A relação entre a igreja e a Trindade em 1 Coríntios 12
A chegada da pós-modernidade e de sua cosmovisão, que rejeita as metanarrativas e a existência de verdades absolutas e, ao mesmo tempo, abraça o subjetivismo e o relativismo,1 tem gerado perguntas e desafios para a mensagem cristã como um todo. Millard Erickson afirmou que a tendência dessa visão é fugir das definições e das declarações objetivas sobre a essência dos objetos de estudo, dando ênfase ao que determinado objeto faz. Assim, a ideia não é mais compreender a essência das coisas, mas suas funções práticas. Erickson escreveu: “A geração pós-moderna tende a ser menos focalizada na argumentação e definição racionais e mais concentrada na experiência e nas emoções.”2
Dentro do contexto teológico, essa visão propõe que “a ênfase está no que Deus está fazendo, não em quem Ele é. Consequentemente, é dada mais atenção à missão da igreja do que à sua identidade e limites”.3 Sob essa ótica, encontra-se mais um fator que contribui para a grande variedade de manifestações cristãs com diferentes e subjetivas compreensões. Qual caminho devemos seguir?
O que a Bíblia sugere? O propósito deste artigo é destacar princípios bíblicos para um “modelo” de igreja fundamentado nas Escrituras, com base nos versos iniciais de 1 Coríntios 12.
É importante frisar que a Bíblia não possui um índice temático sistematizado sobre cada assunto, mas seu uso de metáforas e imagens é bastante rico e nos ajuda a compreender sua teologia. Nesse sentido, ao observar como a Bíblia aborda o tema da igreja, Avery Dulles disse: “A Bíblia, quando procura iluminar a natureza da igreja, fala quase que completamente através de imagens, a maioria delas […] evidentemente metafórica.”4 Entre as metáforas existentes para a igreja na Bíblia – em especial as utilizadas pelo apóstolo Paulo, o grande fundador de igrejas do Novo Testamento –, a mais destacada é a metáfora do corpo de Cristo.
1 Coríntios 12
Ao passo que 1 Coríntios é uma epístola na qual Paulo buscou responder a várias questões específicas, seu conteúdo não é desprovido de princípios teológicos amplos. Na verdade, é justamente em um contexto específico que se pode perceber, de acordo com as críticas e orientações do apóstolo, qual é sua compreensão sobre a igreja.
No capítulo 12, Paulo descreveu com mais detalhes a metáfora do corpo de Cristo. Essa seção faz parte de um contexto maior que trata sobre o uso dos dons espirituais, que vai até o capítulo 14. Logo nos versos iniciais, após apresentar o tema em questão e mencionar a vida pregressa dos irmãos de Corinto, ele fez uma correção na base do pensamento dos coríntios a respeito dos dons espirituais e da igreja. Nesses versos há uma exposição dos “fundamentos teológicos como base para a discussão da questão”,5 e não somente uma admoestação restrita a uma circunstância específica. Uma atenção especial será dada a essa fundamentação teológica.
A primeira observação que se pode fazer, a partir de 1 Coríntios 12:3, é que o Espírito Santo é o grande Guia do crente e da igreja. Se alguém está imbuído do Espírito, não blasfemará contra o nome de Jesus, mas O proclamará como seu Senhor. Portanto, a igreja de Deus deve ser movida pelo Espírito Santo, e suas ações e afirmações devem vir de corações convertidos por essa Pessoa divina.
Dois aspectos perceptíveis nas cartas paulinas são: a importância da igreja no desenrolar do plano da redenção e sua descrição em termos trinitários. Em relação ao primeiro aspecto, Herman Ridderbos afirmou que a igreja faz parte do “conteúdo central da pregação de Paulo. Ela foi incluída continuamente em tudo o que foi dito sobre a obra redentora de Deus em Jesus Cristo”.6 Para esse autor, o cumprimento do plano da redenção conta constantemente com a participação ativa da igreja.
