“Saúdem Andrônico e Júnias, meus parentes que estiveram na prisão comigo. São notáveis entre os apóstolos, e estavam em Cristo antes de mim” (Paulo)

O nome Júnias aparece apenas uma vez no Novo Testamento, em uma lista de amigos e colaboradores de Paulo em Roma, aos quais ele enviou saudações (Rm 16). Através dos anos, têm sido levantadas perguntas sobre sua identidade, ocupação e, especialmente, seu gênero (masculino ou feminino). Neste artigo, analisaremos algumas dessas questões e também as implicações das respostas.

O texto original grego de Romanos 16:7 diz o seguinte: “Saúdem Andrônico e Júnias, meus parentes que estiveram na prisão comigo. São notáveis em/pelos/entre os apóstolos e estavam em Cristo antes de mim.”1 Coloquei em itálico os termos em/pelos/entre, porque a identidade de Júnias é encontrada na interpretação dessas palavras. Aqui, os nomes gregos Andrónikon Iounían, que estão no modo acusativo (objeto direto), por causa do verbo “saudar”, foram traduzidos como Andrônico e Júnias (como se estivessem no caso nominativo, que seriam escritos como Andrónikos e Iounias). O outro nome, Iounían, também no acusativo, é problemático.

A diferença entre o masculino Iounián e o feminino Iounian é apenas um acento. Na verdade, os mais antigos manuscritos, os unciais, são escritos em letras capitais, sem acentos. Consequentemente, os dois gêneros deviam ser IOUNIAN, deixando o leitor decidir qual seria o gênero de Júnias.

Para elucidar essa questão, consideraremos o uso do nome na antiguidade, as referências a Júnias, feitas pelos antigos escritores cristãos, e o nome nos antigos manuscritos gregos do Novo Testamento.

Na antiguidade

Apesar da declaração de Wayne Grudem e John Piper, de que Júnias não era um nome feminino comum no mundo de fala grega,2 esse era um nome feminino romano comum. Seu significado era “juvenil”, “moço”, “jovem”. Derivado da deusa Juno, o nome aparece mais de 250 vezes nos registros de Roma, somente no primeiro século.3 É um nome frequentemente encontrado em lápides,4 que também aparece em inscrições do primeiro século em Éfeso, Didyma, Lídia, Bitínia e Trôade.5 A mais conhecida Júnias é meio-irmã de Brutus e esposa de Cassius.6

Se o nome fosse masculino, deveria ser Junias em grego, ou Junius em latim. O nome Junius é bem comprovado. Entretanto, não há comprovação para Junias em nenhuma “inscrição, documento, escritura, epitáfio ou obra literária do período do Novo Testamento”.7 Alguns têm sugerido que Iouniás deve ter sido uma forma reduzida de Iounianós, mas esse nome também não é evidente.8 De acordo com Linda Belleville, “Iouniás como contração de Iounianós originou-se no mundo de fala inglesa com Thayer”.9

Primeiras referências cristãs

Em seu comentário sobre Romanos, Joseph Fitzmyer enumerou 16 escritores cristãos gregos e latinos, do primeiro milênio, que compreendiam Júnias em Romanos 16:7 como sendo mulher. Entre esses, o mais antigo é Orígenes, cujo comentário sobre Romanos foi traduzido por Rufino, em latim, e citado por Rabanus Maurus.10 Em seu Liber de Nominibus Hebraicis, Jerônimo enumera nomes como Júnias.11

De João Crisóstomo a Pedro Abelardo, comentaristas gregos e latinos da epístola aos romanos usaram o nome feminino Júnias. As únicas exceções foram Ambrosiastro (no fim do quarto século) e Atto de Vercelli (925-960), que usaram Júlia.12

Aqueles que argumentam ser Júnias um personagem masculino insistem muito no Index Discipulorum, atribuído a Epifânio, onde Júnias aparece como tal. Entretanto, Belleville nota que Epifânio também se referiu a Priscilla como personagem masculino e bispo de Cólofon, enquanto Áquila, esposo dela, foi bispo de Heracleia – dois lugares diferentes. “A confusão dos dois gêneros e a discrepância entre as duas cidades minam a credibilidade do documento”.13

