Os cristãos também sofrem psicologicamente. Não é uma incoerência que um fiel servidor de Jesus tenha angústias ou tristezas psicológicas. Há sofrimentos da “alma”, como conseqüência do pecado, na estrutura do ser humano; porém, há outros que são conseqüências de dificuldades vividas nos relacionamentos afetivos da infância, principalmente sendo sofrimentos muito fortes, para alívio dos quais se faz necessário tratamento psicológico ou psiquiátrico.
Há uma relação muito grande entre a Teologia e a Psicologia, e ao mesmo tempo há campos definidos de atuação para o pastor, o psicólogo e o psiquiatra. A palavra “psiquiatra” vem de “psiqué”, que significa “alma”, e de “iatrós”, que tem o sentido de “sanador”. Assim, psiquiatra é o “sanador da alma”, no sentido em que ele pratica a psicoterapia (terapia vem de “therapéu”, cuidar, fazer o serviço, curar, servir). Ele, então, cuida da saúde mental, e o pastor da saúde espiritual ou salvação. Entretanto, ambos têm uma preocupação comum: ajudar o homem a integrar-se e realizar-se plenamente. É importante que o pastor, reconhecendo seus limites, saiba quando é o momento de encaminhar a pessoa para receber ajuda psicológica profissional, já que seus recursos podem se esgotar e a pessoa necessitar de um tipo específico de ajuda para a qual o pastor não estará preparado, a menos que, obviamente, ele seja, ao mesmo tempo, psicólogo ou psiquiatra. Adiante falaremos sobre encaminhamento.
A Psicologia Clínica tem-se desenvolvido muito após a Segunda Guerra Mundial como profissão que provê serviços de saúde mental para pessoas conflituadas. O psicólogo clínico (há também o educacional, industrial, genético, etc.) e o psiquiatra são os que lidam com conflitos mentais buscando solucioná-los. O psicólogo (faz Faculdade de Psicologia) não pode medicar e internar a pessoa em hospitais ou clínicas; ele atua com psicoterapia, testes de inteligência, personalidade, vocacional, entre outros, e aconselhamento. O psiquiatra (faz Faculdade de Medicina) pode medicar, internar e fazer tratamento psicoterápico e aconselhamento. Psicanalista é um título dado ao psicólogo ou psiquiatra que faz um curso de formação em Psicanálise, sendo esta uma técnica e teoria específicas de psicoterapia. Tais profissionais têm como princípios de ética acreditarem na dignidade e valor do ser humano, devendo procurar ajudar o cliente a aumentar a compreensão do homem, de si mesmo e de outros, e proteger o bem-estar de qualquer pessoa que venha a ser objeto de seu estudo. Não devem usar sua posição profissional, nem permitir que seu próprio serviço seja usado por outros para propósitos inconsistentes com estes valores.1
Mesmo que um psicólogo ou psiquiatra não seja cristão, ele é eticamente compromissado com o dever de respeitar o sistema de valores e crenças religiosas de seu cliente cristão que o procura para ajuda. Concordamos que o difícil é saber que profissional segue a ética! Entretanto, psiquiatras não adventistas são considerados perigosos, achando-se que só se deveria procurar os de nossa Igreja, o que, aliás, ainda é raro de se encontrar no Brasil e em outros países sul-americanos, infelizmente! Mais adiante faremos comentários sobre como saber qual profissional é confiável.
Há ainda um medo grande em relação à Psicologia por parte de muitas pessoas de nossa Igreja, sejam pastores, médicos, professores, membros leigos, etc., embora tal ciência estude as leis do comportamento humano, tentando explicá-las a fim de poder ajudar a pessoa conflituada psiquicamente, por terem sido violadas tais leis. A Sra. White mesma falou assim sobre a importância de se estudar a mente humana: “As ciências que tratam da mente humana… são boas em seu devido lugar.’’2 “Para conduzir almas a Jesus é preciso ter-se certo conhecimento da natureza humana e estudar a mente dos homens.”3 Também é muito importante esta declaração que, inspirada por Deus, ela nos deu: “A enfermidade da mente reina por toda parte. Nove décimos das enfermidades sofridas pelo homem têm aí seu fundamento.”4 Não se torna, então, importante estudarmos a fundo a verdadeira ciência psicológica, a psiquiatria e assuntos ligados ao tratamento e prevenção de distúrbios psicológicos ou mentais? Não podemos ajudar melhor as pessoas que sofrem emocionalmente ao nos prepararmos nos estudos desta ciência?