Sobre o segundo aspecto, Paul Minear disse: “A igreja não tem uma natureza que possa ser prontamente definida simplesmente por observação, não importa quão direta seja, à própria igreja. Sua vida brota, é nutrida e orientada em direção à plenitude da glória do Deus triúno.”7 Ou seja, não se pode inferir o que é igreja apenas olhando para o que ela tem feito hoje ou na história, mas sua compreensão deve ser derivada da razão e da missão para as quais Deus planejou sua existência. Em última instância, uma igreja bíblica deve seguir os parâmetros escriturísticos para sua fundação.
Helen Doohan percebeu a relação íntima entre a Trindade e a igreja nos escritos paulinos: “A compreensão de Paulo de Deus como Pai e Filho, manifestados na comunidade e no cristão pelo
Espírito, é central para sua compreensão de igreja.”8 Portanto, para compreender melhor a igreja, devemos partir da compreensão da Divindade e dos Seus propósitos.
Voltando ao texto de 1 Coríntios 12, a Bíblia diz: “Ora, os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo. E também há diversidade nos serviços, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade nas realizações, mas o mesmo Deus é quem opera tudo em todos” (1Co 12:4-6). Aqui podemos perceber uma estruturação do modus operandi da igreja com base nas ações da Trindade. Existem três palavras-chave conectadas às Pessoas divinas: “dons” (charisma) e o Espírito; “serviços” (diakonia) e Cristo; e realizações (energema) e o Pai. Cada uma delas possui conexões teológicas profundas e informa um modo de atuar da igreja em conexão com as diferentes manifestações da Trindade.
Dons
A primeira palavra dessa tríade tem sua origem no termo grego charis (graça). Trata-se do “ conceito fundamental que mais claramente expressa sua compreensão do evento da salvação […], ocorre somente no corpus paulino com um eco em 1 Pedro” e normalmente “em contexto soteriológico”.9 Esse mesmo termo também está associado na Septuaginta às palavras hebraicas hen (graça) e hesed (misericórdia), com fortes conotações religiosas relacionadas à aliança e, portanto, com o projeto divino de salvação. Pode ser traduzido como “um dom da graça, um dom livre, um favor, um dom espiritual”.10 Portanto, charisma tem origem na graça divina. É um termo usado por Paulo no contexto do plano da salvação e significa algo que é concedido à igreja sem merecimento, um favor impossível de ser conquistado sem a ajuda de Deus.
Para o apóstolo, a distribuição dos dons para o cumprimento do plano da salvação está ligada à atuação do Espírito Santo na igreja. “Charisma está ligada com charis [graça] por um lado e a pneuma [espírito] por outro.”11
Serviços
A segunda palavra está associada ao verbo diakoneo e ao substantivo diakonos, que carregam os seguintes significados: “Ser um servo, atendente, doméstico, servir, atender; ministrar a alguém; atender à mesa e oferecer comida e bebida para os convidados.”12 Esses termos podem se referir a diferentes tipos de serviço como: servir à mesa, serviço de amor, proclamação da Palavra, missão e “para todos os serviços na comunidade cristã”.13
Nos escritos paulinos, a palavra diakonos traz consigo o conceito de “ministro” em suas diversas aplicações cristãs, como: ministro da nova aliança; da justiça; de Cristo; de Deus; do evangelho e da igreja. O próprio Cristo é chamado de ministro [diakonos] da circuncisão (Rm 15:8).
O verbo “diakoneo deriva da pessoa de Jesus e do Seu evangelho […] [da] ação amorosa em favor do irmão ou do próximo”.14 Em Marcos 10:45 fica claro o padrão celestial da abnegação de Cristo para o serviço: “Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a Sua vida em resgate por muitos”. Portanto, as palavras relacionadas a serviço (diakonia, diakoneo e diakonos) no NT estão conectadas à pessoa de Cristo, Sua abnegação, serviço e morte sacrifical. Para Paulo, Cristo, o Senhor, é Aquele que serve de maneira mais completa, o Diakonos por excelência.
