A mensagem de esperança contida em um dos mais fascinantes livros da Bíblia
O livro de Daniel contém narrativas dramáticas, que têm apelado a todas as gerações de estudantes das Escrituras. O autor retrata o grande conflito entre Deus e Satanás, revelando sua exteriorização em uma moldura político-religiosa que vai do exílio Babilônico até à segunda vinda de Cristo, com uma perspectiva mais ampla que seu próprio contexto histórico.
A fé dos quatro jovens hebreus fala aos filhos de Deus em tempos de crise. A história de Daniel na cova dos leões inspira fé. A loucura de Nabucodonosor desafia o estilo presunçoso de vida e ajuda a resgatar a fé no verdadeiro Deus. Como bem observou Tremper Longman, “os primeiros seis capítulos são simples histórias de fé exercida sob pressão”.1 Porém, sob essas narrativas, reside uma mensagem profunda. Os últimos seis capítulos, saturados de ricos simbolismos, têm acenado à imaginação de pesquisadores através da História.
O jovem Daniel, levado ao exílio durante o primeiro cerco de Jerusalém por Nabucodonosor II, rei de Babilônia, em 605 a. C., foi escolhido com outros três jovens a fim de serem treinados para o serviço real. Daniel prosperou, tornando-se um destacado estadista.
Natureza apocalíptica
O livro de Daniel desempenha um importante papel no desenvolvimento da “literatura apocalíptica”. D. S. Russel o considera “o primeiro e maior, entre todos os escritos apocalípticos judaicos”,2 embora P. D. Hanson, fundamentado em sua análise de Isaías, argumente em favor da presença do estilo apocalíptico em livros escritos antes de Daniel.3
A palavra “apocalíptico” origina-se do termo grego apocalypsis, encontrado no verso de abertura do Apocalipse, e tomou-se um nome adequado à literatura que partilha certas características especiais. Embora Daniel tenha sido o primeiro livro bíblico a desenvolver um extensivo uso de características apocalípticas, o Apocalipse foi o primeiro a dar nome a esse gênero de literatura. Ainda segundo as palavras de Tremper Longman, “Apocalipse… comunica um iminente senso de juízo, um sentimento de que a existência pode ter um fim a qualquer momento”.4
D. S. Russel define como essencialmente apocalíptica “a literatura do oprimido que não vê esperança para a nação simplesmente em termos políticos ou no plano da história humana. A batalha que eles travavam era espiritual; deveria ser compreendida não em termos de política e economia, mas em termos de poderes espirituais nos lugares celestiais. Assim, eram compelidos a olhar além da História, para a intervenção dramática e miraculosa de Deus”.5
Seções diferentes
O livro de Daniel foi escrito no contexto da crise do povo de Deus em Babilônia. Jerusalém estava em ruínas, e Judá fora devastada. Com o templo destruído, por que razão deveria alguém querer viver? Como poderia o povo de Deus encontrar o sentido de sua identidade? Daniel procurou levar conforto e ânimo àqueles que se encontravam nesse estado de angústia. Não sendo escrito primariamente como um tratado teológico para eruditos experientes, Daniel busca falar, primeiro e acima de tudo, ao coração. E, embora possamos travar renhida luta com a complexidade simbólica do documento, não devemos perder de vista nem passar por alto a mensagem divina, transmissora de confiança, segurança e esperança.
Conforme já foi visto, a primeira seção do livro cobre os capítulos 1 a 6; a segunda, os capítulos 7 a 12. Desde que a primeira seção abarca, em sua maior parte, eventos históricos do passado, relatados no tempo do escritor, podemos chamá-la de seção histórica. Considerando que a segunda metade compreende predições proféticas, que ainda deverão ser plenamente cumpridas, podemos identificá-la como seção profética ou escatológica.
Existem alguns contrastes distintos entre as duas seções. O agrupamento de eventos em duas seções não parece ser feito por acaso ou arranjo fortuito dos eventos. Na verdade, está claro que o autor não seguiu apenas uma ordem cronológica de acontecimentos. O guia dominante parece ter sido estilístico e estrutural. Ele colocou na seção histórica um grupo de ocorrências que partilhavam certas características comuns, enquanto os acontecimentos com diferentes características foram agrupados na seção profética. Uma vez que o autor estabeleceu as duas seções básicas e reuniu seu material de acordo com a categoria estilística, segue, então, em cada seção uma seqüência cronológica.
