Muitas vezes o pastor quer agradar e acaba desagradando.
Imagine uma jovem de 15 anos na igreja que passou a usar brincos. Ou um garotão da mesma idade que começa a frequentar o salão de jogos eletrônicos mais próximo de sua escola. Ambos são batizados e vão regularmente à Escola Sabatina, mas alguns membros da comissão da igreja descobrem, e começam a pressionar você, o pastor, a tomar uma medida disciplinar urgente. E aí está você entre a cruz e a espada.
Situações parecidas com a citada são comuns no ministério pastoral. Elas geram tensão e desgaste emocional, porque você sabe que o modo como se posicionar poderá agradar ou não a Deus; ou ferir tanto a sensibilidade de adolescentes quanto a de líderes da sua igreja. A questão não é tão simples: Como você aplicará a cruz e a espada?
Façamos o teste. Escolha apenas uma resposta e assinale com um x a medida mais cabível:
( ) Avisar imediatamente aos pais desses jovens o que está acontecendo.
( ) Desconhecer o fato, considerando que isso é uma coisa passageira.
( ) Avisar aos membros inquietos com o problema: o assunto irá para a próxima comissão; mas primeiro você pretende visitar os infratores.
( ) Conversar pessoalmente com esses jovens sobre o assunto.
Entendemos a cruz como símbolo do cristianismo e da mais elevada expressão de amor e sacrifício. A espada é definida como um instrumento de defesa ou ataque. A espada e as normas têm muito em comum. Inúmeras vezes ambas têm sido usadas para machucar, como armas de repressão e policiamento.
Cristo e os padrões religiosos
Quando a pecadora foi surpreendida em flagrante adultério e os fariseus a trouxeram a Jesus, essa questão ficou bem clara. Aqueles homens tinham motivo de sobra para apedrejá-la. Estavam fundamentados na lei de Moisés. E queriam fazer uso da norma para ferir e matar aquela pobre criatura. Cristo não concordou com eles, afinal de contas eram cúmplices e responsáveis por aquela situação. Na realidade, todos deveriam ser apedrejados, mas Cristo não partiu para a medida drástica. Conforme o texto, Ele disse à mulher: “Nem Eu tão pouco te condeno; vai, e não peques mais.”
“Cristo frequentemente violava os padrões religiosos contemporâneos. Contudo, substituía-os por modos de vida menos específicos – porém mais desafiadores. Se Ele andasse visivelmente entre nós hoje, posso imaginá-Lo castigando os que criticam uma jovem que está usando brincos. Mas ao mesmo tempo Ele nos lembraria de deixar a simplicidade marcar todo o nosso estilo de vida, e não meramente evitar certos enfeites. É muito mais fácil para nós evitarmos algumas joias insignificantes do que abandonarmos os melhores carros ou as maiores casas que podemos comprar.” -Lição da E. S. dos Jovens, 6/8/93.
Os princípios são regras universais para guiar nosso relacionamento em todos os níveis. Geralmente são valores abstratos, tais como simplicidade, cortesia, obediência, amor, perdão e igualdade. As normas são aplicações específicas desses princípios, e caducam para Deus quando perdem essa finalidade.
Identidade cultural e missão
Os Amish são o exemplo mais conhecido na América de religiosos que perderam a perspectiva correta das normas. Eles têm sua origem nos anabatistas da Suíça, um povo fiel que manteve a chama da verdade durante a Idade Média. Mas, hoje, os Amish estão subdivididos e continuam formando novas subdivisões. O motivo das desavenças gira em torno de normas que protegem a identidade social e cultural do grupo, como a cor e o estilo das charretes e das roupas, a largura da aba do chapéu dos homens, ou se devem usar um ou dois suspensórios. Eles também rejeitam a cultura contemporânea, os veículos motorizados ou qualquer outra inovação da tecnologia moderna.
Como os Amish, necessitamos de normas que dêem uma identidade e nos mantenham unidos como igreja universal. Devem ser um muro, sempre protegendo o rebanho de Deus, e jamais um motivo para a rejeição, contendas e divisões internas. O pastor adventista obteria mais sucesso se usasse as normas da igreja somente como meio de defesa dos princípios.