Os cristãos também sofrem psicologicamente. Não é uma incoerência que um fiel servidor de Jesus tenha angústias ou tristezas psicológicas. Há sofrimentos da “alma”, como conseqüência do pecado, na estrutura do ser humano; porém, há outros que são conseqüências de dificuldades vividas nos relacionamentos afetivos da infância, principalmente sendo sofrimentos muito fortes, para alívio dos quais se faz necessário tratamento psicológico ou psiquiátrico.
Uma pessoa conflituada emocionalmente tem a tendência inconsciente de ver a realidade de forma perturbada. E isto pode ocorrer em vários níveis. Sua percepção da religião e de como Deus é poderá estar também perturbada. Então, sua vivência ou prática religiosa poderá ser não muito saudável e coerente com a Verdade Bíblica. Recebendo ajuda psicológica, sua visão da realidade interna e externa melhorará e se ajustará, modificando os vários relacionamentos, consigo mesmo, com os outros e com Deus. Portanto, ao invés do que muitos acreditam, uma pessoa emocionalmente conflituada precisa de ajuda para viver a religião mais saudavelmente.
Que vem a ser religião saudável e não saudável? Há pessoas que têm a religião como um pesado fardo de culpa, um ritual, um autocastigo. Religião, para essas pessoas, significa “proibição de” ou “vida de sofrimento”. Suas conversas e até suas expressões fisionômicas revelam pesar, descontentamento e infelicidade. E é interessante que a Sra. White tenha falado que o Céu deve começar aqui, mostrando que o cristão deve ser uma pessoa alegre. Jesus era alegre. Isto não quer dizer ausência de sofrimentos, mas que há um sentido geral na essência do ser que tende para a alegria. Aqueles que sofrem psicologicamente, ao receberem ajuda profissional passam a viver tal essência de contentamento básico. “A religião pode ser uma força construtiva, criativa, afirmativa da vida, ou pode ser uma força sombria, repressiva e frustrante. Depende do modo como é compreendida e usada.”5
Vernon Shafer, Ph. D., psicólogo clínico adventista de vasta experiência, ex-membro de um comitê da Associação Geral para o estudo da psicologia sob o ponto de vista adventista, cita Clinebell, o qual preparou uma lista de 21 questões pelas quais podemos avaliar formas saudáveis e não saudáveis de pensamento e práticas religiosas. Alguns destes itens são os seguintes (aproveitemos para fazer uma auto-análise para vermos nossa posição quanto à nossa vivência religiosa):
1. Sua prática e pensamento religioso constroem pontes ou barreiras entre as pessoas?
2. Estimulam ou dificultam o crescimento de liberdade e responsabilidade pessoal interior?
3. Promovem maduro ou imaturo relacionamento com autoridades?
4. Produzem madura ou imatura consciência?
5. Produzem um fardo de culpa ou uma consciência (percepção) de perdão?
6. São suas preocupações básicas ligadas ao comportamento superficial ou à profunda saúde da personalidade?
7. Aumentam ou diminuem o prazer ou satisfação pessoal da vida?
8. Tratam as energias vitais do sexo e da agressividade de forma construtiva ou repressiva?
9. Promovem maduras ou presunçosas crenças mágico-religiosas?
10. Promovem amor e crescimento, ou medo e fixação (estagnação)?
11. Fortalecem ou enfraquecem a auto-estima ou a conscientização do valor pessoal de cada um como filho ou filha de Deus?6
É óbvio que o próprio conselheiro deve estar em boas condições psíquicas para poder atuar bem. E o pastor não está mais livre ou isento de conflitos psicológicos que os demais! Não é sua formação teórica como conselheiro (como não é a do psicólogo e psiquiatra), por mais extensa e profunda que seja, que o libertará de possíveis conflitos emocionais. Da mesma maneira nos parece que não é pela aquisição de conhecimentos teológicos que se adquire a santificação (equilíbrio espiritual), mas pelo constante relacionamento com o Pai, com Jesus e com o Espírito Santo através dos meios indicados por Ele em Sua Palavra e nos escritos do Espírito de Profecia.
