O lugar das mulheres na vida e no ensino da igreja apostólica

Os evangelhos retratam um respeito pelas mulheres e nível de inclusão notável do ponto de vista do primeiro século, apesar de parecer muito moderado e limitado atualmente. Embora seja errado presumir que todas as mulheres fossem mantidas completamente fora de vista no judaísmo palestino do período intertestamentário, uma vez que encontramos evidências de alguma participação de mulheres na sinagoga e de heróis como Judite na literatura judaica da época, a convenção cultural ainda era forte em acreditar que as mulheres, por exemplo, fossem mais fracas no julgamento e pertenciam à esfera privada da casa.1

Na narrativa dos evangelhos, a samaritana provavelmente tenha sido a primeira “evangelista” a falar sobre a vinda do Messias (Jo 4:28-30, 39), e Maria foi a primeira pessoa comissionada a contar as boas-novas da ressurreição (Jo 20:17; cf. Mt 28:10).2 Lucas usou deliberadamente uma série de histórias em pares, uma apresentando um homem e, a outra, uma mulher, para mostrar o valor dado à fé e ao ministério das mulheres no plano de Deus. Isso é visto nas histórias de Zacarias e de Maria, que abrem o evangelho, e de Simeão e Ana, mas também é repetido em partes posteriores do livro.3

Lucas também observou que não foram apenas discípulos do sexo masculino que acompanharam Jesus e aprenderam com Ele durante Seu ministério, como teria sido normal para um rabino da época. Cristo também estava acompanhado de mulheres discípulas, o que teria sido considerado extraordinário e até vergonhoso (Lc 8:1-3; cf. 24:1, 6, 8).4 Ao serem curadas por Ele, cada uma dessas mulheres escolheu apoiar (diakoneō) o ministério de Cristo com seus próprios recursos, algo que lhes teria dado honra como benfeitoras, se não tivessem se desonrado ao se afastar dos papéis esperados para as mulheres, viajando com o grupo Dele.5

O fim dos evangelhos é particularmente notável em seu retrato das mulheres, pois as apresenta no contexto da crucifixão (Mt 27:55, 56), quando quase todos os discípulos haviam fugido (Mt 26:56;
Mc 14:50-52; cf. Lc 22:54). Elas também visitaram o túmulo (Mc 16:1; cf. Jo 20:1), enquanto os apóstolos estavam escondidos em uma casa de portas trancadas (Jo 20:19).

Priscila e as mulheres em Atos

Nas várias menções a Priscila (Prisca), ela é apresentada com dons tradicionalmente femininos, como a hospitalidade (At 18:2, 3), mas também exercendo atividades públicas, como mestra (At 18:26) e colaboradora de Paulo (Rm 16:3), atuações que geralmente não eram esperadas de uma mulher naquele período. Priscila nunca é nomeada sozinha, mas sempre com seu marido, Áquila (At 18:2). É digno de nota que, embora o nome da esposa raramente fosse mencionado em relatos antigos, quando isso acontecia era colocado em segundo lugar. No caso de Priscila, porém, seu nome é frequentemente citado em primeiro lugar quando os dois são indicados. Ao apresentá-los, Lucas mencionou Áquila primeiro, como seria de se esperar, mas nas outras duas alusões, o nome de Priscila veio primeiro. Isso é particularmente interessante no último caso, porque a atividade em que estavam engajados era ensinar uma pessoa. O homem a quem Priscila e Áquila ensinaram não era um discípulo inexperiente, mas Apolo, o pregador brilhante e eloquente, “poderoso nas Escrituras”. Ele sabia muito sobre Cristo, mas precisava de um aprendizado adicional, do qual Priscila participou (At 18:24-28).

