Quem fará parte do grupo que, segundo João, ficará fora da Nova Terra

Certa vez, alguém indagou a Elizabeth Marshall Thomas se haveria cães no Céu. Ela respondeu que, obviamente, o Céu teria cachorros; de outra forma, não seria Céu.1 O veterinário Robert T. Sharp escreveu, em 2005, um livro no qual fez a mesma pergunta: “Haverá cães no Céu?”2 Na Seattle Pacific University, Kathleen Braden, professora de Geografia, ensina um curso denominado: “Haverá cães no Céu?”, no qual explora as relações entre o homem e os animais, incluindo o estudo de tratados teológicos sobre a natureza dos animais, o relacionamento dos seres humanos com o sofrimento animal e os aspectos psicológicos de nosso relacionamento com animais de estimação.

Se isso lhe soa estranho, talvez seja por causa da sisudez que nos impede de apreciar a possibilidade de seres humanos e animais conviverem pacificamente em um ambiente celestial. De acordo com Bill Hall,5 as pessoas raciocinam que, se houver cães no Céu, ali também haverá gatos, ratos e outros animais que poderão ser inconvenientes à fruição de gozo eterno. Talvez imaginem que será dieteticamente tentador contemplar uma ave ou peixe, no Céu, sem poder apreciá-los de modo mais epicurista que o ambiente do Céu permitirá.

De qualquer forma, minha família ficou muito impressionada, quando ouviu um pregador anunciar, enfaticamente, que os cães não vão para o Céu. Temos uma cadela em casa, e meus filhos muito se afeiçoaram a ela. Ouvir, repetidamente, que os cães não vão para o Céu causou-lhes grande decepção. Não me sinto embaraçado ao me referir afetuosamente à cadela da família. Bainton4 comenta que Lutero, em várias passagens de sua obra Conversa à Mesa, menciona seu cachorro, ao qual ele parece ter estimado muito. Percebe-se, pela fala de Lutero, que ele esperava que os cães fossem para o Céu. Além disso, ele os apresenta como modelos para a fidelidade e concentração cristãs: “Ah, se eu pudesse orar com a devoção com a qual meu cachorro observa um pedaço de carne” (p. 274).

Análise de um texto

Ao examinar o texto usado por aquele pregador, não tive a mesma impressão que ele. Eis o texto: “Bem-aventurados aqueles que lavam as suas vestiduras no sangue do Cordeiro, para que lhes assista o direito à árvore da vida, e entrem na cidade pelas portas. Fora ficam os cães, os feiticeiros, os impuros, os assassinos, os idólatras e todo aquele que ama e pratica a mentira” (Ap 22:14, 15).

Esse texto não se refere a cães literais. O contexto favorece a uma interpretação metafórica da passagem, por duas razões. Primeira, todos os outros elementos da lista de excluídos da Nova Terra são figuras humanas culpadas de pecados graves: feiticeiros, prostituídos, homicidas, idólatras e mentirosos. Não faz sentido incluir um animal entre esses. Segunda, o livro de Apocalipse apresenta outra lista de infiéis que tampouco inclui animais: “Quanto, porém, aos covardes, aos incrédulos, aos abomináveis, aos assassinos, aos impuros, aos feiticeiros, aos idólatras e a todos os mentirosos, a parte que lhes cabe será no lago que arde com fogo e enxofre, a saber, a segunda morte” (Ap 21:8).

Existem outros usos metafóricos da palavra “cão” nas Escrituras. Deuteronômio 23:18 fala do salário de uma prostituta e de um “cão” num contexto tão claramente simbólico, que as traduções portuguesas nem mesmo conservam a palavra “cão”: “Não trarás salário de prostituição, nem preço de sodomita [cão] à casa do Senhor, teu Deus, … porque uma e outra coisa são igualmente abomináveis ao Senhor, teu Deus.” O termo era, também, um insulto genérico (1Sm 17:43; 24:14; 2Rs 8:13; Sl 22:17, 21; Is 56:10, 11; Mt 7:6), como ainda o é em nossos dias, ou uma expressão de humildade (2Rs 8:13).

