O universalismo e a relação entre amor e justiça nas Escrituras
Nos últimos anos, ressurgiu uma crença cuja premissa fundamental afirma que Deus salvará todos os seres humanos, independentemente da condição em que se encontrem, mesmo que continuem a pecar e não tenham sido transformados pelo Espírito Santo. Essa abordagem é conhecida como universalismo (apokatastasis) ou restauracionismo.1 Mas, afinal, todos seremos salvos? O que a Bíblia diz sobre isso? Com o objetivo de responder a essas perguntas, vamos rever quais são os argumentos bíblicos e teológicos do universalismo, além de apresentar sua hermenêutica e filosofia. Depois, analisaremos essa crença à luz das Escrituras.
Argumentos teológicos
Os universalistas utilizam vários conceitos bíblicos para validar a ideia de restauração universal. Por exemplo: Deus deseja salvar a todos (Gn 12:3; Ez 33:11; 1Tm 2:3; 2Pe 3:9);2 Deus é amor e Sua graça é infinita (1Jo 4:8, 16; cf. Sl 103:8; 1Co 13:4-8); e a morte expiatória de Cristo pagou os pecados de todos (Jo 12:32; 1Co 15:22, 23; Hb 2:9; 1Jo 2:2). Portanto, todos os seres humanos serão aceitos e recebidos na Nova Jerusalém. Da mesma forma, o ser humano terá a oportunidade de aceitar a graça divina até mesmo depois da morte (1Pe 3:18-21; 4:6) ou depois do milênio.3 Os universalistas também declaram que as palavras de Pedro em Atos 3:21 comprovam a restauração final de toda a criação.4
Além disso, para os universalistas, a soberania de Deus é um aspecto fundamental no processo de reconciliação universal (Ef 1:11). Como um Deus amoroso, justo e onisciente, Ele não criou os seres humanos para castigá-los eternamente ou extingui-los. A Sua bondade exige a salvação de todos os seres racionais. Em Sua onisciência, o Senhor fará o impossível para salvar cada pecador (2Cr 20:6; Pv 19:21; Is 46:10; Mt 19:26). O caráter misericordioso de Deus seria incoerente se Ele não fosse capaz de salvar toda a Sua criação.
Por outro lado, eles pretendem defender o livre-arbítrio humano ao dizer que Deus não força a vontade de Suas criaturas, mas que elas mesmas são guiadas para que aceitem a misericórdia divina.5 Eles também não negam as consequências do pecado, a ira divina nem a existência de um castigo. No entanto, esse castigo tem como finalidade purificar e corrigir o pecador.6 A punição é real, mas temporária. O propósito da justiça divina para Sua criação não é punitivo, mas redentivo.7
Hermenêutica e filosofia do universalismo
Ilaria L. E. Ramelli demonstrou que esse ensinamento é resultado da influência de vários livros apócrifos como o Apocalipse de Pedro, os Oráculos Sibilinos, o Apocalipse de Elias, a Epístola dos Apóstolos, e a Vida de Adão e Eva. Ainda que essas fontes literárias não tenham abordado de forma direta o conceito da restauração universal, foram claros antecedentes para a crença de uma intercessão e conversão após a morte.8
Orígenes e Clemente, dois grandes mestres do cristianismo, foram os que impulsionaram e moldaram essa crença. Ramelli sublinhou que “a teoria da apokatastasis” se originou “no contexto de debates filosóficos sobre o livre-arbítrio, a teodiceia e o destino eterno das criaturas racionais”.9
Ao utilizar uma hermenêutica alegórica, Orígenes assinalou que “o que parecia indignante ou inapropriado devia ser interpretado espiritualmente”.10 Assim, os textos bíblicos referentes ao castigo, à ira divina e ao fogo eterno eram entendidos alegoricamente devido ao contexto apologético de seu tempo.11
Orígenes e Clemente integraram a doutrina da restauração final com outros ensinamentos que deram coerência a toda sua exposição bíblica. Entre eles, encontramos a crença da imortalidade da alma,12 a conversão pós-morte13 e o castigo pedagógico nesta vida e depois dela.14 Finalmente, eles apontaram que o amor divino venceria a infidelidade do pecador.15 Por isso, a punição era considerada um processo de purificação.16
Os pensadores universalistas atuais provavelmente rejeitariam a hermenêutica alegórica e a preexistência das almas; no entanto, é impossível negar que existam semelhanças no uso que fazem das Escrituras e nas pressuposições filosóficas e teológicas.