Considerando o tipo de autoridade envolvida nesse relato, é possível constatar que as Escrituras detinham a autoridade final, e que Priscila e Áquila atuaram em um papel consistente com o de humildes líderes servos. Alguns alegam que Priscila, ao fazer isso, estava sujeita a Áquila e sob a supervisão dele, mas o fato de que seu nome tenha sido mencionado primeiro questiona esse argumento.6 Ela é citada com Áquila em Romanos 16:3 como uma synergo, ou colega de trabalho, termo usado por Paulo para referir-se a si mesmo (1Co 3:9) e a outros, incluindo Lucas (Fp 1:24) e Timóteo (1Ts 3:2).7 Nesse caso, não há qualquer necessidade de justificar o fato de que uma mulher estivesse atuando no papel de mestra. O ministério de Priscila é apenas um exemplo entre vários de mulheres mencionadas em Atos, incluindo o trabalho de Dorcas (10:36-39), a atividade das filhas de Filipe como profetisas (21:8, 9) e a iniciativa de Lídia que, com discrição, ofereceu hospitalidade a Paulo e seus colaboradores e agiu como sua benfeitora (16:13-16, 40).

Febe

Em Romanos 16:1 e 2, Paulo escreveu a respeito de Febe: “Recomendo-lhes a nossa irmã Febe, que está servindo [diakonos] na igreja de Cencreia, para que vocês a recebam no Senhor como convém aos santos e a ajudem em tudo o que de vocês vier a precisar; porque ela tem sido protetora [prostatis] de muitos, inclusive de mim.” É significativo que Paulo tenha usado a forma masculina diakonos, uma indicação de que ela não estava sendo mencionada apenas como uma mulher que serve, mas como alguém que ocupava um papel formal com um título padronizado. A opção mais provável no contexto cristão é que ela fosse uma diaconisa. Isso se encaixa com a declaração de que ela era um diakonos de
uma igreja particular, e com a inclusão de qualificações para mulheres na lista de 1 Timóteo 3:11. Outra possibilidade é que ela estivesse atuando como agente nomeada da igreja em Cencreia.

O papel de liderança de Febe é fortemente atestado pelo termo que a identifica como uma prostatis. A palavra está relacionada ao dom espiritual de liderança (proistēmi), embora a forma substantiva não seja encontrada em nenhum outro lugar do NT. Em outros escritos gregos da época, é regularmente usada no mundo judaico e greco-romano para se referir a vários tipos de líderes oficiais.8 O uso feminino do substantivo também pode ser encontrado em inscrições que elogiavam mulheres ricas que atuavam como patronas, fornecendo financiamento e, portanto, detendo alguma autoridade sobre um grupo. De acordo com o costume da época, uma patrona oferecia assistência financeira a um grupo e seus membros em troca de honra pública e autoridade dos clientes que ela atendia. Febe, no entanto, como alguém fiel a Cristo, agia da mesma forma que uma irmã.9

Júnia e outras mulheres

Além de Febe, oito mulheres foram mencionadas em Romanos 16, incluindo Priscila e Júnia que, como Febe e Priscila, parece ter desempenhado um papel de liderança.10 Dessa pessoa, Paulo escreveu: “Saudai a Andrônico e a Júnia, meus parentes e meus companheiros na prisão, os quais se distinguiram entre os apóstolos e que foram antes de mim em Cristo” (Rm 16:7, ARC). O desafio inicial que faz com que muitos duvidem da exatidão desse versículo é que muitas versões traduzem o nome como “Júnias” (masculino) em vez de “Júnia” (feminino). No entanto, não era assim que os antigos o entendiam. Apesar dos argumentos contrários, Júnia era um nome de mulher comum no 1º século, aparecendo pelo menos 250 vezes em inscrições e outros escritos romanos durante esse período, enquanto Júnias (masculino) não aparece em nenhum lugar durante a mesma época.11 Alguns têm usado outra abordagem, argumentando, com base na preposição grega en, que o verso deve ser traduzido “conhecidos pelos apóstolos” em vez de “conhecidos entre os apóstolos”. No entanto, a evidência não corrobora que en deva ser usado dessa forma. De fato, Linda Belleville descobriu um paralelo quase exato do mesmo período que só faz sentido se for traduzido como “entre”.12