“Depois de encontro da mulher cananéia com Jesus, os gentios passam a ter direito às migalhas”

No evangelho de Mateus

Listas de vícios, pecados e tipos de pecadores eram comuns entre os filósofos moralizantes do mundo greco-romano. Em seu tratado intitulado Hermótimo 22, Luciano compara a virtude a uma cidade da qual são excluídos todos os vícios. Na Bíblia, Paulo é quem as utiliza com maior freqüência. O caso do livro de Apocalipse, que se baseia na tradição de Deuteronômio 18:9-14, é a única ocorrência conhecida de uma lista de vícios contendo a palavra “cães”. Por isso, é comum interpretar o termo como referência a pessoas e não a animais.

De acordo com Dídimo de Alexandria, os cristãos do quarto século negavam a participação na comunhão aos não batizados, com base no provérbio de Mateus 7:6 que proibia dar coisas sagradas aos “cães”. Será, contudo, que uma comparação entre o texto de Apocalipse e o evangelho de Mateus nos permitiria concluir que os “cães”, figurativamente, são sempre os gentios?

Apesar de o evangelho de Mateus ter sido escrito, primariamente, para os judeus, há, nele, um número muito alto de referências aos gentios. Como em alguns casos Mateus os apresenta sob uma luz desfavorável, certos teólogos, como David Sims,5 por exemplo, têm suposto que o evangelho possui tom antigentílico. Outros, como Hummele Bonnard,’ entendem que, quando os líderes judaicos empregam a palavra “pecadores”, em Mateus, geralmente se referem aos gentios. Assim, a frase “pu-blicanos e pecadores” deve ser compreendida como equivalente sintagmático de “publicanos e gentios”.

No entanto, é possível perceber inúmeras ocasiões em que Mateus apresenta os gentios de modo favorável (Mt 8:5-13; 21:17-24; 27:54). Para Smillie,Jesus aceita e adapta os estereótipos judaicos convencionais em relação aos pagãos como a quintessência da injustiça discursiva, procurando generalizar a fim de criar um contraste em relação ao qual Ele possa criar um novo comportamento ou atitude. Por isso, não me parece coerente supor que a referência de Jesus aos cães, na perícope da mulher cananéia (Mt 15:22-28), tenha como intenção outra coisa que não generalizar para contrastar e levar a uma mudança de atitude.

Observando o relato através da máscara exclusivista do judaísmo, os leitores de Mateus devem perceber, pela resposta da mulher e pela concessão de Jesus a seu pedido, que necessitam adotar nova atitude em relação aos samaritanos e aos gentios em geral: uma atitude de tolerância. A mulher toma, sem pudores, o termo deliberadamente pejorativo de Cristo e o aplica a si mesma, ao dizer: “mas mesmo os cães”. Isso lhe outorga a bênção e, mais que isso, um dos mais comoventes elogios feitos por Jesus nos evangelhos.

Portanto, apesar de pejorativo, o uso do termo “cães” por Jesus em Mateus tem como objetivo provocar uma mudança de atitude em relação a uma classe discriminada. A situação criada por Jesus é o equivalente prático de Sua declaração: “ouviste o que foi dito… Eu, porém, vos digo”, usada com a mesma finalidade de transformar a compreensão de Seus ouvintes em relação a conceitos que deveríam ser suplantados pelo amor cristão. Porém, o interesse principal deste artigo não é estabelecer todo o contexto em que a palavra “cães” é empregada em Mateus, mas apenas mostrar que os escritores neotestamentários estavam familiarizados com seu uso metafórico.

Por outro lado, não podemos dizer que a ocorrência da palavra em Apocalipse tenha o mesmo referencial, uma vez que percebemos, em Mateus, a palavra ser enobrecida por Jesus. Depois do encontro da mulher cananéia com Jesus, os “cães” (gentios) não são mais excluídos do banquete, mas passam a ter direito às migalhas. Por isso, os cães de Apocalipse não podem ser os gentios, porque, ali, eles continuam excluídos da salvação.

No Apocalipse

Ao analisar o texto de Apocalipse, Robertson9 propõe, com base em Deuteronômio 23:18, que os “cães” são pessoas sexualmente impuras, uma vez que, segundo ele, os cães eram animais de rapina no Oriente e, por isso, eram ali desprezados. Porém, a mensagem apocalíptica não representa unicamente o pensamento oriental. É verdade que João era judeu, mas escreveu em grego, na ilha de Patmos, uma prisão romana no coração do mundo grego. Por isso, pode-se buscar um sentido mais próximo daquele empregado no mundo grego-romano para a palavra “cães”. Se isso é verdade, o termo pode ter um sentido filosófico mais abrangente do que apenas o da imoralidade.