Realizações
A terceira palavra tem como base o verbo ergazomai e o substantivo ergon, que têm como significados básicos “trabalhar, estar ocupado em alguma coisa; criar, produzir, realizar e processar”.15 Na Septuaginta, ergon é usada em Gênesis para descrever a obra de Deus (Gn 2:2, 3), mas também representa os atos de YAHWEH na história, demonstrando a Israel Sua fidelidade à aliança, podendo significar também “milagre”.
Nos evangelhos sinóticos, essa palavra “está relacionada com a obra de Cristo […], onde abarca Sua obra efetiva em atos e palavras”.16 De maneira geral, no NT, além da referência às obras do próprio Deus, é possível perceber Sua atividade salvífica em todas as obras individuais dos seres humanos relacionadas à vontade de Deus.17 O uso de ergon nos escritos paulinos pode ser resumido assim: “O ergon tou Theou [obra de Deus] em Rm 14:20 é a oikodome [edificação] da comunidade. […] Essa atividade de Deus se dá por meio do Espírito. É perceptível na obra missionária do apóstolo, 1Co 9:1 to ergon mou hemeis este en kyrio [‘não sois fruto do meu trabalho no Senhor?’]. A fundação da igreja cristã corresponde à criação do mundo. Em ambos os casos temos uma obra de Deus por meio da Palavra ou do Espírito. O apóstolo não está só na execução da obra de Deus. Seus auxiliares também fazem essa obra (1Co 16:10; Fp 2:30). Mesmo a ação mais secular em acordo com o interesse da obra missionária cristã pode ser considerada como ergon kyriou [obra do Senhor].”18
Seu significado, portanto, está associado a todo tipo de obra que resulta em uma ação conectada à vontade divina. No NT a palavra energema aparece apenas duas vezes, ambas em 1 Coríntios 12. Seu significado básico é: “Aquilo que foi feito; resultado de uma operação.”19 Curiosamente, o termo está associado majoritariamente com as ações espirituais, sejam elas divinas ou não.20
Portanto, toda atividade salvífica é, no fim das contas, efetivada por Deus. O resultado das ações no contexto de salvação, sejam elas humanas ou não, é comandado por Ele. Nesse contexto, Romanos 8:28 elucida ainda mais esse conceito: “Sabemos que todas as coisas cooperam [synergeo] para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o Seu propósito”. Deus atua por intermédio das ações livres das pessoas para conduzir Seu plano de salvação e, por meio de todos os acertos e erros do mundo criado e de suas criaturas, Ele conduz Seus objetivos com efetividade. O ser humano é apenas um cooperador de Deus: “Porque de Deus somos cooperadores [synergoi]” (1Co 3:9). Os planos e a vitória são Dele.
Essa realidade de Deus como a fonte para os resultados das ações espirituais da igreja já pode ser percebida anteriormente na epístola: “Eu plantei, Apolo regou; mas o crescimento veio de Deus. De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimento” (1Co 3:6, 7).
Outro versículo importante para compreensão da intenção de Deus com os dons é: “A manifestação do Espírito é concedida a cada um visando a um fim proveitoso” (1Co 12:7). O propósito é “ser útil”, ou “proveitoso” para a comunidade, não para benefício próprio de maneira egoísta. A palavra grega symphero (“um fim proveitoso”) traz a ideia de “carregar ou trazer junto; levar juntamente com ou ao mesmo tempo; carregar com outros; recolher ou contribuir a fim de ajudar; ajudar, ser produtivo, ser útil”.21
Conclusão
Em resumo, pode-se compreender que a igreja de Deus deve ser organizada para ser o instrumento do Deus triúno para a salvação da raça humana. Além de buscar nas Escrituras as prescrições divinas, a igreja deve buscar e contar com a presença, guia e atuação constante do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Alguns princípios podem ser derivados deste estudo: (1) a Trindade guia a igreja como Seu instrumento na obra da salvação; (2) as ações da Divindade no contexto do plano da salvação são complementares e coordenadas; (3) os membros integrados à igreja são guiados pelo Espírito Santo e Dele recebem dons (charisma) para contribuir na missão da igreja, que é levar o evangelho ao mundo; (4) os dons, embora concedidos aos membros, pertencem à igreja como um todo e devem ser usados conforme o Senhor os dirige; (5) os membros devem ser incluídos em ministérios/serviços (diakonia) para uso dos dons em serviço abnegado; (6) Deus, o Filho/Senhor, inspira e coordena os membros por meio desses ministérios/serviços; (7) Deus, o Pai, atua na implementação do plano de salvação como uma espécie de arquiteto geral, garantindo a efetividade (energema) das ações realizadas segundo Sua vontade; (8) os ministérios devem contribuir para o crescimento geral da igreja e não devem atuar de maneira separada ou independente dela; (9) nenhum membro possui para si ministérios, mas contribui como parte dos ministérios que devem ser dirigidos para um bem comum; (10) os ministérios em ação coordenada irão contribuir para a edificação da igreja e para agregar mais membros a ela.