Egídio de Roma foi o primeiro escritor da igreja a se referir a Andrônico e Júnias como “aqueles honoráveis homens”.14 É interessante lembrar que isso corresponde ao tempo em que o papa Bonifácio VIII decretou em 1298 que todas as freiras deveriam ser permanentemente enclausuradas.15

Antigos manuscritos gregos

Se o escriba de um manuscrito uncial pretendesse escrever Iounían ou Iounián, isso era secundário. As letras deveriam ser maiúsculas e sem acento: IOUNIAN. O gênero dessa pessoa devia ser descoberto em outra fonte.

Os manuscritos em minúsculas começaram a aparecer depois do sétimo século. Na verdade, os manuscritos unciais foram recopiados em minúsculas, forçando o uso de acentos. Esses manuscritos continham Iounían, identificando Júnias como nome feminino. De acordo com Eldon Epp, nenhum manuscrito grego em minúsculas usou o masculino Iounián.16

O UBS Greek New Testament anota pelo menos 20 manuscritos do Novo Testamento, em minúsculas, que usam o feminino Iounían. Entre esses, os mais antigos são o 081 (de 1044) e o 104 (de 1087). O mais recente é o 2200 do século 14.17

Nos manuscritos e escritos do Novo Testamento sobre o capítulo 16 de Romanos, mais de uma vez o nome Júnias, do verso sete, é dado como Júlia, que aparece depois em Romanos 16:15. Isso pode ser visto no manuscrito uncial P46, aproximadamente do ano 200.18 Júlia é um nome feminino.

Richard Bauckham conjectura que Júnias, de Romanos 16:7, possa ser a mesma Joana mencionada em Lucas 8:3; 24:10. Seu nome romano devia ser mais fácil de ser pronunciado, e seu relacionamento com Jesus a identificava como cristã, antes de Paulo. Andrônico seria um segundo marido de Joana, ou outro nome dado a Chuza, primeiro marido dela.19

Novo Testamento grego

De acordo com a lista de Epp, 38 Novos Testamentos gregos, entre os anos 1516 e 1920, usam o nome Iounían, indicando gênero feminino para Júnias. Durante aquele tempo, houve apenas uma exceção: Alford, no século 19, usou o modo masculino, mas colocou o feminino como alternativa.20

Desde a versão de Nestle, em 1927, passando pelo UBS Greek New Testament, de 1933, apenas o Hodges-Farstad New Testament, de 1982, usa o feminino. As outras 14 versões usam o masculino, frequentemente sem explicação alternativa. Essa tendência foi revertida em 1994, com as versões de Kurt Aland (1994) e do UBS (1998) que retornaram ao feminino sem leitura alternativa.21

Traduções modernas

As sete mais antigas versões inglesas, de Tynbale (1525-1534) a KJV (1611), todas apresentam Júnias sendo mulher. Da Revised Version (1881) até a Nova Tradução Livre (1996), 21 traduções inglesas mostram o gênero masculino, embora dez mencionem o feminino.22

Algumas recentes traduções inglesas ainda usam o gênero masculino, certamente porque sua fonte original assim fazia, e o gênero masculino estava no Novo Testamento grego traduzido por essas versões. Tais são os casos do francês Louis Segond, a espanhola Bíblia de las Américas, a revisão de 1995 da Rainha Valéria, a New American Standard Bible, a versão Inglesa Contemporânea e a Bíblia Mensagem, entre outras.

Entre eles ou um deles

Para alguns, a frase grega episémoi en tem sido problemática. É Júnias um dos apóstolos? Ou ela é reconhecida pelos apóstolos? A Vulgata Latina tem Júnias como “notável entre os apóstolos” (nobiles in apostolis”).