O mundo grego conheceu certos filósofos que se chamam a si mesmos de cínicos, isto é, “caninos”, para enfatizar seu comportamento irrestritamente franco. Um dos mais famosos entre esses filósofos foi Diógenes de Sínope que, segundo Diógenes Laércio, era um “Sócrates enlouquecido”. Diógenes pregava a anaidéia (uma vida totalmente despudorada). Outro filósofo cínico foi Crates de Tebas.10

Por intermédio de Apuleio, sabemos que Diógenes de Sínope persuadiu Crates, no século 4 a.C., a renunciar à sua fortuna. Crates passou, então, a se referir à sua antiga riqueza como um “fardo de esterco”. Essa decisão foi tão ofensiva a alguns, que Clemente de Alexandria, em sua obra Quem é o Homem Rico que se Salva?, declara que Crates o fez apenas porque desejava se libertar do trabalho de ter que manter suas posses, preferindo o ócio das letras inúteis, e não pelas razões sugeridas por Jesus em Marcos 10:17-31.

O mesmo Apuleio apresenta um Crates desnudo, ensinando suas doutrinas e carregando uma clava semelhante à de Hércules. Além disso, Apuleio nos informa que Crates costumava copular com sua consorte, Hiparque, em frente ao Pórtico Pintado, em plena Ágora ateniense.

O espírito de controvérsia associado aos cínicos teve enorme influência no pensamento greco-romano.11 A sinceridade destemperada desses filósofos repercutiu negativamente entre as demais escolas filosóficas e causou muita reação entre estóicos e epicureus. É por essa razão que os demais gregos passaram a se referir a eles como cínicos. O próprio Diógenes de Sínope, fundador dessa escola filosófica, aceitou o apelido de “Diógenes, o cão”. Não se deve menosprezar a influência dos sistemas filosóficos greco-romanos sobre o pensamento dos escritores neotestamentá-rios que ora os aprovam ora os rejeitam, a depender do teor de seu conteúdo.11

Acredito que os cães de Apocalipse 22:14, 15 são justamente as pessoas de comportamento aberrante que o mundo greco-romano se acostumou a chamar de cínicos (caninos). O apóstolo João podia estar simplesmente alertando no sentido de que o comportamento espalhafatoso e abertamente ofensivo, a revolta pelo simples prazer da revolta, a crítica inamistosa e a imoralidade frívola, tudo isso pode impedir que o cristão, um dia, ingresse no paraíso a ele prometido.

Além disso, ao contrário do que pode ter acontecido no Oriente (se é que a afirmação de Robertson, de que os orientais desprezavam os cães é verdadeira), os gregos e os romanos tinham grande proximidade com seus cães de estimação. Desde a referência ao famoso cão Argos, pertencente a Ulisses, na Odisséia, até as inúmeras esteias funerárias gregas que costumeiramente incluíam as figuras dos cães ao lado de seus donos falecidos, sobram evidências de que o mundo greco-romano amava esses animais. Aliás, não se pode dizer que o termo “cínico” fosse pejorativo. Ao contrário, ele pode ter até contribuído para a aceitação desses filósofos que, voluntariamente, aplicavam a si mesmos o epíteto “cães”.

Em sua epístola aos efésios (7:1), Inácio interpreta os cães de Apocalipse como sendo “aqueles que rejeitam a verdade e se endurecem contra a graça”. Não poderia haver descrição mais precisa dos cínicos de sua época: homens obstinados, que rejeitavam as tradições e a razão, com o firme propósito de se oporem à sociedade em que viviam. Talvez seja por isso que Jesus tenha hesitado em deixar que o evangelho fosse levado a pessoas assim (Mt 7:6). Dessa forma, a majestade do evangelho não pode ser vilipendiada pela hostilidade daqueles que se opõem a tudo o que existe no mundo, seja no campo material ou no espiritual.

Obviamente, não posso provar que a referência a “cães” no Novo Testamento tenha como única referência os cínicos. É certo que, nos evangelhos, o termo se refere mesmo aos gentios. Entretanto, quero sugerir que a expressão apocalíptica tenha essa acepção principal. Há indícios de que o cinismo tenha florescido de modo mais intenso sob a dinastia flaviana. Domiciano, sob cujo governo João foi condenado a Patmos, foi um dos mais conhecidos imperadores dessa dinastia.