Seqüência de eventos
Daniel 5 provê uma importante cronologia para compreensão da seqüência dos eventos relatados no livro. Esse capítulo registra a queda de Babilônia durante os dias de seu último rei, Bel-sazar, e entrada em cena do Império me-do-Persa. O banquete de Belsazar teve lugar no décimo ano do seu reinado. Tendo em mente essa cronologia, notamos que certos eventos relatados na seção profética do livro (capítulos 7 a 12) realmente aconteceram antes das ocorrências descritas no capítulo 5. É digno de nota que a visão registrada no capítulo 7 ocorreu no primeiro ano do reinado de Belsazar (Dan. 7:1), antes da queda de Babilônia.
Os eventos do capítulo 9 ocorreram no primeiro ano do reinado de Dario (Dan. 9:1 e 2), antes do episódio de Daniel na cova dos leões, conforme registro do capítulo 6. Portanto, o agrupamento de materiais no livro tem sido determinado por outras considerações, além da mera cronologia. E nós devemos descobrir essas considerações, à medida que buscarmos descortinar o enredo central e a mensagem do livro.
Contrastando características
Diferentes características estruturais e de estilo separam as duas seções do livro (ver box).
Capítulos 1-6
- Escrito largamente em aramaico.
- Escrito em estilo simples.
- Contém histórias completas e curtas.
- Lances dramáticos em um contexto local.
- Pequeno remanescente afetado por crise.
- O adversário do remanescente é local.
- Relatos dramáticos de eventos passados.
- Imaginada vindicação divina.
Capítulos 7-12
- Escrito largamente em hebraico.
- Escrito em estilo simbólico.
- Contém profecias longas e em desdobramento.
- Lances dramáticos em um contexto cósmico.
- Remanescente cósmico enfrentando crise.
- O adversário do remanescente é cósmico.
- Apresentação dramática de eventos futuros.
- Prometida vindicação divina.
Daniel, um mestre na interpretação de sonhos e manuscritos no segmento histórico, experimenta constante instabilidade por causa de seus sonhos, na seção escatológica do seu livro. O homem que deixou perplexos os sábios de Babilônia, ao levá-los à compreensão do sonho de Nabucodonosor (Dan. 2), parece agora perplexo, diante de suas visões, e necessitando da ajuda de Gabriel, o intérprete angélico, a fim de obter esclarecimento do que lhe foi mostrado.
É interessante notar que os primeiros seis capítulos retratam uma série de crises que já tinham sido resolvidas no tempo em que o livro foi escrito. O leitor não é confundido quanto ao desfecho da história: cada uma delas é completa. E enquanto lemos o relato, verificamos como Deus entra em cena e dirige as crises do Seu povo para um fim vitorioso.
Ao contrário disso, os últimos seis capítulos apresentam uma série de megadramas em desenvolvimento. Enquanto uma visão leva à seguinte, o senso de confusão é intensificado. Depois da visão do capítulo 7, Daniel diz: “Quanto a mim, Daniel, o meu espírito foi alarmado dentro em mim, e as visões da minha cabeça me perturbaram” (Dan. 7:15). Tendo recebido a visão do capítulo 8, Daniel ficou temeroso, prostrou-se “com o rosto em terra” e desmaiou, enquanto o anjo tentava ajudá-lo a compreender a visão (Dan. 8:16-18).
Posteriormente, o profeta enfraqueceu e adoeceu, como resultado da experiência da visão (Dan. 8:27). O capítulo 10 relata o abatimento e o jejum de Daniel, por três semanas, enquanto ele contemplava as visões. No fim do capítulo 12, ele diz: “Eu ouvi, porém, não entendi; então eu disse: Meu Senhor, qual será o fim dessas coisas? Ele respondeu: Vai, Daniel, porque estas palavras estão encerradas e seladas até ao tempo do fim” (Dan. 12:8 e 9). Sem nenhum sinal de alívio expressado depois da segunda seção, os leitores deveriam esperar a intervenção final de Deus.
