Quanto mais constantemente fixarmos o olhar da fé em Cristo, tanto mais crescerá nossa inteligência espiritual
Na década de 80, o psicólogo Howard Gardner revolucionou o conceito de inteligência com sua obra Estructuras de la Mente: La Teoria de las Inteligências Múltiples.1 Em suas investigações, Gardner propõe mudar o conceito tradicional da inteligência unidimensional e quantificável pela da inteligência pluralista, que pode manifestar-se em distintas capacidades de resolução de problemas. Com essa premissa, Gardner identifica sete inteligências básicas: lógico-matemática, linguística, musical, espacial, cinestésico-corporal, interpessoal e intrapessoal. Trata-se de uma pesquisa ainda em desenvolvimento; e o autor reconhece que podem ser descobertos outros tipos de inteligência, inclusive uma inteligência moral ou espiritual.
Dentre as sete inteligências básicas propostas por Gardner, a interpessoal e a intrapessoal formaram a base para o surgimento da teoria da inteligência emocional, da qual o psicólogo Daniel Goleman é o principal expoente.2 Goleman propõe uma série de virtudes que o homem deve desenvolver a fim de otimizar suas capacidades, chegando a conclusões que se aproximam surpreendentemente do que a Bíblia diz sobre a verdadeira inteligência ou sabedoria para a vida.
Poderíamos então considerar que a dimensão original e plena da inteligência emocional é a “inteligência espiritual” da qual falam as Escrituras (Col. 1:9)? Em caso afirmativo, que reflexão merece a ênfase posta pela teoria da inteligência emocional na necessidade de priorizar o desenvolvimento espiritual do homem, para que este alcance um desempenho eficaz no uso de suas capacidades?
Considerando o emocional
A inquietação que levou Goleman a pesquisar nasceu da observação de incontáveis casos de estudantes com bom rendimento acadêmico e elevado coeficiente intelectual (QI), mas que não conseguiram sucesso imediato na carreira profissional ou em outros aspectos da vida pessoal. O pesquisador registra casos como, por exemplo, o de um grupo de alunos graduados pela Universidade Harvard, que foi analisado até à meia-idade. Os indivíduos que tiveram as pontuações mais altas na Universidade não conseguiram sucesso profissional maior que os colegas que tiveram baixas pontuações. Muito menos obtiveram maior satisfação na vida pessoal e familiar.
Diante de tais evidências, Goleman sugere que o QI é um pobre prognosticador de êxito na vida. Então assinala outras características fundamentais para o alcance de realização pessoal: “habilidades tais como ser capaz de motivar-se e persistir diante das decepções; controlar o impulso e demorar a gratificação, regular o humor e evitar que os transtornos diminuam a capacidade de pensar; mostrar empatia e alimentar esperanças”.3
A esse conjunto de habilidades, Goleman chama de inteligência emocional, definindo-a como “um núcleo comum de aptidões pessoais e sociais que se torna um ingrediente-chave para o êxito”.4
Conexão emocional-espiritual
Um dos conceitos utilizados por Goleman para referir-se às emoções e aos sentimentos é o chamado meta-cognição, que enfatiza as capacidades que se estendem ao âmbito metafísico ou espiritual. De fato, em que outro plano se poderia colocar elementos como o domínio próprio, a empatia ou a esperança? Tais valores, fundamentais para a definição da inteligência emocional, ligam diretamente essa teoria com o âmbito espiritual.
Goleman assinala, por exemplo, que alguns problemas que afetam as pessoas com deficiência de inteligência emocional são o desespero, o abuso de drogas, a violência e o crime. Na verdade, bem poderíamos afirmar, com a mesma certeza, que tais problemas têm origem em uma deficiência espiritual. Por outro lado, passando a um enfoque positivo do assunto, Goleman sugere, como fruto do cultivo da inteligência emocional, valores tais como otimismo, paciência, integridade, compaixão, esperança e domínio próprio. Essa lista de virtudes tem uma semelhança surpreendente com o que a Bíblia assinala como fruto do Espírito (Gál. 5:22 e 23).
A conexão emocional-espiritual torna-se muito evidente quando Goleman reconhece que “o argumento que sustenta a importância da inteligência emocional gira em tomo da relação existente entre o sentimento, caráter e instintos morais”.5 Simplificando esses termos, ele assinala que “existe uma palavra antiquada para designar o conjunto de habilidades que conformam a inteligência emocional: caráter”.6
Se levarmos em conta a definição de caráter feita por Ellen White, novamente surpreende a correspondência de pensamentos entre os dois autores: “A capacidade mental e o talento não são sinônimos de caráter, pois esses são freqüentemente possuídos pelos que têm justamente o oposto de um caráter bom. A reputação não é caráter. O verdadeiro caráter é uma qualidade da alma que se revela na conduta.”7 Seguindo tal raciocínio, poderíamos sugerir que a dimensão plena da inteligência emocional encontra-se no âmbito espiritual.
