensamos em intimidade apenas no contexto sexual. Para os ca-sais, ela tem essa dimensão, mas precisamos considerar também a intimidade como ser plenamente conhecido, plenamente aceito e plenamente amado — a intimidade de verdadeira amizade. Do princípio ao fim, a Palavra de Deus fala de relações interrompidas e do plano de Deus para restaurar a profunda relação pessoal entre Ele e a humanidade, e entre os próprios seres humanos. A igreja deve ser a família, o ninho, em que possa ser encontrada e experimentada tal espécie de intimidade. Creio que a igreja primitiva conhecia essa espécie de intimidade mútua e se achava, em grande parte, destituída dos tabus culturais que tantas vezes nos levam a usar de disfarces uns com os outros. A conveniência recomenda que nos contentemos com simples conhecimentos casuais, quando poderíamos desfrutar a cordialidade, o apoio e a animação de profundas relações de mútuo companheirismo.
O pastor ou pregador que de-seja tomar-se não somente um expositor da verdade e doutrina, mas também um incentivador e promovedor de relações, se encontra em excelente companhia. Reiteradas vezes Jesus Se tomou íntimo, dessa maneira, de tais pessoas como Zaqueu, a mulher junto ao poço e Levi Mateus. Era arriscado, mas Jesus correu o risco, e maravilhosas foram as relações cultivadas e que floresceram. Naturalmente, houve pessoas, como agora, que achavam que “a familiaridade produz desprezo”. Nalguns casos real-mente é assim. Os que são tão fechados em si mesmos que não podem tornar-se vulneráveis diante dos outros, ou chegar-se a outras pessoas, se ofendem com os que podem fazê-lo e o fazem — especialmente aqueles em tais posições como o pastorado.
Talvez tenhamos de reconsiderar nossas pressuposições acerca da liderança da igreja. Pedro resistiu à tentativa de Jesus para realizar um ato de humilde serviço em seu favor — a saber, lavar-lhe os pés. Mas a resposta de Jesus demonstra o valor que Ele dava a essa espécie de franca participação e intimidade: “Se Eu não te lavar, não tens parte comigo. S. João 13:8. Felizmente, Pedro esteve disposto a pôr de lado alguns entraves ao companheirismo que fazem parte de seu passado e desfrutar mais profunda experiência com o Senhor.
O pastor que se abre corre o risco de ser mal compreendido. Sua boa vontade para partilhar sinceramente o que há dentro dele pode ser explorada; ele pode ser considerado como fraco e, talvez, até julgado moralmente incompetente para o cargo. Um comandante militar ou o dirigente de um governo ou de uma empresa secular não correria es-se risco. Em tais setores, a autoridade, o poder e o domínio estão em jogo, e é mantida uma distância e separação muito definida entre o dirigente e os subalternos. Mas o risco da intimidade pode ser assumido pelos dirigentes do povo de Deus, pois nossas responsabilidades são diferentes (ver S. Mat. 20:25-27). Quando encaramos seriamente a noção bíblica da liderança como servo, veremos surgir profundos sentimentos de amizade e compaixão entre nós e nosso povo. O programa da igreja de repente funcionará com muito mais suavidade, e pecadores serão atraídos para semelhante cenário de graça.
A intimidade com nosso povo não significa introduzir entre os pastores uma vulgaridade e jovia-lidade de baixo nível ou um padrão reduzido. Pelo contrário, a pessoa ordenada tem a sagrada obrigação de manter a dignidade e a integridade apropriadas a sua vocação. O importante é compreender e depois mostrar às pessoas pelas quais labutamos que estamos na mesma altura que elas no que diz respeito a nossa necessidade de santificação. Precisamos identificar-nos com as pessoas e permitir que elas se identifiquem conosco, como fez Ezequiel: “Assentei-me ali atônito no meio deles. Eze. 3:15.
Acusações de falsidade, hipocrisia e indiferença freqüentemente têm sido lançadas contra o ministério e, amiúde, com alguma razão. Elevemos a norma de tal maneira que nosso povo perceba que somos dirigentes honestos, fidedignos e profunda-mente espirituais. Mas devem considerar-nos também como indivíduos que lutam poderosamente contra o mesmo inimigo que eles. Estendamos-lhes a mão, dizendo: “Venha, meu ir-mão e minha irmã, prossigamos unidos em direção ao Céu.”
Davi, Oséias, Paulo e outros abriram sua vida para que pudéssemos vê-la, pois do contrário não teríamos certos vislumbres da maneira como Deus opera nos lares e casamentos, com as emoções e em meio de conflitos, dúvidas e temores de pessoas reais. Aprendemos muita coisa acerca de relações íntimas desses e outros personagens bíblicos cuja vida é descrita com tanta franqueza. Sabemos tudo a seu respeito, mas continuamos a amá-los e os respeitamos mais ainda.
Para que a Igreja cresça e prospere hoje em dia como sucedeu no passado, seus pastores precisam seguir o exemplo dos pastores do povo de Deus em tempos anteriores. Andando nas pegadas do Supremo Pastor, eles não empurravam, mas guiavam o rebanho. Exortavam-no mas andavam com ele. O poder de sua liderança estava em suas conexões íntimas. Nós também pode-mos encontrar a chave de um ministério mais cabal na revelação pessoal — a disposição de arriscar-se a ter intimidade com as pessoas que procuramos ajudar.