Unidade da segunda seção
Devido às características diferentes das duas seções do livro, alguns eruditos têm argumentado em favor de uma autoria dupla. Sugerem que a seção histórica foi escrita por um autor, e a seção profética, por outro autor. Entretanto, algumas conexões unem essas duas seções, favorecendo, assim, uma autoria ú-nica. Por exemplo, a linguagem das duas seções é entrelaçada. Os textos de Daniel 1:1-2:4 e 8:1-12 e 13 foram escritos em hebraico, enquanto Daniel 2:4-7:28, em aramaico. A seção histórica começa em hebraico e termina em aramaico, enquanto a seção escatológica começa em aramaico e termina em hebraico.
Por que deveria o autor da seção histórica utilizar dois idiomas para seu documento, e por que deveria o autor da seção escatológica usar os mesmos dois idiomas, em ordem reversa, para seu documento? Creio que o conceito de dois autores não trata das questões fundamentais do livro. Arthur Ferch demonstrou alguns traços unificadores que ligam as duas partes. Por exemplo, a soberania de Deus e a arrogância do inimigo juntamente com a passividade dos santos argumentam em favor da unidade do livro.6
Crises dramáticas
Conforme notamos, a seção histórica Jo livro de Daniel contém seis episódios curtos, cada um dos quais é completo em si mesmo. Cada história inclui uma série de ocorrências que eventualmente precipitam uma crise envolvendo o remanescente; o fiel povo de Deus. Daniel 1 introduz a crise de estilo de vida para esse povo. Iriam os filhos de Deus se comprometer com Babilônia, quanto ao que comer ou beber, ou exaltariam a Palavra de Deus? O segundo capítulo apresenta a crise de sabedoria e conhecimento. Em Babilônia, esses dois aspectos da vida eram altamente considerados. Prevaleceriam a sabedoria e o conhecimento humanos, ou o povo remanescente honraria a Deus, voltando-se para Ele e apontando-O como verdadeira fonte de conhecimento e sabedoria?
Daniel 3 retrata a crise de adoração. Adoraria o remanescente a imagem de Babilônia, ou adoraria e serviria a Deus? O capítulo 4 realça a crise de soberania. Iria Nabucodonosor exaltar sua própria habilidade para ser, pensar e fazer, ou reconheceria ele a soberania de Deus? Daniel 5 relata a crise de percepção e compreensão. Finalmente, Daniel 6 chega ao clímax com a crise de integridade. Cada crise tem como centro o remanescente fiel, focalizando a atenção sobre seu Deus. O Senhor soluciona cada crise em favor dos santos. Desse modo, a soberania divina prossegue controlando e organizando o tema deste livro.
Desígnio teológico
Daniel permanece como um farol iluminando um mundo envolvido em trevas cada vez mais profundas, controlado por déspotas estúpidos e desumanas coalizões do mal. Ellen White afirma: “Nos anais da história humana, o desenvolvimento das nações, o nascimento e queda dos impérios, aparecem como que dependendo da vontade e proeza do homem; a configuração dos acontecimentos parece determinada em grande medida pelo seu poder, ambição ou capricho. Mas na Palavra de Deus a cortina é afastada, e podemos ver acima, para trás e pelos lados as partidas e contrapartidas do interesse, poder e paixões humanos – os agentes do Todo-misericordioso – executando paciente e silenciosamente os conselhos de Sua própria vontade.”7
Os primeiros seis capítulos de Daniel são uma galeria de seis dramas microcósmicos, através dos quais a intervenção divina e a vindicação dos santos emergem como testemunho aberto do poder do Deus dos Céus. Em primeiro lugar, eles servem para apresentar o profeta Daniel e autenticar sua integridade profética. Ao apresentar uma série de histórias nas quais o profeta demonstra sua integridade pessoal, seu compromisso espiritual e habilidade para entender mistérios, também são estabelecidas suas credenciais proféticas.8
Em segundo lugar, esses primeiros seis capítulos preparam o leitor para as crises dos últimos seis capítulos. Somente aqueles que têm lido com sabedoria e discernimento os capítulos um a seis mantêm a confiança através dos capítulos sete a doze. A pergunta central de cada um dos seis primeiros capítulos é: “Podemos nós contar com Deus nas grandes questões da vida?” A certeza da resposta prepara teológica e espiritualmente o caminho para o desenvolvimento mais amplo dos dramas dos últimos seis capítulos. O leitor do tempo do fim, que deve enfrentar as incertezas de viver sob a ameaça dos inimigos cósmicos terá seis garantias prévias da fidelidade de Deus para com o remanescente. Temos base para segurança e confiança, ao nos movermos entre as crises maiores do tempo do fim.