PALAVRA GREGA | PESSOA DA TRINDADE | SIGNIFICADO TEOLÓGICO |
Charisma | Espírito | Tem origem na graça da Divindade, aparece em Paulo no contexto do plano da salvação e significa algo que é recebido pela igreja sem merecimento e impossível de ser conquistado sem a ajuda divina. |
Diakonia | Filho | As palavras relacionadas a serviço (diakonia, diakoneo, diakonos) no NT estão conectadas à pessoa de Cristo, Sua abnegação, serviço e morte sacrifical. Para Paulo, Cristo, o Senhor, é Aquele que serve de maneira mais profunda e completa, o Diakonos por excelência. |
Energema | Pai | Toda atividade salvífica é, no fim das contas, efetivada por Deus, o Pai. No contexto da salvação, o resultado [energema] final das ações humanas é comandado por Ele. |
Peterson Santos, professor de Teologia no Unasp, Engenheiro Coelho
Referências
1 Jean-François Lyotard, A Condição Pós-moderna (Rio de Janeiro: José Olympio, 2011).
2 Millard J. Erickson, Teologia Sistemática (São Paulo: Vida Nova, 2015), p. 994.
3 Erickson, Teologia Sistemática, p. 994.
4 Avery Robert Dulles, Models of the Church (Nova York: Double Day, 2002), p. 11.
5 David E. Garland, “1 Corinthians”, em Baker Exegetical Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Baker Academic, 2021), p. 917, livro digital.
6 Herman N. Ridderbos, Paul: An Outline of His Theology (Londres: SPCK, 1975), p. 327.
7 Paul S. Minear, Images of the Church in the New Testament (Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 2004), p. 12.
8 Helen Doohan, Paul’s Vision of Church (Wilmington, DE: Michael Glazier, 1989), p. 106, grifos acrescentados.
9 Hans Conzelmann, “charis, charisma” em Theological Dictionary of the New Testament, ed. Gerhard Kittel, trad. Geoffrey W. Bromiley (Grand Rapids: Eerdmans, 1964), v. 9, p. 393.
10 Robert L. Thomas, “charisma” em New American Standard Hebrew-Aramaic and Greek Dictionaries (Anaheim: Foundation Publications, 1998).
11 Conzelmann, “charis”, Theological Dictionary of the New Testament, v. 9, p. 403.
12 James Strong, “diakoneo”, em Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong (Sociedade Bíblica do Brasil, 2002).
13 Lothar Coenen e Colin Brown, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento (São Paulo, SP: Vida Nova, 2007), p. 2343.
14 Coenen e Brown, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 2344.
15 Coenen e Brown, p. 2536.
16 Coenen e Brown, p. 2539.
17 Georg Bertram, “ergon, ergazomai, ktl,” em Theological Dictionary of the New Testament, ed. Gerhard Kittel, trad. Geoffrey W. Bromiley (Grand Rapids: Eerdmans, 1964), v. 2, p. 642.
18 Bertram, Theological Dictionary of the New Testament, v. 2, p. 643.
19 Strong, “energema”, em Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong (Sociedade Bíblica do Brasil, 2002).
20 Bertram, Theological Dictionary of the New Testament, v. 2, p. 653.
21 Strong, “symphero”, Léxico.