Em seu comentário sobre Romanos 16:7, João Crisóstomo escreveu o seguinte sobre Andrônico e Júnias: “Que são dignos de nota entre os apóstolos. De fato, ser apóstolo é uma grande coisa. Mas estar entre os notáveis, que grande elogio! Mas eles eram notáveis por causa de suas obras e realizações. Quão grande era a devoção desta mulher, para que ela fosse achada digna do título de apóstolo!”23

Até o fim do século 19, houve pouca discussão sobre o apostolado de Júnias. William Sanday e Arthur Headlam, anotaram em seu comentário sobre Romanos: “Júnias é, de fato, um nome romano comum e nesse caso os dois provavelmente seriam esposo e esposa. Por outro lado, como nome masculino, Júnias era menos comum… Se, como é provável, Andrônico e Júnias estavam incluídos entre os apóstolos… é mais provável que o nome tenha sido masculino.”24

O adjetivo episémoi se refere a alguma coisa que tem marca distintiva. Pode ser usado como sinal de que uma coisa ou pessoa é considerada muito boa, notável, famosa, como em Romanos 16:7, ou muito má, infame, como é aplicada a Barrabás (Mt 27:16), onde o termo é traduzido pela NRSV como “notório”.25 Aproximadamente no início do ano 1900, a ideia de que o nome fosse Júnia, uma mulher estimada pelos apóstolos apareceu em comentários de vários autores.26 Considerando que somente homens podiam ser apóstolos, Júnias não podia ser apóstola, mas podia ser muito estimada por eles.

Em 1994, o Comentário Textual para o UBS Greek New Testament dizia o seguinte: “Considerando a impossibilidade de uma mulher ser uma entre os apóstolos, alguns membros [da comissão do UBS] entenderam o nome como sendo masculino.”27 Evidentemente, o ponto crucial do problema é a preposição en, que pode ser traduzida como “entre”; “com”; ou “pelos”.28 A palavra indica lugar e normalmente é seguida de uma palavra no caso dativo (objeto indireto).

Qual é o significado de en no texto em apreço? Foram Andrônico e Júnias reconhecidos como apóstolos? Eram eles notáveis entre os apóstolos (visão inclusiva)? Ou foram reconhecidos pelos apóstolos como cristãos notáveis, mas não apóstolos (visão exclusivista)?

Em 2001, Michael Burer e Daniel Wallace apresentaram um reexame de Romanos 16:7, e propuseram que Júnias era mulher e que ela e Andrônico eram admirados pelos apóstolos. Depois de destacar o que percebiam ser um erro daqueles que tomavam a posição inclusiva, esses comentaristas encontraram evidência para a sua própria visão exclusivista, no estudo de documentos antigos.29 Episémoi en tois apostólis devia significar “notáveis pelos apóstolos”. As três principais respostas dadas a essa proposição vieram de Bauckham, Belleville e Epp.

Bauckham analisou o estudo feito por Burer e Wallace, e mudou suas conclusões.30 Belleville reaplicou o mesmo estudo e apresentou evidências bíblicas para o erro daqueles autores. Mostrou que a preposição en acompanhada pelo dativo normalmente é inclusiva. Também descobriu paralelos helenísticos da frase episémoi en tois, claramente inclusivos. Para Belleville, Júnias era mulher e foi apóstola.31 Em 2002, Eldon Epp escreveu um extenso artigo que se tornou base para seu livro publicado em 2005: Júnias: A Primeira Mulher Apóstola. Nele, Epp apresenta uma bem documentada argumentação favorável a essa ideia.32

Os apóstolos

A grande questão é: Quem são esses apóstolos? Obviamente, não são os doze. Em 1 Coríntios 12:28, Paulo se refere ao dom espiritual do apostolado. Teriam Andrônico e Júnias recebido esse dom? Sabemos muito pouco, além do significado da palavra apóstolos – “alguém que é enviado”. Se Andrônico e Júnias foram enviados ou comissionados, quem os enviou?

Richard Bauckham sugere que Paulo se refere aos apóstolos de Cristo, como ele mesmo, que foram comissionados pelo Cristo ressuscitado e que, com os doze dos Sinóticos, formam um grupo maior.33 Orígenes defendeu que Júnias e Andrônico estavam entre os setenta e dois enviados por Jesus.34

Craig Keener diz o seguinte: “Não é natural ler nesse texto que eles tinham apenas elevada reputação com os apóstolos… Em nenhum lugar Paulo limita a companhia apostólica aos doze e a ele mesmo, como alguns têm defendido.” 35

É difícil concluir este estudo sem mencionar que Paulo estava se referindo a uma mulher chamada Júnias, que, com Andrônico (provavelmente seu marido) participou do grupo de apóstolos do Novo Testamento. Paulo a reconheceu como tal, uma mulher disposta a sofrer pelo evangelho que ela incansavelmente anunciava. 