A Bíblia apoia a teoria universalista?
Estamos convencidos de que a Bíblia não apoia essa crença. De fato, acreditamos que muitos dos textos usados pelos universalistas (por exemplo, Jo 1:29; Rm 5:18; 1Tm 4:10; 1Co 15:22; Hb 2:9; 1Jo 2:2, entre outros) realmente apontam para uma expiação universal, não para a ideia de que todos serão salvos.17 O contexto imediato e canônico torna impossível a perspectiva universalista sobre a salvação.
As Escrituras afirmam que a vida eterna está condicionada à justificação e santificação em Cristo durante nossa vida aqui na Terra (Jo 5:21; 15:1-5; Jd 21; 1Co 15:53; 1Jo 5:20; Ap 22:14). Isso sugere que nem todas as pessoas aceitarão a Cristo ou que nem todos serão santificados pelo Espírito em obediência à Sua vontade (At 5:32; Ef 1:3-14). Essa é uma das razões pelas quais a Bíblia destaca que Jesus deu Sua vida em resgate por muitos (Mc 10:45; 14:24 cf. Mt 20:28; Hb 9:28). Cada pessoa escolhe qual será seu destino final (Dt 30:15-19; Mc 16:16; Jo 6:35; Ap 21:6; 22:17).
Ao propor a salvação de todos em Cristo, os universalistas rejeitam as ideias levantadas anteriormente e utilizam textos como Romanos 5:18. No entanto, uma leitura cuidadosa desse texto mostra justamente o contrário. Ao considerar o contexto (v. 12-21), notamos que o apóstolo Paulo contrastou duas ideias: 1) a condenação divina por causa do pecado de Adão e 2) a salvação que se obtém mediante Cristo.
O pecado afetou todos os seres humanos; por isso, a salvação é oferecida igualmente a todos. No entanto, alguns a aceitam e outros a rejeitam. Assim, nem todos se salvarão, mas somente muitos. No verso 15, Paulo declarou que “muitos morreram” e que abundou a graça em Cristo para “muitos”. Além disso, o apóstolo afirmou que “por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos” (v. 19).
Por outro lado, é importante reconhecer que o uso bíblico da palavra todo(s) alude à totalidade em sentido absoluto (Js 3:7; 1Sm 10:23; Sl 145:9; Mc 5:9, 12) ou a uma quantidade geral sem implicar plenitude (Dt 28:12; Is 52:10; Mc 1:5; Jo 3:26). Esse último uso é observado em certas ocasiões com fins retóricos. Por exemplo, Marcos 1:5 menciona que as pessoas de “toda a região da Judeia e todos os moradores de Jerusalém” iam a João para serem batizadas “por ele no rio Jordão”. Francis Chan e Preston Sprinkle afirmam que a palavra “todos” descrita aqui “não significa cada uma das pessoas da Judeia – homens, mulheres e crianças. Pelo contrário, ‘todos’ simplesmente denota um grande número de pessoas”.18
Essa ideia encontra apoio em outros textos bíblicos. Por exemplo, em 1 Coríntios 15:22, Paulo afirmou que “em Cristo todos serão vivificados”, isto é, ressuscitados e glorificados. Não se fala aqui de toda a humanidade, mas apenas dos crentes, “dos que são de Cristo” (v. 23, NVI), os quais serão ressuscitados e transformados em Sua vinda (cf. 1Ts 4:13-17; 1Co 15:51, 52).
O que foi dito aqui implica que podemos perder a salvação? A resposta é “sim”. Jesus afirmou que podemos perder a salvação se pecarmos contra o Espírito Santo (Mt 12:32 cf. Mc 3:28, 29; Hb 6:4-6; 10:26-31). Além disso, em várias parábolas se evidencia o destino daqueles que aceitam o evangelho e dos que o rejeitam (Mt 7:13; 8:12; 22:13, 14; 24:51). Até mesmo o sermão escatológico de Jesus aponta para essa realidade (Mt 24:31, 40, 41; 25:12, 30, 41).