Há importantes diferenças entre aconselhamento e psicoterapia. Aconselhamento é o que se presume o pastor-conselheiro faz, enquanto a psicoterapia é reservada para o profissional em saúde mental. Geralmente o aconselhamento se relaciona com ajudar pessoas a lidar de modo mais adequado com problemas não muito graves de sua vida. Ele é de curta duração, isto é, poucas entrevistas, e não se propõe a fazer mudanças radicais na personalidade. Lida com problemas atuais, algo relacionado com crises momentâneas, e não com problemas sérios de personalidade. Os conselhos são opiniões ou pareceres, geralmente muito pessoais, dados num “setting” não-médico. Já psicoterapia, é um método de tratamento psicológico que exige de quem a pratica uma formação extensa e cuidadosa. Visa atuar bem mais profundamente na personalidade da pessoa, explorando fatos emocionais dos relacionamentos da infância, e podendo ser aplicada também em pessoas que apresentam graves distúrbios da personalidade. É um tratamento mais demorado e feito num “setting” médico.7
Acreditamos que o pastor-conselheiro também deva fazer parte na equipe de saúde mental. Tecnicamente, tal equipe é composta de: psiquiatra, psicólogo, enfermagem psiquiátrica, assistente social psiquiátrica e terapeuta ocupacional. Mas, é importante que atentemos para o fato de que o pastor tem diferentes e múltiplas atividades com seus membros, em sua comunidade. Por exemplo, é natural que ele visite pessoas em seus lares sem convite especial. Também está facilmente acessível para aconselhamento informal e para pessoas que teriam grandes dificuldades de marcar consulta formal com um psicólogo clínico ou psiquiatra. Outro fato é que a maioria das pessoas de comunidades evangélicas procuram primeiro um pastor. Isto revela a importância de que ele saiba como encaminhar os casos que não pode ajudar ou como reconhecer seus limites. Também o pastor tem tradicionalmente atuado em situações específicas, tais como: casamento, nascimento, morte, batismo, doença, acidentes, etc. Nestas ocasiões o pastor exerce um papel fundamental no manter a saúde mental das pessoas.
O pastor-conselheiro, portanto, deve ser encarado como um generalista e colega dos especialistas na área de saúde mental. É importante, porém, que para funcionar como um colega profissional ele “adquira um certo grau de competência e capacidade para comunicação num nível profissional, a fim de estabelecer um estágio de mútua compreensão e respeito no relacionamento entre colegas”.8
O já citado Dr. Shafer dirige seminários sobre Aconselhamento Pastoral, Psicologia Pastoral e temas afins, para pastores interessados nesta área, e é conferencista em Psicologia Clínica no Walla Walla College, Estados Unidos. Em seu trabalho citado acima, ele enumera itens em relação aos quais os pastores que querem atuar como conselheiros deveriam receber treinamento e demonstrar competência, sendo os principais os seguintes:
1. Aconselhamento conjugal (pré e pós-casamento) e familiar.
2. Aconselhamento de apoio.
3. Aconselhamento em crises.
4. Aconselhamento para encaminhamento.
5. Aconselhamento informal.
6. Aconselhamento de grupo e liderança de grupo de crescimento.
Apesar de haver profissionais especializados numa das áreas acima, o pastor-conselheiro deve ser um generalista, tipo médico clínico geral, alguém que sabe o que está fazendo, mas que, reconhecendo suas limitações, apela para seus colegas especialistas.
Freqüentemente as pessoas que nos procuram para ajuda psicológica iniciam falando de sintomas que disfarçam a verdadeira natureza do seu problema. Requer-se, portanto, que aquele que atende tais pessoas (pode ser o pastor, o psicólogo, o psiquiatra, o médico) tenha tal sensibilidade e capacidade de percepção que identifique a “máscara” que as primeiras queixas representam, indo à pesquisa de fatores mais profundos que trazem sofrimento. E perigoso psicologizar ou espiritualizar tudo, isto é, achar que é só psicológico ou só espiritual o que a pessoa apresenta. Há sintomas psicológicos que estão ligados a distúrbios hormonais, metabólicos ou de outra origem orgânica (somática); há os de origem psíquica que se manifestam como distúrbios psicológicos, às vezes sérios, que podem ser erroneamente tidos como problemas espirituais. Conhecemos vários casos de pessoas supostamente assediadas por espíritos maus, mas que, na verdade, eram vítimas de surtos psicóticos carentes de medicação psiquiátrica para suster os sintomas. Houve um que, antes de o pastor pedir ajuda psiquiátrica, durante dois dias de constantes orações, cânticos, noite insone e cansaço, na expectativa de ser possessão diabólica, causou muito estresse à família e expôs para a vizinhança uma situação desagradável, a qual poderia ter sido resolvida em poucos minutos com um correto encaminhamento a um psiquiatra. Participamos também de casos em que houve verdadeira possessão diabólica. Há certas diferenças entre crises psiquiátricas e possessão, porém falaremos disso em outro artigo.
No atuar em aconselhamento, o pastor encontrará pessoas que terão sentimentos (conscientes ou não) de raiva ou irritabilidade dirigidos à autoridade em geral (pastor, pai, mãe, Deus, professor, etc.), exigindo, então, sensibilidade e capacidade para lidar com tais sentimentos do seu aconselhando sem trazê-los como algo pessoal, procurando ajudar o indivíduo a perceber tais sentimentos e a desenvolver atitudes mais equilibradas para com as figuras de autoridade. Também há os que tendem à dependência. São os que por qualquer coisa querem “falar com o pastor”. É preciso ensinar-lhes a resolverem seus próprios problemas e a adquirirem melhor capacidade de exercitar a vontade e fazer escolhas responsáveis.