O contexto de Apocalipse 22:14, 15 favorece uma interpretação metafórica da passagem

Na Nova Terra

O manuscrito 4Q394, encontrado em Qumran, no Mar Morto, nos fornece uma pista sobre a razão pela qual os judeus antigos, contrariamente às práticas do Ocidente, pareciam avessos à presença de cães em Jerusalém. O manuscrito traz uma proibição quanto à manutenção de cachorros nas imediações do templo, porque estes insistiam em desenterrar ossos de animais ali sacrificados. Da mesma forma, o livro apócrifo conhecido como Atos de André também sugere que os primeiros cristãos tinham atitude ambivalente para com os cães, pelo fato de acreditarem que o cachorro era um animal cuja forma o diabo gostava de assumir.

Apesar dessas considerações negativas, não há nada que nos sugira que a ocorrência da palavra “cães” no Apocalipse deva ser interpretada literalmente. Além disso, o Antigo Testamento fala muito da existência de animais na Nova Terra: “O lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha como o boi; pó será a comida da serpente. Não se fará mal nem dano algum em todo o Meu santo monte, diz o Senhor” (Is 65:25). Esse texto é uma repetição ligeiramente alterada de outro do mesmo livro: “O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará junto ao cabrito; o bezerro, o leão novo e o animal cevado andarão juntos, e um pequenino os guiará” (Is 11:6). Sabemos que a passagem é aplicável, primariamente, ao antigo Israel e não à igreja atual. Entretanto, como a maioria das profecias do Antigo Testamento é reaplicável à igreja, pode-se imaginar que haverá animais na Nova Terra.

Richard Phillips, pastor presbiteriano em Margate, Flórida, nos Estados Unidos, responde à pergunta: “haverá cães no Céu?” com a seguinte informação: “Provavelmente haverá, mas não o seu cachorro.” O que ele quer dizer é que, na recriação da natureza, provavelmente, Deus embelezará nosso planeta com espécies animais e vegetais, como o livro de Gênesis relata que Ele fez na semana da criação. No entanto, não podemos estar certos de que isso se dará por meio da ressurreição dos animais que antes existiram na Terra. Pode ser que Deus simplesmente decida criar novos animais para essa finalidade.

Referências:

  • 1 Wendy Doniger, Hell is other people; heaven is other dogs. On Faith, 28/06/2007.
  • 2 Robert T. Sharp, No Dogs in Heaven? Scenes from the Life of a Country Veterinarian (Nova York: Carroll&Graf, 2005).
  • 3 Bill Hall, Who will look after the dogs in heaven? Tribune (Lewiston, Idaho: 25/05/1990).
  • 4 Roland Bainton, Luther on birds, dogs and babies. Luther Today (Decorah, Iowa: 1957).
  • 5 David Sims, The Gospel of Matthew and Christian Judaism: The History and Social Setting of the Matthean Community (Edinburgh: T&T Clark, 1998), p. 215-256.
  • 6 Reinhart Hummel, Die Auseinandersetzung Zwischen Kirche un Judentum im Mattäusegangelium (Munique: Kaiser, 1996), p. 36.
  • 7 Pierre Bonnard, Lévangile selon Saint Matthieu, 2edição (Geneva: Labor et Fides, 1982), p. 429-435.
  • 8 Gene R. Smillie, Even the dogs: gentiles in the gospel of Matthew, Journal of the Evangelical Theo-logical Society, 2001, v. 1, n° 1, p. 74-96.
  • 9 Archibald T. Robertson, Word Pictures in the New Testament (Nashville: Broadman, 1932).
  • 10 Milton L. Torres, The stripping of a cloak: a topos in classical and biblical literature, Hermenêutica (Cachoeira, BA: 2001), v. 1, n° 1, p. 45-54.
  • 11 Albin Lesky, A History on Greek Literature (Indi-anápolis: Hackett, 1996), p. 672.
  • 12 Milton L. Torres, Felix’s refusal to further listen to Paul as a statement of philosophical superior-ity, Philica, n° 70, 2006, p. 1-3. http://philica. com/display_article.php?article_id=7 0