Os apóstolos ensinaram a mesma coisa. Paulo destacou que a salvação está condicionada à fé do crente e à sua santificação (Rm 5:9; 2Co 5:10; Gl 6:7-10; Ef 1:13, 14; 2:1-10). Em sua carta aos Filipenses, ele exortou os crentes a permanecer fiéis diante dos inimigos da cruz de Cristo, pois o “destino deles é a perdição” (Fp 3:19). Portanto, aqueles que não aceitam a provisão realizada por Deus (Rm 2:7, 8), simplesmente perderão a salvação (1Co 9:23-27; 2Co 6:1; 1Ts 3:5; Gl 1:6). Por sua vez, João assinalou que as promessas de imortalidade foram dadas aos vencedores (Ap 2:5, 7; 3:12, 21; 7:9, 14; 14:3-5; 15:2; 22:14). Em consequência, nem todos entrarão na cidade santa por causa de seus pecados (Ap 21:8, 27; 22:11).
Enquanto estivermos vivos, devemos tomar nossa decisão, já que a Bíblia ensina que depois da morte não haverá possibilidade de experimentar a misericórdia e o perdão divino (Mt 25:46; Gl 6:7; 2Co 5:10; 6:1, 2; Hb 9:27). A parábola do rico e Lázaro ensina que depois da morte não há forma de reverter as decisões tomadas em vida (Lc 16:23-31). O juízo final de Deus é irreversível!
A justiça e o amor de Deus
Os universalistas se perguntam como Deus pode castigar alguém ou destruir para sempre uma pessoa se Ele é amor. Para responder a essa questão, devemos começar mencionando que a ira divina é compatível com a misericórdia para o pecador e o justo (Êx 20:5, 6; 33:6, 7; Dt 7:9, 10; Sl 103:8; Jo 3:15-18). A ira é uma intervenção justa e santa diante dos pecados cometidos pelos opressores do povo de Deus (Is 42:13; 59:17; Zc 1:14; Na 1:2; Sf 2:8).
A ira divina escatológica é o castigo que receberão aqueles que rejeitaram a salvação oferecida por Deus por intermédio de Cristo (Jo 3:36; 1Ts 1:9, 10; 2:8-12; Ap 14:9, 10). O elemento moral é importante para compreender as razões divinas da punição, que terminará com a destruição total.
Alguns universalistas também afirmam que Deus castigou as nações com fins redentivos e disciplinares (Sl 78:32-39; Lm 3:31-33). Embora os castigos divinos tivessem o propósito de restaurar, eles estavam dirigidos principalmente ao remanescente fiel (Is 10:20; 37:31; Ob 17).19 Contudo, devemos estar conscientes de que as advertências e castigos disciplinares muitas vezes não foram efetivos por causa da rebeldia do povo (Is 1:5; Ml 1:6, 12; 3:13, 14).
A destruição escatológica será no lago de fogo e enxofre. Essa é uma das expressões mais gráficas para descrever a justa retribuição de Deus a todos os infiéis e ímpios. Ela será executada após o milênio. A morte final ou segunda morte será a retribuição pela desobediência ao Criador; cada um morrerá por seus próprios pecados. Depois daquela morte não haverá mais vida para aqueles que forem condenados; ou seja, deixarão de existir eternamente.20
Portanto, é importante ter em mente que esse fogo não é purificador. É verdade que, às vezes, a imagem do fogo é usada metaforicamente para descrever a purificação do caráter cristão, mas é mencionada no contexto das provas e aflições da vida (Ml 3:2; 1Co 3:13-15; 1Pe 1:7). Ao contrário, no contexto escatológico, o fogo é usado para descrever a destruição dos pecadores.
Conclusão
Hoje, muitos cristãos aceitam o universalismo em seu desejo de assinalar que todos – inclusive os ímpios – serão salvos; do contrário, Deus não seria um ser amoroso como testemunham as Escrituras. No entanto, essa concepção provém de uma inadequada compreensão da Bíblia, influenciada por fontes apócrifas e pressuposições teológicas e filosóficas que desvirtuam a doutrina bíblica da salvação.