Nunca a igreja deixará de ter aqueles que usam as normas para policiar o comportamento alheio. Considerando que a maioria desses irmãos exerce influência nas decisões administrativas, o líder prudente, por sua vez, evita assumir posições radicais com essas pessoas (refiro-me ao confronto direto ou ao comprometimento com suas ideias extremistas). O mesmo eu diria quanto aos “liberais”. O que a comunidade mais espera de seu pastor é um relacionamento imparcial e amistoso com as ovelhas, dentro de princípios expressos na Bíblia.
O dever do pastor é estar alerta para a possibilidade desse tipo de ação – voltada exclusivamente para a preservação da identidade social ou cultural – prejudicar a missão da igreja. Custou muito caro para o judaísmo a concentração gradual na preservação do formalismo. Embora Deus admitisse suas tradições culturais, elas tornaram-se barreiras que impediram, por parte de Israel, a expansão de um movimento de evangelização mundial e a conversão de outras nações. Como declarou o profeta Oséias: “Israel é uma videira estéril; dá fruto para si mesmo” (Oséias 10:1, tradução Trinitária).
O Dr. Gottfried Oosterwal, professor na Andrews University, conta que, em 1957, o secretário da Divisão da China, Pastor David Lin, fez uma avaliação crítica das práticas e da política missionária adventista naquele país. Ele deixou bem claro porque a Igreja não podia avançar: “A Igreja Adventista na China é uma instituição estrangeira.” Os missionários tentavam transportar e implantar toda a bagagem cultural que eles traziam dos Estados Unidos e da Europa, sem respeitar os valores milenares da cultura oriental. Agora, depois de as portas da China estarem fechadas por décadas, a Igreja ali é inteiramente uma planta nativa e seu crescimento é explosivo.
Quando a Igreja Adventista começou a esbarrar com um problema parecido na Europa, por causa de algumas restrições que os americanos impunham aos novos adventistas europeus, a irmã White deu uma orientação que vale tanto para nosso relacionamento com os que estão chegando como com os veteranos na fé: “Concordai com o povo em todos os pontos em que podeis coerentemente assim fazer. Vejam eles que amais suas almas, e quereis, tanto quanto possível, estar em harmonia com eles. Se em todos os esforços se revelar o amor de Cristo, Deus regará a semente lançada, e a verdade germinará e trará fruto para Sua glória” – Evangelismo, pág. 141.
Cristo julgado liberal
Sempre que tratarmos de problemas disciplinares, não importa o que decidamos, sempre alguns pensarão que somos severos, e outros nos julgarão liberais e brandos demais. O Mestre não fugiu à regra. “Quando Jesus, em Seu caráter e Sua obra, apresentava aos homens os santos, generosos e paternais atributos de Deus, e lhes mostrava a inutilidade de meras formas cerimoniais de obediência, os guias judaicos não recebiam nem compreendiam Suas palavras. Achavam que Ele Se demorava muito ligeiramente nos reclamos da lei; e quando lhes expunha as próprias verdades que constituíam a alma do serviço que lhes era divinamente indicado, eles, olhando apenas ao exterior, acusavam-nO de buscar derribá-la” – O Maior Discurso de Cristo, pág. 46.
David Newman, editor da revista Ministry, diz que “Deus por séculos está tentando ensinar ao Seu povo qual é o papel das normas dentro do plano da salvação. Mas constantemente as pessoas fazem das normas um fim em si mesmas. O Pai celestial nos deu preceitos para que desenvolvêssemos um relacionamento íntimo com Ele. entristecemos a Deus quando colocamos esses preceitos no lugar que pertence a Ele” –Ministry, outubro/89, pág. 18.
“A missão de Cristo era engrandecer a ‘lei, e a tomar ilustre (ou gloriosa)’ (Isa. 42:21, Trad. Trinitária). Ele devia mostrar a natureza espiritual da lei, apresentar seus princípios de vasto alcance, e tomar clara sua eterna obrigatoriedade” – O Maior Discurso de Cristo, pág. 46. A lei de Deus é uma norma absoluta, cujas regras são aplicadas a todos os tempos, a todos os povos e a todas as circunstâncias. Além do decálogo, Deus deu ao homem outras normas que foram temporais e circunscritas a certas regiões e culturas. Algumas já perderam seu objetivo e validade.