Significado e relevância
Tempos apocalípticos freqüentemente suscitam perplexidade sobre o sofrimento dos que temem a Deus. Os santos se perguntam por que eles sofrem; encontram-se perplexos, porque Deus parece tão distante de sua premente situação. Essas não são questões novas, dos tempos modernos. Os santos em Babilônia também as enfrentaram.
Uma das funções da literatura apocalíptica é lembrar ao remanescente o seu lugar único e especial no plano de Deus. Rodeado pelo inimigo, ele pode correr o perigo de relegar-se a si mesmo, sua função e significado, ao papel de personagem insignificante, menor, no drama local. Porém, os escritos apocalípticos o faz lembrar que ele desempenha papel fundamental no drama cósmico.
Desde seus primórdios, a Igreja Adventista do Sétimo Dia tem visto a si mesma como um movimento apocalíptico, imerso na atenção e divulgação mundial de uma mensagem apocalíptica. Muitas coisas que afirmam nossa identidade são encontradas nos livros apocalípticos da Bíblia. Essa autocompreensão caracteriza nossa mensagem e nossa missão. Quando ela é removida do centro, o adventismo começa a sofrer uma crise de identidade que ameaça nosso lugar e destino únicos. Algumas vezes, sentimos que o fato de nos identificarmos como o remanescente parece uma reivindicação arrogante de superioridade em relação a outros. Porém, o remanescente tem um papel profético a desempenhar, e não pode ser deixado de lado em nome da modéstia.
Ser o remanescente é fruto da graça de Deus, não da conquista humana. O conceito bíblico de remanescente aponta os feitos de Deus: “Se o Senhor dos Exércitos não nos tivesse deixado alguns sobreviventes, já nos teríamos tomado como Sodoma e semelhantes a Gomorra” (Isa. 1:9). É o Senhor quem estabelece o remanescente. Como Paulo expressa, “assim, pois, também agora, no tempo de hoje, sobrevive um remanescente segundo a eleição da graça. E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça” (Rom. 11 ;5 e 6). Assim sendo, a correta compreensão do conceito de remanescente da graça não leva ao orgulho, mas à humildade.
Em Daniel, o remanescente demonstra atitude de humildade e confiante dependência de Deus. Os fiéis de Deus não se gloriam em seu status, mas, humildemente, glorificam e honram o Altíssimo. Daniel fala à igreja de hoje, desafiando o remanescente a viver triunfantemente pela graça de Deus.
Joel N. Musvosvi, deão do Seminário Teológico Adventista, Filipinas
Referências:
1Tremper Longmann III, The NIV Application Commentary: Daniel (grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1999), pág. 19.
2 D. S. Russel, The Method and Message of Jewish Apocalyptic (Filadélfia: True Westminster Press, 1964), pág. 16.
P. D. Hanson, The Dawn Apocalyptic (Filadélfia: Fortress Press, 1975).
4 Tremper Longmann, Op. Cit., pág. 177.
5 D. S. Russel, Op. Cit., págs. 17 e 18.
6 Arthur J. Ferch, Daniel on Solid Ground (Hagerstown, MC: Review and Herald, 1988), págs. 33-36.
7 Ellen G. White, Profetas e Reis, págs. 499 e 500.
8 Tremper Longman, Op. Cit., pág. 23.
“Ser o remanescente é fruto da graça de Deus, não da conquista humana“