A salvação está ao alcance de todos, sim, mas as Escrituras são claras ao afirmar que muitos aceitarão a salvação enquanto outros não o farão. Além disso, se todos fossem se salvar, por exemplo, que sentido teria a Grande Comissão (Mt 28:19, 20) ou as exortações para vivermos uma vida santa (Hb 12:14; 1Pe 1:15, 16)? Portanto, somente os crentes justificados e santificados serão glorificados para viver com Deus e o Cordeiro para sempre. Dessa forma, os textos utilizados pelos universalistas, interpretados de maneira cuidadosa, apontam para a salvação dos crentes fiéis, não para a humanidade em geral.
Joel Iparraguirre, pastor e editor da Safeliz, na Espanha
Christian Varela, pastor na Argentina
Referências
1 Alguns a chamaram de “salvação inclusiva” ou “reconciliação universal”. Para mais detalhes, ver Ilaria L. E. Ramelli, A Larger Hope? Universal Salvation from Christian Beginnings to Juan of Norwich (Eugene, OR: Cascade Books, 2019). Para uma crítica ao universalismo, ver Todd Miles, A God of Many Understandings (Nashville TN: B&H, 2010), p. 95-120.
2 David Artman, Grace Saves All (Eugene, OR: Wipf & Stock, 2020), p. 5-7. Thomas Talbott, The Inescapable Love of God, 2ª ed. (Eugene, OR: Wipf & Stock, 2014), p. 37-48. Robin A. Parry, “A Universalist View”, em Four Views on Hell, ed. Preston Sprinkle (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2016), p. 108. Keith Giles, Jesus Undefeated: Condemning the False Doctrine of Eternal Torment (Orange, CA: Quoir, 2019), p. 95-103.
3 Artman, Grace Save All, p. 68-77.
4 Talbott, The Inescapable Love of God, p. 152.
5 Talbott, The Inescapable Love of God, p. 167-189.
6 A crença de um lugar de castigo é interpretada de maneira metafórica ou como se fosse um purgatório.
7 Jan Bonda, The One Purpose of God. An Answer to the Doctrine of Eternal Punishment (Grand Rapids, MI/Cambridge, U.K.: Eerdmans, 1998), p. 219. Parry, “A Universalist View”, p. 113.
8 Ilaria L. E. Ramelli, “Origen, Bardaisan, and the Origin of Universal Salvation”, Harvard Thelogical Review 102, nº 2 (2009): p. 135-150.
9 Ramelli, “Origen, Bardaisan, and the Origin of Universal Salvation”, p. 168.
10 Ramón Trevijano Etcheverría, La Biblia en el Cristianismo Antiguo (Barcelona: Verbo Divino, 2001), p. 91.
11 Manlio Simonetti, Biblical Interpretation in the Early Church: An Historical Introduction to Patristic Exegesis (Edinburgh: T&T Clark, 1994), p. 7.
12 Clemente, Stromata, 5, 14.91.2. Orígenes, Tratado de Principios 3.1.13; Contra Celso 3.25.33, 6.26.
13 Clemente, Stromata 6.51.2-3; 6.6.44.4-5; 6.6.47.1, 4; Clemente, Quis Dives?, 40. Orígenes, Tratado de Principios, 3.6.3; 2.10.8.
14 Clemente, Stromata, 6. 6.52.1; 6.26.168.1-2; 7.12.78.3; El Pedagogo 1.65.1-3; Orígenes, Tratado de Principios 2.10.4; 3.1.13; Comentario de Mateo, 14.11; Homilía sobre Ezequiel, 1.3.1; Homilías sobre Jeremías, 19.3.
15 Orígenes, De Orationes 27.
16 Orígenes, Contra Celso 6, 72.
17 Millard Erickson, Teología Sistemática (Barcelona: Clie, 2008), p. 1026.
18 Francis Chan e Preston Sprinkle, Erasing Hell (Colorado Springs, CO: David C. Cook, 2011), p. 29.
19 John G. Stackhouse Jr. “A Terminal Punishment Response”, em Four View of Hell, ed. Preston Sprinkle (Grand Rapids: Zondervan, 2016), p. 135.
20 Para mais detalhes, ver Christian Varela, “El destino final de la humanidad: Resurrecciones, segunda muerte e inmortalidad en el Apocalipsis”, em Um Pouco Menor Que Anjos: Multileituras bíblico-antropológicas, ed. Carlos Olivares y Karl Boskamp (São Paulo: Editora Reflexão: 2021), p. 293-312.