Quanto a usar no aconselhamento conceitos e “linguagem” bíblica, ou não, há posicionamentos extremistas. Um é o que tende a secularizar o aconselhamento pastoral, fazendo com que o pastor se separe de seu papel pastoral. Outro é o posicionamento do chamado “Aconselhamento Bíblico”, como, por exemplo, o trabalho de Jay Adams.9 Gary R. Collins, Ph. D., professor e titular da Divisão de Aconselhamento Pastoral e Psicologia da Trinity Evangelical Divinity School, Deerfield, Illinois, USA, comenta: “Adams aceita a autoridade das Escrituras, mas faz a suposição debatível que Deus revelou tudo quanto precisamos saber acerca do aconselhamento dentro das páginas da Bíblia. A revelação escrita de Deus é mais clara do que aquela que não é escrita, e a Bíblia deve ser aceita como autoridade porque é inerrante e é a Palavra de Deus. Não segue, porém, que Deus revela todas as verdades acerca do homem ou acerca do Universo dentro das páginas da Bíblia. Muitas disciplinas acadêmicas descobriram verdades acerca do mundo de Deus que são consistentes com as páginas da Bíblia, mas não escritas ali. Por que, pois, devemos pressupor que a psicologia e a psiquiatria seculares são incapazes de descobrir qualquer verdade? Certamente, as conclusões destas ciências, e doutras, devem ser testadas contra a Palavra de Deus escrita, mas desconsiderar a psicologia, conforme fez Adams, talvez seja mais uma evidência de preconceito pessoal do que da exegese bíblica ou da análise racional… Numa tentativa de desacreditar a psicologia e edificar um sistema que seja consistente com a Bíblia, Adams às vezes dá a impressão de forçar as Escrituras para dentro de seu próprio sistema.”10 (Grifo do autor.)
Nunca há contradição entre verdade científica e revelação bíblica! Em relação à ciência psicológica e a Bíblia, a Sra. White afirma: “Os verdadeiros princípios da psicologia são fundados nas Escrituras Sagradas.”11
É preciso evitar os dois extremos. Para diferentes pessoas requer-se diferentes métodos de abordagem. Até mesmo uma só pessoa pode necessitar de diferentes abordagens em momentos diferentes. A Sra. White disse: “Variadas mentes não podem ser tratadas semelhantemente; além de tudo, se são ricas ou pobres, elevadas ou inferiores, dependentes ou independentes, necessitam amabilidade, simpatia, verdade e amor.”12
No próximo número desta revista complementaremos este artigo, falando sobre algumas características pessoais do bom conselheiro, como encaminhar alguém a um profissional e como saber se o profissional é confiável.
Referências Bibliográficas
1. Vernon W. Shafer, Ph. D. “A Shared Ministry, The Relationship of the Clinicai Psychologist and the Pastor Counselor”, Adventist Concepts of Psychology, Departamento de Educação da Associação Geral, 1977, pág. 92.
2. Ellen C. White, Mensagens Escolhidas, livro 2, pág. 352.
3. Ellen G. White, Serviço Cristão, págs. 225 e 226.
4. Ellen G. White, Conselhos Sobre Saude, pág. 324.
5. Vernon W. Shafer, Ph. D., op. cit„ pág. 96.
6. Idem, págs. 97 e 98. O Dr. Shafer cita o livro The Mental Health Ministry of the Local Church, Howard J. Clinebell, Nashville: Abingdon Press, 1972.
7. César V. de Souza, “Noções de Aconselhamento Para Conselheiros do Telepaz”, Rio, 1980. F. Lotufo Neto, “O Pastor e a Psicoterapia”.
8. Vernon W. Shafer, Ph. D., op. cit.. pág. 102.
9. Jay E. Adams, Conselheiro Capaz, Editora Fiel, São Paulo, 1977. Jay E. Adams. O Manual do Conselheiro Cristão, Editora Fiel, São Paulo, 1982.
10. Gary R. Collins, Ph. D., Ajudando Uns aos Outros, O Papel dos Cristãos no Aconselhamento, Sociedade Religiosa Edições Vida Nova. São Paulo, 1982, págs. 174 e 175.
11. Ellen G. White, Meditações Matinais, 1952, pág. 181 (edição em espanhol); Manuscrito 121, 1902; e My Life Today, pág. 176.
12. Ellen G. White, Guidelines to Mental Health, edição preliminar, Associação Geral dos ASD, 1966, pág. 485.
DR.CÉSAR VASCONCELOS DE SOUZA, psiquiatra do Hospital Adventista Silvestre, Rio de Janeiro