“Ao tomar a nossa natureza, o Salvador ligou-Se à humanidade por um laço que jamais se partirá.”
A encanação não é um mero acontecimento adventício do qual Deus Se vale para impressionar e demonstrar poder. O Senhor não efetua nenhum milagre, não realiza nenhum acontecimento sobrenatural sem que tenha um propósito definido. No caso da encarnação, o propósito em vista é inteira mente soteriológico e redentivo.
Como disse Langston, “a encarnação é o grande princípio da revelação de Deus. Este método de encarnar a verdade não foi escolhido arbitraria mente, porém era o único método pelo qual Deus poderia revelar-Se ao homem em toda a Sua plenitude.”1
Poderiamos então dizer que a encarnação é a culminância de um plano anteriormente elaborado e a concretização de uma promessa. E seu grande mistério é Deus Se revestindo da humanidade com finalidade redentiva. É profundo esse mistério. E ele avoluma- se não somente pelo fato do Divino tornar-Se humano, mas também na maneira em que ele é expresso na vida de Jesus: “a idéia da encarnação, o grandioso mistério da piedade, não deve ser confinada ao mero nascimento de Cristo, mas deve ser estendida a to da a Sua vida divino-humana, à Sua morte e à Sua ressurreição.”2
Deus não tencionara revelar somente os Seus pensamentos, senão manifestar a Sua própria pessoa. E somente em Jesus tal objetivo seria alcançado.
A encarnação fere os moldes racionais. “Como se poderia obrigar alguém a aceitar que em Jesus de Nazaré, um Ser histórico, o homem como interrogação infinita e o mistério infinito de Deus se unam como resposta absoluta? Que aqui o mesmo é Deus e homem?”’
Absorto diante desse mistério, João procurou retratá-lo: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. E o Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (João 1:1 e 14). E Paulo acrescenta que Ele esvaziou-Se tomando a forma de servo (Fil. 2:6 e 7).
É interessante notar que, no início do seu evangelho, João não se detém para fazer uma apresentação pessoal como escritor, nem para dar provas de que seus escritos merecem confiança, muito menos para mencionar o seu próprio nome. Esqueceu-se de tudo isso, extasiado diante do mistério. Com singela precipitação e sem esforço algum para comprovar suas pretensões, ou as do seu maravilhoso tratado, lança perante o mundo toda a torrente de luz que lhe vem sobre a doutrina da encarnação.
Suas palavras se revestem de beleza e profundidade ao declarar que “o Verbo Se fez carne e habitou entre nós”. Nessa altura somos levados a fazer algumas perguntas: Quem é o Verbo? Quem é a carne? Como se explica essa misteriosa união? Qual o propósito de Deus neste mistério?
O Verbo e a carne
Esse Verbo é Deus em essência. É o logos divino; a Palavra viva. Nas pala vras de João, Cristo Jesus, nosso Se- nhor, Filho de Deus, eterno e bendito pelos séculos, por quem foram feitas to das as coisas é Deus. Por isso Jesus ex pressou: “Quem Me vê a Mim vê o Pai” (João 14:9). Mas esvaziou-Se, velou a Sua glória ao assumir a forma humana e “habitou entre nós, cheio de graça e de verdade”.
A carne somos nós, seres humanos, manufatura frágil e transitória, feita do pó e destinada a voltar ao pó, limitada ao tempo e ao espaço.
No livro escrito aos cristãos de Roma, a carne é usada em diferentes sentidos. Primeiro, o sentido corporal (Rom. 2:28). Em segundo lugar, o sentido de descendência ou família (Rom. 1:3). Em terceiro lugar, o sentido de humanidade (Rom. 2:28). Finalmente, no sentido de natureza humana, fraca e defeituosa (Rom. 6:16).
Com a queda, a natureza humana tomou-se pecaminosa e degenerada. Assim, estar na carne é ser um não regenerado; é estar em inimizade contra Deus. Como estrutura humana, a carne é transitória e implica morte. É um ele mento perecível.
Entre a carne perecível e o Verbo eterno, há um contraste tão grande e uma distância tão imensa que é impos sível retratar em palavras. São dois ex tremos completamente opostos.
O mistério
O grande mistério é a união do Verbo com a carne; o Verbo eterno, perfeito, santo e glorioso, onipotente e imortal, descendo ao nível da carne fraca, defeituosa degenerada e perecível. É a união do Verbo divino com a natureza humana, em uma mesma Pessoa. A teologia chama isso de hipóstase.