A casca e a polpa
A Lei dos Dez Mandamentos permanece como uma bênção indescritível. O que o salmista viu de tão deslumbrante nesta Lei a ponto de declarar: “Suspiro, Senhor, por Tua salvação; a Tua lei é todo o meu prazer”? Davi descobriu sabor. Não apenas porque seu paladar fora refinado pelo Espírito Santo, mas porque o mandamento de Deus em si próprio é “bom” (Rom. 7:12).
Compreendo que para cada norma da igreja, inclusive os Dez Mandamentos, tornar-se apetitosa como foi para Davi, ela deve ser experimentada como uma fruta. Isso mesmo, uma fruta com casca e polpa. Embora eu coma algumas frutas com casca e tudo, sempre considero a polpa mais deliciosa do que a casca – mesmo se tratando de uva, maçã ou pêra. Nem por isso desvalorizo a casca. Além dela possuir elementos nutritivos, protege a polpa da infiltração de vermes ou outros intrusos que estragam o sabor natural e as substâncias úteis do alimento.
As normas saudáveis protegem “princípios divinos de vasto alcance”. Por isso, para sentirmos o sabor da amizade (um princípio abstrato), certos formalismos (normas) devem ser observados. Apertamos as mãos quando nos encontramos. Tocamos a campainha da casa do nosso amigo quando o visitamos e aguardamos à porta, pacientemente, até que ele nos atenda. Também seguimos uma porção de outras etiquetas com muita espontaneidade, quase imperceptivelmente.
Cristo definiu quais os princípios básicos da Sua santa Lei, quando arguido por um fariseu. “Respondeu-lhe Jesus: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas” (Mat. 22:37-40).
Na condição de intérpretes da lei, os fariseus davam mais ênfase aos rituais do que aos princípios. Cristo os aprovou por valorizarem as normas, mas deixou claro que estavam deturpando a religião: comiam a casca e desprezavam a polpa; “Dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da lei, a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas sem omitir aquelas” (Mat. 23:23).
De vez em quando, estamos seguindo o mesmo procedimento religioso; vira e mexe, estamos comendo cascas sem a polpa. E -não raramente – fazemos doce de casca dos mandamentos e jogamos fora os princípios.
O mandamento do sábado é uma fruta deliciosa dada por Deus para o nosso bem-estar em todos os sentidos. “O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Mar. 2:27). Até esse mandamento tem casca e polpa. E Deus espera que saibamos tirar proveito de ambos. Infelizmente, alguns sabatistas estragam o sábado. Concentram-se somente nos limites do sábado ou nas coisas que não devem fazer para desagradar a Deus, e o dia de sábado passa e eles não provam da polpa.
Por outro lado, tenho amigos evangélicos que não questionam o princípio do sábado: “Adorai aquele que fez o céu, a terra, e o mar, e as fontes das águas” (Apoc. 14:7), mas rejeitam as normas. Não dão a mínima atenção à integridade da casca, que os discípulos de Jesus fizeram questão de respeitar: “Era o dia da preparação e começava o sábado. E no sábado descansaram, segundo o mandamento” (Luc. 23:54 e 56). Dizem eles que qualquer dia da semana pode ser o sábado. Desprezam a norma imutável de Deus, e ficam com uma fruta estragada e sem gosto.
Paulo concluiu que “a lei é boa, se alguém dela se utiliza de modo legítimo” (I Tim. 1:8). Somente quem se submete humildemente ao Espírito Santo e à Palavra de Deus recebe a correta instrução de como dispor da “espada” (a utilização disciplinar da lei dentro da igreja), ou como mastigar o “fruto” (o aproveitamento pessoal dos benefícios da lei).
Davi sintetizou tudo isso que tentei dizer, numa frase: “A lei do Senhor é perfeita, e restaura a alma” (Salmo 19:7).