Cremos que o homem e e mulher foram criados à imagem de Deus (ver Gên. 1:26). Embora tenha sido tirada do pó da terra e formada como um oleiro modela a argila, a humanidade reflete a imagem de Deus e manifesta Sua semelhança. Esta crença simples não soluciona todos os problemas relacionados com a natureza e a vida humana. Pelo contrário, segundo escreveu o teólogo Emil Brunner, “o mundo não somente está cheio de enigmas; mas a própria pessoa que faz os enigmas se torna um enigma” (Man in Revolt, Filadélfia, 1947, pág. 17). Contudo, nossa crença fundamental acerca da natureza humana nos habilita a transformar o problema da humanidade no enigma da humanidade, e assim o cristianismo deu um passo importante, pois um problema é um inquietante transtorno na vida, ao passo que um enigma é um convite para examinar um assunto empolgante. Que diremos, pois, sobre a imagem e semelhança de Deus?
Por um lado, o enigma da humanidade nos tenta a exagerar nossa percepção de nós mesmos, e com alguma razão. As consecuções da cultura, do pensamento, da técnica e da criatividade dos seres humanos são impressionantes. Que esplêndidas criaturas somos nós, andando empertigadamente sobre a terra com duas pernas; poderosos, inteligentes e garbosos! O salmista perguntou: “Que é o homem?” e respondeu: “Fizeste-o…, por um pouco, menor do que Deus, e de glória e de honra o coroaste.” Sal. 8:4 e 5.
No entanto, há também um outro quadro do gênero humano. É enrugado, sórdido e triste. Retrata a degradação humana, o pecado, a doença, a fraqueza e a morte. Quão frágeis e fugazes pessoas somos nós, durando apenas um momento, antes de retornar ao pó, e quase não deixando nenhum vestígio! “Que é o homem?” perguntou o salmista pela segunda vez, e desta vez ele respondeu: “O homem é como um sopro; os seus dias, como a sombra que passa.” Sal. 144:3 e 4.
Ambos esses quadros fazem parte de nossa doutrina sobre o homem. Cremos que o homem e a mulher constituem uma esplêndida criação de Deus: seres livres, nobres, pensantes, individualistas e gregários. Mas não há motivo para orgulho, pois todos fomos tirados da terra — débeis criaturas terrenas cuja vida depende totalmente de Deus (ver Atos 17:28). Por conseguinte, o homem e a mulher continuam sendo criaturas, mesmo durante os mais grandiosos momentos de sua vida e em ocasiões de grande poder, prestígio e realização. Eles revelam, porém, a imagem de Deus até nas etapas mais baixas de sua existência, e em momentos de debilidade, fracasso e humilhação. (Ver a obra de Reinhold Niebuhr, The Nature and Destiny of Man, Nova Iorque, 1948, pág. 150.)
Corpo, Alma e Espírito
Muitos cristãos consideram o homem e a mulher como seres que se compõem de três partes: corpo, alma e espírito. Este conceito até se tornou proverbial. Naturalmente, isto é assim enquanto estávamos vivos; mas, que acontece na morte? O corpo, segundo crêem alguns cristãos, retorna à terra na morte, ao passo que a alma se escapa para uma nova vida no porvir. A origem dessa divisão do homem se estende ao pensamento grego, segundo o qual há acentuada distinção entre a vida material do corpo e a vida espiritual da alma. A primeira era considerada transitória, e a última, eterna.
Nós discordamos desse conceito popular sobre o homem, e nos reportamos à Bíblia e à sua exposição da natureza humana formulada em Gênesis 2:7. De acordo com o relato da Escritura, “formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente”. “Ser Vivente” seria a tradução mais apropriada das palavras nephesh hayyah nesse versículo, pois o homem é uma unidade, um só ser humano integrado. Quando é invertida essa fórmula da criação do homem, como acontece na morte, o dom da vida retorna ao Doador, e o corpo volta à terra (ver Gên. 3:19; Ecles. 12:7). Não há, portanto, vida, após a morte, para uma alma “imortal”.