Como podem dois pontos tão infinitamente opostos se juntar? É aqui que está a consistência do mistério. Como cristãos, deveriamos meditar constante mente, refletindo sobre a sua grandeza. Talvez alguns pensem: “Não precisamos nos aprofundar nesse assunto. Basta-nos saber que o Verbo Se fez came.” Mas essa superficialidade não deveria satisfazer a mente. Uma atitude assim apenas denota o pouco interesse em meditar no grande sacrifício de Cristo feito pelo ser humano. É desconsiderar algo que significou muito para Deus.
Que um Deus santo, cheio de glória, adorado por anjos, Soberano do Universo, tenha Se disposto a descer ao nível da carne humana fraca, degenerada, transi tória e perecível, é um mistério tão grandioso e sublime, que mente alguma pode captar plenamente. Poderiamos dizer que foi um sacrifício tão sublime, em sua exigência, como o sacrifício da cruz.
O esvaziamento
E, para completar a nossa admiração diante de tão insondável mistério, Paulo nos diz que “Ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a Si mesmo Se esvaziou, assumindo a forma de servo, tomando-Se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana…” (Fil. 2:6 e 7).
Comentando a atitude de Cristo, diz Vieira: “Era Deus e fez-Se homem. Era eterno e nasceu em tempo. Era imenso e determinou-Se a lugar. Era impassível e padecia. Era imortal e morreu. Era Supremo, Senhor, e fez-Se servo. E ser vir o Senhor, morrer o imortal, padecer o impassível, alimentar-Se o imenso e humanizar-Se o divino, não só foi tomar o que não era, senão deixar o que era. Não deixar, deixando, que isso não podia ser, mas deixar retendo. Deixar conservando; deixar sem deixar.4
Isso foi o que fez o Verbo. É preciso sentir a realidade dessa afirmação de Vieira. Dizer que o Verbo Se vestiu de carne talvez ainda não seja adequado; pois, nesse caso, não teria feito mais do que tomar emprestado a nossa capa su ja temporariamente. Depois, poderia despir-Se dela e não restaria uma uni dade completa.
Ellen White diz que “ao tomar a nossa natureza, o Salvador ligou-Se à humanidade por um laço que jamais se partirá. Ele estará ligado a nós por toda a eternidade”.5
O propósito
Podemos resumir o propósito da encarnação em cinco itens:
Reinvidicar o caráter de Deus. Satanás ultrajara o caráter do Criador. A prontidão de Deus em tornar-Se homem, no entanto, mostrou ao Universo inteiro a extensão do amor divino.
Revelar o amor de Deus. Entre as acusações de Lúcifer, destacava-se a de que Deus era tirano e déspota. “Declarou que os anjos não precisavam de lei, mas deviam ser livres para seguir a própria vontade, … que a lei era uma restrição à sua liberdade.”6 A encarnação de Cristo explicaria a falsidade de tal argumentação, revelando um Deus humilde, tornando-Se servo.
Reconciliar o homem com Deus. A rebelião satânica afetou profunda- mente a humanidade, que ficou separada de Deus por causa do pecado. A encarnação trouxe Jesus ao mundo para reconciliar o homem com Deus, co- mo diz Paulo, “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (11 Cor. 5:19).
Julgar pecadores. Outro propósito da vinda de Cristo ao mundo pela en carnação foi expiar, na cruz, o pecado da humanidade.
Colocar Cristo ao nosso alcance. Através da encarnação, Cristo é nosso. Ele “Se fez carne e habitou entre nós.” É nosso Salvador, nosso Senhor e Rei. NEle, temos acesso ao Pai e recebemos todas as riquezas celestiais.
Humanização de Deus
Pela doutrina da encarnação entendemos que Cristo Se tornou homem, desceu ao nosso nível para nos salvar. Se Se tivesse vindo na forma de um anjo, não seria o modelo perfeito para nós. Também entendemos que o Senhor Jesus Se tornou homem sem deixar de ser Deus, pois “desde a eternidade, esteve Cristo unido ao Pai, e quando assumiu a natureza humana, era ainda um com Deus”7
Na mitologia pagã, os homens se divinizavam exaltando apenas a si mesmos. Na encarnação, Deus Se humaniza para salvar os homens.
Referências:
1. A. B. Langston, Esboço de Teologia Sistemática, pág. 21.
2. Russel N. Champlin, O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo, vol. 2, pág. 272. 3. Teologia Para o Cristão Hoje, Instituto Diocesano de Ensino, pág. 155.
4. Pe. Antônio Vieira, Sermões, vol. 2, pág. 192.
5. Ellen G. White, O Desejado de Todas as Nações, pág. 25.
6. ___________ , História da Redenção, pág. 18.
7. ___________ , Mensagens Escolhidas, vol. 1, pág. 228.