Isso não significa reivindicar para Júnia um ministério semelhante ao dos Doze e de Paulo, mas dizer que ela, como outras pessoas que foram chamadas de apóstolo no NT, como Tiago (Gl 1:19) e Barnabé
(At 15:2), atuou em uma posição de liderança como representante de Jesus Cristo. Em Filipenses 4:2 e 3, encontramos Evódia e Síntique sendo mencionadas como “cooperadoras” (sunergos) que lutaram ao lado de Paulo na causa do evangelho (Fp 4:2, 3), mesmo termo usado para se referir a líderes masculinos que o ajudaram. É possível encontrar indícios de liderança feminina na igreja cristã também em 2 João, onde a “senhora eleita” (v. 1) pode muito bem ser a patrona e líder de uma igreja domiciliar na província da Ásia (atual oeste da Turquia).

Embora, quando consideradas separadamente, algumas dessas instâncias de liderança feminina não sejam totalmente certas, ao considerar todos os vários exemplos, um padrão definido emerge. É de se perguntar por que termos como apóstolo, cooperador, diácono e líder são tomados como linguagem de liderança quando se referem a homens, mas são automaticamente desconsiderados quando aplicados a mulheres.13

Mulheres nas igrejas domiciliares

Um caminho valioso para compreender a experiência das mulheres e seu lugar nas igrejas domiciliares do 1º século é explorar o que pode ser conhecido sobre o trabalho e a autoridade das mulheres dentro do lar.14 Embora o poder absoluto do pater familias (chefia masculina da família) ainda fosse um ideal romano, dentro de sua própria casa a mulher detinha uma quantidade considerável de autoridade e autonomia sobre coisas como provisionamento, cuidado e supervisão de todos, a compra de terras, o trabalho no campo e a venda de produtos, enquanto o marido ocupava-se com assuntos cívicos e públicos.15

Mesmo que as mulheres casadas estivessem oficialmente sob a supervisão do marido, muitos homens não se preocupavam com os assuntos domésticos. Mesmo que muitas viúvas dependessem da família, um número crescente delas, além de algumas mulheres solteiras, eram capazes de ser financeiramente independentes e governar plenamente seus próprios negócios. Uma reunião da igreja em uma casa como a da mãe de João Marcos (At 12:12), Ninfa (Cl 4:15) e Priscila, levou uma reunião pública da esfera masculina usualmente realizada fora de casa para um lugar em que as mulheres frequentemente exerciam autonomia e autoridade de facto e, por vezes, plenas. Essa realidade demanda considerações adicionais sobre suposições claras relacionadas à autoridade no Novo Testamento.

Conclusão

Perto do fim de Seu ministério, Jesus falou muito sobre Sua segunda vinda e repetidamente apelou a Seus discípulos que estivessem prontos para quando Ele viesse. Ao terminar de contar a parábola das dez virgens, Ele advertiu que é preciso vigiar, “porque vocês não sabem o dia nem a hora” (Mt 25:13). Com base nessa advertência, Ele imediatamente passou para uma segunda parábola, afirmando: “Pois será como um homem que, ausentando-se do país, chamou os seus servos e lhes confiou os seus bens. A um deu cinco talentos, a outro deu dois e a outro deu um, de acordo com a capacidade de cada um deles; e então partiu” (Mt 25:14, 15).

Como diz a conhecida parábola, os servos que usaram o que o mestre lhes tinha dado foram recompensados, enquanto o que ocultou seu talento foi punido.
No contexto da iminente vinda de Jesus, ousaremos insistir que um talento ou dom dado por Deus não seja usado em todo o seu potencial para completar a obra de pregar o evangelho a todo o mundo? 

Referências

1 Filo, On the Special Laws 3.169-170; Embassy to Gaius 40.319; Flavio Josefo, Antiquities of the Jews 4.219. Ver Bernadette J. Brooten, Women Leaders in the Ancient Synagogue (Chico, CA: Scholars Press, 1982); Amy-Jill Levine, “Second Temple Judaism, Jesus and Women: Yeast of Eden”, Biblical Interpretation 2 (1994).