Intérpretes da Escritura têm reconhecido por muito tempo esta singular compreensão da natureza humana. É bastante conhecido o parecer emitido por H. Wheeler Robinson: “Os hebreus encaravam o homem como um corpo animado, e não como uma alma encarnada.” — Inspiration and Revelation in the Old Testament, Oxford, 1946, pág. 70. Em suma, o homem não é um conjunto de partes separadas, mas uma unidade que consiste de qualidades distinguíveis. Por exemplo, a Bíblia reconhece que o homem tem tanto pontos fortes como pontos fracos — ele é espiritual, mas também é carnal (ver I Cor. 3:1-4). Segundo é salientado no Salmo 103:1 e em Jó 12:3, ele é um ser vibrante (é uma alma vivente) e pode raciocinar (possui um coração). Mas nenhuma dessas características constitui uma parte do homem; todas elas são caracterizações do homem em sua totalidade. Resumindo, o homem e a mulher não são seres unidimensionais, mas criaturas multifacetadas, com enormes possibilidades e, também, com muitas responsabilidades. Contudo, sejam quais forem as características evidenciadas pela humanidade, todas são manifestações de indivisível unidade de corpo, mente e espírito. Não há uma centelha divina dentro dos seres humanos na qual possam confiar para ter vida eterna. Pelo contrário, sua vida depende inteiramente do poder criador de Deus. Esta compreensão da natureza humana também envolve a íntima correlação entre o corpo e a mente, confirmada por recentes pesquisas no âmbito da saúde, da medicina e da psicologia.
A Queda
A Bíblia ensina que a humanidade caiu (ver Gên. 3). Embora o mais famoso relato da Queda declare que o homem culpou a mulher por isso, e ela, por sua vez, lançou a culpa sobre a serpente, a própria Bíblia não culpa a pessoa alguma. O conceito pejorativo de que o sexo feminino ocasionou a Queda da humanidade não é bíblico. A Queda é um problema humano, e não um problema sexual. Mas, que aconteceu realmente com a humanidade na Queda? A resposta a esta pergunta tem tanto um aspecto teórico como prático. Teoricamente falando, a imagem de Deus foi desfigurada no homem. Até que ponto? Os teólogos têm debatido acaloradamente esta questão. Alguns dizem que a imagem de Deus está completamente perdida e precisa ser restaurada por uma nova revelação de Deus. Outros afirmam que a imagem de Deus não está totalmente destruída, pois, afinal de contas, o homem possui a capacidade intelectual de reconhecer a revelação de Deus e de mostrar-se sensível a ela. (Ver J. Baillie, Our Knowledge of God, Nova Iorque, 1959, págs. 3-43.) Qual o ponto de vista que é correto?
Há evidências na Escritura, corroboradas por nossa própria experiência humana, de que a despeito da desfiguração da imagem divina, a humanidade é intelectualmente capaz de conhecer seu pecado, sentir tristeza por ele, implorar o perdão divino e ter a certeza de recebê-lo (ver Salmo 51). Assim, a natureza humana após a Queda não é simplesmente alguma coisa má, mas uma coisa boa que se deturpou (ver Baillie, op. cit., pág. 23).
A bem dizer, a história da Queda ilustra a experiência humana com o pecado. Em primeiro lugar, há o conhecimento “do bem e do mal’’ (Gên. 3:5). Esta expressão é um merisma, isto é, ela abrange tudo, do mesmo modo que a expressão “de Leste a Oeste” abrange tudo entre essas duas regiões. Conhecer tudo no sentido de experimentar tudo (pois é isso que realmente significa “conhecer”) constitui uma indicação de arrogância espiritual, de o homem supor que é Deus (ver Gên. 3:5). Esta é a primeira causa do pecado.
Em segundo lugar, houve separação entre o homem e a mulher. Eles viram que estavam nus e de repente perceberam que eram capazes de explorar um ao outro, bem como de amar um ao outro. Portanto, sentiram-se culpados e envergonhados e procuraram reparar sua relação cobrindo-se com folhas (ver Gên. 3:7).
Em terceiro lugar, eles ficaram com medo de Deus e se esconderam dEle, pretensamente porque estavam nus (embora já usassem cintas de folhas). Na realidade, estavam envergonhados de sua nudez diante de Deus porque ela revelava sua verdadeira pessoa — indivíduos que pretendiam ser Deus e cuja relação com Ele se tornara desarmoniosa.
Em quarto lugar, eles foram expulsos da presença de Deus para morrer em solidão (ver Gên. 3:22-24). Esse relato da Queda é um trecho da antiga história humana, mas é muito mais do que isso; constitui uma expressão da experiência humana comum, pois todos pecamos (ver Rom. 3:23).