O fator espiritual
A definição básica de inteligência é capacidade. Portanto, podemos falar de uma capacidade ou inteligência espiritual. De fato, a ideia de Goleman, de encontrar a excelência da inteligência, já aparece desenvolvida na Palavra de Deus, que assinala a inteligência espiritual como a excelência do desenvolvimento das capacidades do ser humano. Um caso significativo é o do rei Salomão.
É proverbial o pedido que ele fez a Jeová, no começo do seu reinado. Diante do oferecimento do Todo-poderoso: “Pede-Me o que queres que Eu te dê”, o jovem rei respondeu: “Dá, pois, ao Teu servo coração compreensivo para julgar a Teu povo, para que prudentemente discirna entre o bem e o mal” (I Reis 3: 5 e 9). Qual era, verdadeiramente, o pedido de Salomão? Por certo, uma capacidade que ele considerava primordial para o êxito de sua missão; um “coração entendido”, e que Deus confirmou com agrado ao interpretar seu pedido com a resposta: “Já que… pediste inteligência… dou-te coração sábio e entendido” (vs. 11 e 12). A Bíblia de Jerusalém diz: “coração sábio e inteligente”.
Notemos a capacidade específica que Salomão assinala com seu pedido de um “coração sábio e entendido”. No original hebraico, um “coração entendido” é literalmente “um coração que escuta”, ainda que também possa ser traduzido como “um coração obediente”. O Antigo Testamento usa a mesma palavra – shama – para “escutar” e “obedecer”.8
Poderíamos dizer, então, que a inteligência que Salomão pede a Deus está relacionada com a capacidade de discernir a vontade divina e de mobilizar sua própria vontade humana em harmonia com a revelação. Na verdade, esta é uma capacidade especial e desejável, a de poder ver claramente a vontade de Deus e, como reação imediata, avançar em sua direção. É mediante essa profunda experiência espiritual que podemos cultivar a verdadeira dimensão das virtudes que Goleman propõe como a excelência da inteligência.
O certo é que Salomão enunciaria mais tarde, já em plena execução exitosa da missão para a qual rogou a Deus um “coração entendido”, a seguinte definição da capacidade ou inteligência espiritual: “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria” (Prov. 1:7). Salomão considerou essa capacidade como fundamental para o desempenho de suas funções, e enquanto manteve a experiência do “temor do Senhor”, dando ouvidos à vontade divina e atuando de maneira conseqüente, seu reinado foi positivo.
Timão interior
Entretanto, não devemos concluir que inteligência espiritual e inteligência emocional sejam a mesma coisa. Tal raciocínio não faz justiça ao que a Bíblia diz sobre o tema nem ao que Goleman propõe em seus estudos. Podemos falar de semelhanças, ou dizer que a inteligência emocional é uma aproximação da inteligência espiritual, sendo que esta é a dimensão plena do assunto.
Provavelmente, a diferença fundamental se toma evidente quando Goleman se refere ao conceito de timão interior. Com essa expressão, ele faz referência à necessidade de introspecção e reflexão antes de se tomar uma decisão e agir de acordo, especialmente quando alguém desempenha importantes funções de liderança e administração. Assim, ele propõe que devemos aprender a cultivar a capacidade de ouvir a voz interior, dedicando tempo diário à reflexão solitária.9
A inteligência espiritual também é cultivada mediante a meditação centralizada na pessoa de Cristo. “Quanto mais constantemente fixarmos o olhar da fé em Cristo, em quem se polarizam nossas esperanças de vida eterna, tanto mais crescerá nossa fé; fortalece-se nossa esperança, nosso amor se toma mais ardoroso e intenso, com a agudeza de nossa intuição espiritual, e aumenta nossa inteligência espiritual.”10 Dessa forma, o timão interior, que provê a inteligência espiritual, não consiste simplesmente na intuição emocional, mas na certeza expressa por Isaías: “Quando te desviares para a direita e quando te desviares para a esquerda, os teus ouvidos ouvirão atrás de ti uma palavra, dizendo: Este é o caminho, andai por ele” (Isa. 30:21). É uma questão de buscar a Fonte da sabedoria, para ouvir Seu conselho sobre decisões e ações a seguir.
Aqui é oportuna uma reflexão. Se os homens de negócios dedicam tempo diário a escutar seu timão interior, antes de tomar decisões inteligentes, muito mais os homens que se ocupam dos negócios do Pai deveriam considerar prioridade em sua agenda dedicar tempo para a comunhão com Cristo. Somente assim procederão com inteligência em cada aspecto de sua sagrada tarefa. Todos os que administram os valores imperecíveis do reino de Deus devem programar momentos devocionais particulares, em busca de crescimento em inteligência espiritual.