2 Ellen White observou: “Foi Maria quem primeiro pregou o Jesus ressuscitado. […] Se houvesse vinte mulheres onde agora há uma, que fizesse dessa sagrada missão seu trabalho precioso, veríamos muitos mais convertidos à verdade. A influência refinadora e suavizante das mulheres cristãs é necessária na grande obra de pregação da verdade” (Review and Herald, 2/1/1879).

3 Zacarias e Maria foram visitados por Gabriel, que disse a cada um para não temer e prometeu um filho a cada um. No entanto, as respostas diferem distintamente, pois enquanto Zacarias foi repreendido por sua falta de fé (Lc 1:18), a pergunta de Maria não recebeu repreensão, mas uma forte garantia (1:34-37). Também pode ser visto nos dois profetas, Simeão e Ana, que saudaram Jesus no templo (2:25-39). Além disso, o filho único da viúva de Naim foi ressuscitado dos mortos (7:11-17), bem como a filha única de Jairo (8:40-56). A parábola da ovelha perdida, que focaliza a atenção no pastor (15:3-7), é seguida pela parábola da mulher que perdeu a dracma em sua casa (15:8-10).

4 Charles H. Talbert, Reading Luke (Macon, GA: Smyth & Helwys, 2002), p. 93-105; Ben Witherington III,
“On the Road with Mary Magdalene, Joanna, Susanna, and Other Disciples – Luke 8:1-3”, Zeitschrift für die Neutestamentliche Wissenschaft 70, (1979).

5 Joel B. Green, The Gospel of Luke (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1997), p. 317-321.

6 Não seria menos plausível sugerir que Áquila pode ter fornecido o acompanhamento e a ajuda que permitiram a obra de Priscila na esfera pública em contato com os homens ser menos questionável.

7 Ben Witherington, The Acts of the Apostles: A Socio-Rhetorical Commentary (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1998), p. 335-339, 567.

8 Darius Jankiewicz, “Phoebe: Was She an Early Church Leader?” Ministry, abril de 2013, p. 10-13. Elizabeth A. McCabe. “A Reevaluation of Phoebe in Romans 16:1-2 as a Diakonos and Prostatis: Exposing the Inaccuracies of English Translations”, em Women in the Biblical World (Lanham, MD: University Press of America, 2009).

9 Greg Perry, “Phoebe of Cenchreae and ‘Women’ of Ephesus: ‘Deacons’ in the Earliest Churches”, 36,
n. 1 (2010): 15.

10 Ben Witherington, Women in the Earliest Churches (Nova York: Cambridge University Press, 1988), p. 116; Eldon Epp, Junia: The First Woman Apostle (Mineápolis, MN: Fortress, 2005); Nancy Vhymeister, “Junia the apostle”, Ministry, abril de 2013, p. 6-9.

11 Epp, p. 26-28.

12 A favor de “conhecidos pelos” estão Michael H. Burer e Daniel B. Wallace, “Was Junia Really an Apostle? A Re-examination of Rom 16.7”, New Testament Studies 47, 2001. Linda Belleville está entre aqueles que defendem a tradução “conhecidos entre”, e encontrou um paralelo quase exato dessa construção. Ver Linda L. Belleville, “Iounian… ‘episēmoi ‘en tois ápostolois: A Re-examination of Romans 16.7 in Light of Primary Source Materials”, New Testament Studies 51, 2005.

13 Carolyn Osiek e Margaret Y. MacDonald, A Woman’s Place: House Churches in Earliest Christianity (Mineápolis, MN: Fortress, 2006), p. 228.

14 Osiek e MacDonald, p. 144-163.

15 Por exemplo, Xenofonte escreveu sobre o marido e a esposa que mantinham uma parceria em casa, na qual o marido trazia os recursos e a esposa os administrava (Oeconomicus 3.14-16). Seu trabalho doméstico (como resultado do treinamento da esposa adolescente pelo marido mais velho) foi comparado ao de uma abelha rainha, de um comandante militar e de um vereador (7, 36-43; 9, 15).

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