Como o pecado do primeiro par humano se estendeu a toda a humanidade? Ele é uma aflição herdada ou um traço adquirido? Que é pecado original? A Bíblia contorna essas questões teóricas, mas afirma, no sentido prático, que todos pecaram de tal maneira que nenhuma pessoa pode alegar estar isenta de pecado (ver Rom. 5:12; I S. João 1:8). Este é o ponto da expressão familiar: “em pecado me concebeu minha mãe” (Sal. 51:5). Não o ato da concepção, mas o próprio começo da vida está incluído no pecado. Por isso nenhum ser humano pode evadir-se ao pecado em tempo algum.
Essa difusibilidade do pecado é retratada poderosamente em Gênesis 4-6. O pecado mal havia aparecido nos pais quando já se manifestou na família. Em Gênesis 3 o pecado se revela como um problema pessoal bem ilustrado pela pergunta: “Onde estás?” (V. 9), mas em Gênesis 4 ele já se tornou um problema social, segundo é indicado pela interrogação: “Onde está Abel, teu irmão?” V. 9. Desse ponto em diante ele se espalhou pela comunidade mais ampla e pelo mundo inteiro. (Ver Gên. 4:23 e 24; 6:1-4.) Se essa condição é herdada ou adquirida, se é original ou privativa de cada indivíduo, são questões teóricas de interesse secundário para a Bíblia. A psicologia contemporânea pode muito bem caracterizar a fragilidade humana que chamamos de pecado em todas essas formas, e extrair assim algum conforto. Mas a Bíblia só expõe a difusibilidade do pecado na família humana.
Naturalmente, a Bíblia é muito sensível ao fato de que nascemos em pecado e de que não podemos esquivar-nos a isso. Ela expressa compassiva compreensão para com a humanidade apanhada nesse dilema (ver Sal. 103:15-18) e considera a condição do homem como circunstância atenuadora no juízo (ver Zac. 3:2). No entanto, em nenhum lugar ela desculpa ou despreza o pecado.
Não somente o próprio pecado, mas também as suas conseqüências são partilhadas por toda a humanidade. Todos são arrogantes diante de Deus; todos experimentam a culpa e a ignomínia que conduzem à separação. Todos sentirão finalmente o medo e a solidão de estar separados de seu Criador, se não antes, pelo menos no inevitável fim da vida, pois a morte passou a todos os homens (Rom. 5:12). Como pode ser detido esse terror?
“Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida.” Rom. 5:18. Este impressionante versículo da Escritura apresenta o segundo Homem, Jesus Cristo, o qual produzirá uma nova família humana sem o estigma do pecado. Por assim dizer, Ele desfará o que foi feito pelo primeiro homem. Será, porém, que o pecado realmente pode ser desfeito? Em caso afirmativo, como pode a Bíblia afirmar que todos pecaram e que não é possível escapar dessa condição?
A resposta da Bíblia é deveras notável, pois ela explica a libertação do pecado como generoso e benévolo dom da justiça (ver Rom. 5:17). A Escritura caracteriza esse dom de muitas maneiras, pois ele é ao mesmo tempo um conceito notável e difícil, mas dois termos são especialmente poderosos e penetrantes. Um é a justificação do pecador (ver Rom. 5:1) e o outro é a reconciliação entre Deus e o pecador (ver Rom. 5:10 e 11; II Cor. 5:19-21). Por meio da justificação e da reconciliação, o pecado introduzido pelo primeiro homem, Adão, é revogado pelo segundo Homem, Jesus Cristo. A despeito de sua importância, não podemos demorar-nos aqui neste assunto, mas ele conduz a uma outra pergunta: Que espécie de pessoas são os descendentes do segundo Homem?
O generoso dom da graça que produz justificação e reconciliação pode restaurar a imagem de Deus no homem? Esta tem sido uma questão difícil para os cristãos resolverem. Se a resposta for “Não”, o generoso dom da graça parece perder uma parte de seu valor. Se aquilo que foi desfigurado na Queda realmente não é restaurado, como se pode dizer que o segundo Homem desfez o que foi efetuado pelo primeiro homem? Por outro lado, se a resposta for “Sim”, o que se reivindica para esse generoso dom da graça talvez seja maior do que ele parece ser capaz de transmitir. Alguns cristãos têm procurado enaltecer o dom da graça supondo que já estão plenamente restaurados à imagem de Deus. Julgam ser possuidores de perfeição no tempo presente ou esperam possuí-la nalgum ponto no futuro. Mas os nossos sentidos nos dizem que esses pretensos perfeccionistas, embora levem uma vida circunspecta, ainda estão sujeitos ao pecado. Como descreveremos então a natureza humana após o dom da graça?
