Para muitas pessoas, as genealogias da Bíblia representam as porções mais difíceis de serem lidas. Longas listas de nomes de pessoas que viveram na antiguidade parecem desnecessárias e supérfluas no contexto da mensagem espiritual das Escrituras. Com freqüência, os pastores são interpelados por irmãos piedosos que, ao fazerem o “ano bíblico”, questionam se não seria melhor passar por cima de tais textos para aproveitar melhor as porções consideradas mais edificantes da Palavra de Deus.

Neste artigo, pretendemos analisar a função e o propósito das genealogias da Bíblia e, com isso, demonstrar que essas porções escriturísticas não foram preservadas por acaso, mas têm um propósito no contexto da revelação. Para alçançar esse objetivo, iremos nos limitar às genealogias encontradas na primeira parte do livro de Gênesis, uma vez que um estudo mais abarcante iria extrapolar os limites do espaço disponível.

O tema será abordado a partir de duas perspectivas diferentes, mas que se complementam mutuamente. A perspectiva histórica nos mostra que o relato é factual, não foi inventado, ou copiado de mitos antigos. Os indivíduos mencionados nestas listas foram pessoas reais que viveram na antiguidade sobre a face da Terra. Na perspectiva teológica, veremos que a narrativa bíblica não tem um propósito meramente estatístico, mas está organizada em função de uma mensagem que transcende a época em que foi composta.

Confiabilidade histórica

Os estudiosos liberais sustentam que as genealogias de Gênesis 5 e 11 foram influenciadas por antigas listas dos reis sumérios e que, portanto, a historicidade desse material não pode ser levada a sério. Se isso fosse verdade, as Escrituras não mereceríam credibilidade, pois careceríam de fundamento histórico.

No entanto, quando o registro bíblico é comparado com os alegados paralelos mesopotâmicos, muitas diferenças se tomam claras. As listas mesopotâmicas contêm nomes sumérios e se referem à duração do reinado de uma sucessão de reis. Em Gênesis 5 e 11, por outro lado, as genealogias contêm nomes semíticos e referem-se à duração da vida de uma seqüência de patriarcas. Adicionalmente, as genealogias mesopotâmicas se limitam a uma história local apresentada com o propósito ideológico de “provar que a realeza pertence à Suméria e a nenhum outro lugar”.

Em Gênesis 5 e 11, ao contrário, as genealogias estão situadas em uma perspectiva universal. Tratam da multiplicação e propagação de toda a raça humana. Mostram o começo da humanidade em Deus e a seqüência de uma linhagem que leva de Adão a Noé, e deste a Abraão. As mencionadas diferenças destacam a singularidade das genealogias bíblicas e tomam muito difícil qualquer dependência de fontes mesopotâmicas. Pois a Bíblia está narrando a existência de pessoas reais que viveram sobre a Terra em um passado distante.

É interessante notar, contudo, que a historicidade dessas genealogias não permite o estabelecimento de dados precisos para a idade do homem sobre a Terra. O arcebispo James Usher, no século XVII, calculou, partindo das genealogias, que a Terra havia sido criada no dia 22 de outubro de 4004 a.C. Alguns anos antes, John Lightfoot tinha sido mais preciso afirmando que Adão fora criado às 9h00 da manhã, numa sexta-feira do ano 3.928 a.C. Esse tipo de especulação revela uma com-preensão equivocada dos registros bíblicos.

A historicidade ou factualidade das genealogias não implica precisão matemática segundo os critérios modernos. O autor bíblico foi seletivo ao escolher os nomes de sua lista e poderia ter arredondado alguns números. O fato de haver dez gerações de Adão a Noé, e mais dez de Noé a Abraão, sugere que o relato é esquemático.

Quando comparadas as três principais testemunhas do texto do Antigo Testamento, é notada a existência de diferenças marcantes entre as mesmas. Para exemplificar isso, basta que consideremos o período da Criação até Abraão. O texto Massorético deixa um lapso de tempo de 1946 anos; a Septuaginta, 3312; e o Pentateuco Samaritano, 2247 anos. Isso sugere a necessidade de muito cuidado e ausência de dogmatismo no que tange ao uso desses dados com o propósito de estabelecimento de uma cronologia absoluta para a Criação. Há mais prudência em compreendê-los como aproximações, e não como dados matemáticos absolutos.