Se realmente desejamos a verdadeira eficiência no serviço para Deus, devemos ter como prioritária em nossa agenda a entrevista diária com Aquele que pode nos encher de “toda a sabedoria e entendimento espiritual” (Col. 1:9). Provavelmente necessitemos reconsiderar profundamente o conselho tantas vezes lido e ouvido: “Consagrai-vos a Deus pela manhã; fazei disto vossa primeira tarefa. Seja vossa oração: ‘Toma-me, Senhor, para ser Teu inteiramente. Aos Teus pés deponho todos os meus projetos. Usa-me hoje em Teu serviço. Permanece comigo, e permite que toda a minha obra se faça em Ti.’ Essa é uma questão diária. Cada manhã consagrai-vos a Deus para esse dia. Submetei-Lhe todos os vossos planos, para que se executem ou deixem de se executar, conforme o indique a Sua providência. Assim dia a dia podereis entregar às mãos de Deus a vossa vida, e assim ela se moldará mais e mais segundo a vida de Cristo.”11
O cultivo da inteligência espiritual segundo esse modelo habilita o pastor ao desempenho eficaz descrito por Paulo: “a fim de viverdes de modo digno do Senhor, para o Seu inteiro agrado, frutificando em toda boa obra e crescendo no pleno conhecimento de Deus; sendo fortalecidos com todo o poder, segundo a força da Sua glória, em toda a perseverança e longanimidade; com alegria” (Col. 1:10 e 11). Porventura não é essa uma descrição completa de um bom desempenho, produtor de satisfação pessoal no serviço de Deus?
Inteligência fundamental
Os pesquisadores do tema que estamos considerando indagam-se se a inteligência emocional não deveria situar-se “como uma forma de inteligência mais ampla; uma inteligência verdadeiramente nova; uma forma destinada, em definitivo, a assumir o controle sobre as inteligências de ‘ordem primária’”.12 Essa proposta, revolucionária para a psicologia, também não é nova, segundo a perspectiva bíblica. Quando a Palavra de Deus aconselha: “O princípio da sabedoria é: Adquire a sabedoria; sim, com tudo o que possuis, adquire o entendimento” (Prov. 4:7), pode-se dizer que está assinalando a inteligência fundamental para o desenvolvimento das outras capacidades humanas, inteligência que intenta uma aproximação da teoria da inteligência emocional.
Também se pode dizer que, mediante a proposta da inteligência emocional, a psicologia está reconhecendo a importância de cultivar valores espirituais para o pleno desenvolvimento das capacidades do homem. A ideia é que as capacidades intelectuais, técnicas e acadêmicas só podem ser úteis para o desempenho na vida pessoal e profissional se forem conduzidas pela inteligência fundamental, ou seja, a capacidade de cultivar um caráter harmonioso e sólido.
Esses dois elementos, um novo modelo de inteligência fundamental e sua aproximação ao que diz a Bíblia sobre a sabedoria para viver devem nos chamar a atenção para uma revisão das atitudes que consideramos primordiais para servir à obra de Deus. Talvez seja necessária uma revalorização da capacidade fundamental para o desempenho eficaz no serviço do Senhor: a inteligência espiritual. Se a psicologia está revalorizando essa classe de inteligência e propondo uma suposta espiritualidade, haveríamos de fazer menos, nós os que conhecemos sua versão original e plena?
Vivemos em uma época de muita informação, na qual é humanamente impossível processar todo o conhecimento que nos é oferecido. É a época das pós-graduações; a época na qual são endeusadas a criatividade e as idéias originais, a tal ponto que às vezes temos tantas idéias, próprias e impostas, que não sabemos quais delas executar para alcançar as metas desejadas. Em nossa época, atender as necessidades, cada vez mais variadas e mais urgentes, das pessoas, exige mais dedicação e preparo. Então, como diria Paulo, “quem, porém, é suficiente para estas coisas?” (II Cor. 2:16).
Ele mesmo responde, no texto já citado neste artigo: “que transbordeis de pleno conhecimento da Sua vontade, em toda a sabedoria e entendimento espiritual; a fim de viverdes de modo digno do Senhor, para o Seu inteiro agrado, frutificando em toda boa obra e crescendo no pleno conhecimento de Deus” (Col. 1:9 e 10).
A dimensão plena da inteligência emocional encontra-se no âmbito espiritual.
Referências:
1 Howard Gardner, Estructuras de la Mente: La Teoria de las Inteligencias Múltiples (Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1994).
2 Daniel Goleman, La Inteligencia Emocional (Buenos Aires: Javier Vergara, Editor, 1996).
3 Ibidem, pág. 54.
4 Daniel Goleman, La Inteligencia Emocional em la Empresa (Buenos Aires: Javier Vergara, Editor, 1999), Pág. 34.
5 Idem, La Inteligencia Emocional, pág. 16.
6 Ibidem, pág. 328.
7 Ellen G. White, A Orientação da Criança, (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira……), pág. 141.
8 Greg A. King, Reyes y Crônicas: La Monarquia Dividida, (Buenos Aires: Associación Casa Editora Sudamericana, 2002), págs. 20 e 21.
9 Daniel Goleman, La Inteligencia Emocional em la Empresa, págs. 80 e 81.
Ellen G. White, Nos Lugares Celestiais, (Meditações Matinais, 1968), pág. 127.
11 Idem, Camínho Para Cristo, (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira) pág. 70.
12 Doris Martin y Karin Boeck, EQ: Que É Inteligencia Emocional, (Madri: Edaf, 1998), pág. 21.
Martin Rodrigo Arias, Pastor na Associação Bonaerense, Buenos Aires, Argentina