Referências:

  • 1 Tradução da autora.
  • 2 Wayne Grudem e John Piper, Recovering Biblical Manhood and Womanhood: A Response to Evangelical Feminism (Wheaton, IL: Crossawy Books, 1991), p. 79-81.
  • 3 Joyce Salisbury, Encyclopedia of Women in the Ancient World (Santa Barbara, CA: ABC-CLIO, 2001), s. v. “Junia”.
  • 4 Linda Belleville, Discovering Biblical Equality (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2005), p. 117.
  • 5 ___________, New Testament Studies 51 (2005), p. 241.
  • 6 Ibid., p. 234.
  • 7 Linda Belleville, Discovering Equality Biblical, p. 117.
  • 8 Eldon Epp, Junia: A First Woman Apostle (Mineápolis, MN: Fortress Press, 2005), p. 26-28.
  • 9 Linda Belleville, New Testament Studies, 239.
  • 10 Joseph Fitzmyer, Anchor Bible (Nova York: Doubleday, 1993), v. 33, p. 737, 738.
  • 11 www.documentcatholicaomnia.eu/02/0347-0420_Hieronymus_Liber_De_Nominibus_Hebraicis_MLT.pdf; acessado em 14/05/2013.
  • 12 Ute Elsen, Women Officeholders in Early Christianity: Epigraphical and Literary Studies (Colleville, MN: Liturgical Press, 2000), p. 47.
  • 13 Linda Velleville, New Testament Studies, p. 235.
  • 14 Bernadette Brooten, Women Priests: A Catholic Commentary on the Vatican Declaration (New York: Paulist Press, 1977), www.womenpriests.org/classic/brooten.asp.
  • 15 Ute Eisen, Op. Cit., p. 47.
  • 16 Eldon Epp, Op. Cit., p. 45.
  • 17 United Bible Societies, The Greek New Testament (Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1993), p. 564.
  • 18 Bruce Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament (Stuttgart: Unite Bible Societies, 1971), p. 539.
  • 19 Richard Buckham, Gospel Women: Studies of the Named Women in the Gospels (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2002), p. 109-202.
  • 20 Eldon Epp, Op. Cit., p. 62, 63.
  • 21 Ibid.
  • 22 Ibid., p. 66.
  • 23 John Chrysostom, Nicene and Post-Nicene Fathers (Grand Rapids, MI: Eerdmans, s/d), v. 11, www.ccel.org/ccel/schaff/npnf111.pdf, acessado em 26/08/2012.
  • 24 William Sanday e Arthur Headlam, International Critical Commentary (Edinburg: T&T Clark, 1895), v. 32, p. 423.
  • 25 Gerhardt Kittel, Geoffrey Bromiley e Gerhard Friedrich, editors, Theological Dictionary of the New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1964-1976), “Episémos”.
  • 26 Eldon Epp, Op. Cit.
  • 27 Bruce Metzger, Op. Cit., p. 322.
  • 28 Theological Dictionary of the New Testament, “en.
  • 29 Michael Burer e Daniel B. Wallace, New Testament Studies 47 (2001), p. 76-91.
  • 30 Richard Buckham, Op. Cit., p. 172-180, 246.
  • 31 Linda Belleville, New Testament Studies, 242-247, 248; Discovering Equality Biblica, p. 119, 120.
  • 32 Elton Epp, New Testament Textual Criticism and Exegesis (Leuven: Leuven University Press, 2002), p. 45.
  • 33 Richard Bauckham, Op. Cit., p. 179, 180.
  • 34 Rena Pederson, The Lost Apostle: Searching for the Truth About Junia (San Francisco: Jossey-Bass, 2006), p. 36.
  • 35 Craig Keener, citado em Rebecca Merril Groothuis, Good News of Women: A Biblical Picture of Gender Equality (Grand Rapids, MI: Baker, 1997), p. 195.