Nesta altura, três pontos importantes devem ser observados: 1) É bem provável que o autor bíblico fosse seletivo, escolhendo apenas dez nomes dos mais proeminentes em uma seqüência, não obrigatoriamente imediata de pai para filho, mas de um indivíduo para seu descendente mais remoto. Essa possibilidade tem apoio lingüístico no uso do verbo hebraico yalad (gerar), o qual pode significar tanto “tornar-se pai de”, como “tomar-se ancestral de”.

Há também o fato de que as palavras usadas para pai e filho em hebraico têm, respectivamente, um significado mais amplo de antepassado e descendente.

  • 2) Ao compararmos Gênesis 11:13 a 15 com Lucas 3:35 e 36, percebemos que na genealogia de Lucas 3, existe um Cainã que não aparece na genealogia de Gênesis 11, porque Lucas está seguindo o texto da Septuaginta. Isso é uma evidência adicional de que podem existir lacunas nas genealogias, causadas por copistas ou por intenção do próprio autor bíblico.
  • 3) É necessário ter em mente que em nenhum lugar da Bíblia é encontrada a mais leve alusão às genealogias para estabelecimento de padrões cronológicos, ou cálculos proféticos. Isso significa forte evidência de que as genealogias não foram dadas com tal propósito.

Apesar das lacunas que possam existir, as evidências sugerem que “os períodos de duração da vida devem ser entendidos literalmente” como se referindo aos indivíduos mencionados. Nada há no texto que permita alegorização ou uma interpretação simbólica dos dados. Pois, como bem afirmou Arthur Ferch, “A Bíblia geralmente, e as genealogias em Gênesis especificamente, tomam os indivíduos mencionados e a duração de sua vida literal e seriamente”. Acrescentamos ainda que as considerações feitas pelo autor bíblico a respeito de Enoque e Noé, retratando-os como indivíduos, elimina qualquer possibilidade de interpretação simbólica para esses e os demais nomes e números da tábua genealógica.

Propósito teológico

Em geral, os eruditos também concordam em que o livro de Gênesis se divide em duas partes principais. Os capítulos 1 a 11 formam a chamada “história primeva”, que apresenta seus temas de uma perspectiva universal. E nos capítulos 12 a 50, está a “história patriarcal”, onde o relacionamento especial de Deus com o povo escolhido é destacado. A primeira seção do livro narra três grandes eventos: Criação e queda do homem (1 a 4), o Dilúvio (6 a 9), e a saída do povo de Deus de Ur (v. 11). O lapso de tempo entre esses eventos é preenchido com genealogias que conduzem de Adão a Noé, e de Noé a Abraão.

Cada uma dessas genealogias é formada por dez gerações, excetuando a genealogia que vai de Caim a Lameque, pelas seguintes razões:

Lameque é o sétimo depois de Adão pela linhagem de Caim. Em Lameque a impiedade atinge a sua plenitude, ao fazer “da sua espada o seu deus” e acrescentar ao crime de homicídio o pecado da poligamia (Gên. 4:19). Enoque é o sétimo depois de Adão pela linhagem de Sete. Na vida de Enoque, a santidade atinge o seu clímax. Um homem andou com Deus e Deus o tomou para Si. Andar com Deus “denota o relacionamento mais confidencial, a mais íntima comunhão”.

Assim, vemos que o arranjo literário procura evidenciar o fato de que, desde o início da humanidade, dois grupos se diferenciam. Um toma o caminho dos ímpios e chega ao ápice da maldade em Lameque, o sétimo depois de Adão, pela linhagem de Caim. O outro toma o caminho dos justos e atinge a plenitude na vida piedosa de Enoque, o sétimo depois de Adão, pela linhagem de Sete. Destaca-se, assim, a progressão histórica do antagonismo entre a descendência da serpente e a semente da mulher (Gên 3:15).

A genealogia de Caim termina nos filhos de Lameque, e nenhuma referência é feita quanto à duração da vida dos descendentes de Caim, pois não há futuro para essa linhagem. Serão destruídos pelo Dilúvio, o qual, de certa forma, era uma prefiguração da destruição total dos ímpios pelo fogo eterno (II Ped. 3:5 a 10). A genealogia de Sete passa por Enoque e continua até Noé, atravessa o Dilúvio e, finalmente, desemboca em Abraão. Essa seqüência marca “o progresso daquela descendência prometida a Eva” (Gên. 3:15), e que na plenitude do tempo havia de esmagar a cabeça da serpente.

Monotonia

Outra característica marcante das genealogias é a repetição monótona de expressões estereotipadas. Em Gênesis 5, no final da descrição da vida de cada indivíduo, o autor acrescenta a frase “e morreu”. Toda a narrativa se desenvolve como um movimento em direção à morte. Apesar da vigorosa longevidade, o “certamente morrerás” se cumpre em todos eles. Este refrão só é interrompido na história de Enoque, o que enfatiza de forma especial a singularidade desse patriarca, cuja trasladação trouxe ânimo àquela geração machucada pelo pecado.

É possível notar ainda uma drástica redução na idade dos patriarcas na genealogia dos indivíduos pós-diluvianos. Embora Noé tenha alcançado a idade de 950 anos, seu filho Sem chegou a 600; Naor, o avô de Abraão, chegou somente a 148 anos de idade. Essa redução de longevidade sugere uma decadência na qualidade de vida causada, possivelmente, por razões climáticas e dietéticas. Ellen White afirma que, após o Dilúvio, Deus permitiu ao ser humano “comer a carne dos animais limpos preservados na arca”, pois a vegetação havia sido destruída. Essa alteração no regime alimentar, juntamente com as alterações ambientais causadas pelo Dilúvio, contribuiu para diminuição do tempo de vida.

Genealogia é importante

As considerações precedentes nos permitem ver a riqueza de elementos históricos e conceitos teológicos contidos nas genealogias. Em síntese podemos concluir que as genealogias mostram a origem comum e a solidariedade da raça humana. De um só, Deus fez todos os homens. Ninguém pode pretender superioridade com base em raça, origem ou cor. Todos temos uma origem comum em Deus, através de Adão.

As genealogias deixam claro que, desde o princípio, a humanidade se divide entre os que servem a Deus e os que O rejeitam. Em Gênesis 4 e 5, aparecem as duas facções do grande conflito. A linhagem de Sete e a linhagem de Caim – a Semente da mulher e a semente da serpente. Percebe-se ainda, nas genealogias, o resultado da bênção divina: “Multiplicai-vos, enchei a Terra”. Isso se toma claro na “tábua das nações” (Gên. 10), onde é vista a expansão geográfica da humanidade; e nas genealogias (Gên. 5 e 11), onde destaca-se a sucessão no tempo.

Pelas genealogias, é mostrado que o pecado resulta em diminuição da vida e, finalmente, em morte. Mas, ao mesmo tempo, verifica-se que o pecado e a morte não têm a última palavra. Enoque andou com Deus e foi trasladado, dando à humanidade um vislumbre do dia em que a morte será tragada pela vitória (I Cor. 15:15).

No transcurso da História, Deus sempre teve o Seu remanescente e o preservou em meio às mais difíceis circunstâncias. Noé era um homem justo em sua geração. Abraão foi chama-do dentre os pagãos de Ur para ser portador da promessa às gerações futuras. Isso mostra que é possível obedecer e servir a Deus, mesmo em meio a uma cultura hostil. As listas de nomes de pessoas que viveram na antiguidade denotam o interesse especial de Deus em cada indivíduo. Ele nos conhece pelo nome e Se lembra de cada um de nós. Não somos gotas de água no oceano, temos uma identidade que sempre será preservada pelo Senhor.

Finalmente, contra os críticos antigos e modernos, as genealogias mostram que o homem está sobre a Terra há poucos milhares de anos, e não há milhões como afirmam os evolucionistas. Adicionalmente, essas genealogias não se constituem blocos de material inserido no livro de Gênesis por um autor diferente, como afirmam os estudiosos liberais. Ao contrário, as evidências indicam que elas têm um propósito relevante no contexto geral do livro e apontam para uma autoria unificada de Gênesis.

De tudo o que foi visto anteriormente, podemos concluir que as genealogias são muito importantes no contexto da revelação bíblica. Não são textos dos quais se possa prescindir; fazem parte da inspirada Palavra de Deus e, assim, têm muitas lições para nos ensinar. Portanto, apesar de parecerem, às vezes, enfadonhas, merecem ser lidas, investigadas e ensinadas.

NOTA: Em virtude da exigüidade de espaço, deixamos de publicar a extensa bibliografia desta matéria.