No tocante à imagem de Deus segundo a qual o homem foi criado, devemos ter em mente que não é o próprio Deus, mas apenas uma semelhança dEle que se encontra no homem. Aquilo que uma vez estava no homem pode ser restaurado mediante o dom da graça. Não se pode falar, portanto, em perfeição, mas apenas de restauração da imagem ou da semelhança de Deus no homem. Isto não é, porém, algo insignificante. Também não é meramente um desenvolvimento natural ou uma melhoria geral das condições humanas, pois requer um ato de criação. O salmista escreveu: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova dentro em mim um espírito inabalável.” Sal. 51:10. Por conseguinte, restaurar a imagem de Deus no homem é obra de nosso Criador e Redentor.
Como uma pessoa pode saber que foi criada dessa maneira e que a imagem de Deus está sendo restaurada em seu íntimo? Mais uma vez a Bíblia é mais prática do que teórica em sua resposta. A Escritura declara: “Aquele que não ama 24 não conhece a Deus, pois Deus é amor.” I S. João 4:8. Em outras palavras, a imagem de Deus é restaurada em nós até o ponto em que realizamos coisas divinas, a primeira das quais é o amor. Entretanto, mesmo com este discernimento é difícil saber quão plenamente a imagem de Deus é restaurada em nós, pois o amor de que estamos tratando sempre é dirigido para os outros. “Amados, se Deus de tal maneira nos amou, devemos nós também amar uns aos outros.” I S. João 4:11. Se, portanto, a evidência da restauração da imagem de Deus em nós é dirigida para os outros, como nós mesmos podemos ter certeza disso? Como regra geral, podemos deduzir que o grau em que a imagem de Deus é restaurada numa pessoa só é percebido pelos outros. Aquele que traz a semelhança de Deus não se apercebe disso; com efeito, quanto mais o caráter de alguém se torna semelhante ao de Deus, tanto mais esse indivíduo sente quão grande é o abismo que ainda existe nesse sentido. Mas ele desfrutará certa confiança e certeza que promanam naturalmente da restauração da imagem de Deus numa pessoa. Essa confiança e certeza se chama fé.
A nova família humana, os descendentes do segundo Homem são convidados a ser filhos e filhas de Deus e a cumprir as atribuições originais designadas à humanidade. Elas são três.
Primeira: o homem e a mulher foram criados para a glória de Deus. Isto os distingue de todas as outras criaturas. É-lhes dado poder e domínio na Terra, e são uma espécie de representante divino. O Salmo 8 retrata isso dramaticamente ao apresentar o homem como aquele sob cujos pés foram colocadas todas as coisas feitas pela mão de Deus. O Senhor parece dar mais honra ao homem e à mulher do que reserva para Si mesmo, e eles são convidados a alegrar-se nessa honra e esplendor, e a louvar a Deus por ela, assim como um filho honra a seus pais por meio de nobres consecuções e pela beleza de caráter. Quanto mais brilhantemente o homem e a mulher governam a Terra, tanto maior é a glória e o louvor que eles trazem para Deus.
Segunda: a humanidade recebe uma comunidade em que deve viver. A família provê o círculo interno dessa comunidade; clãs, tribos, cidades, igrejas, nações, na realidade toda a raça humana, constituem círculos externos adicionais. A comunidade proporciona amizade e companheirismo, e requer dedicação e cuidado. O homem e a mulher são convidados a buscar semelhante amizade e companheirismo e a retribuí-los com dedicação e cuidado. Dentro dela a raça humana irá prosperar. Nascerão crianças; será desenvolvido o caráter; prestar-se-á ajuda e se proporcionará conforto; e mesmo a morte poderá ser enfrentada e integrada na vida que terá de prosseguir.
Terceira: o homem e a mulher são colocados no mundo físico da boa Terra de Deus, “para o cultivar e o guardar” (Gên. 2:15). O domínio sobre a Terra que eles receberam de Deus é o de um governante bondoso (Gên. 1:26). Não lhes permite explorar o mundo e seus recursos. Por outro lado, o mundo não é animado, nem imbuído de divindade, e não há o perigo de tocar num nervo divino ao cultivar o solo
e escavar as colinas. Com efeito, o mundo é tanto material como secular, criado para o uso, benefício e manutenção da humanidade. É nosso lar, e nisto reside nossa responsabilidade para com ele. Como dádiva de Deus, destinada a manter a vida e torná-la produtiva, a Terra deve ser cuidada e preservada. Não devemos destruir, exaurir, poluir ou assolar a dádiva da boa Terra de Deus, pois quando Ele a criou, tornou-a muito boa, e recomenda que aqueles que foram criados à Sua imagem tratem bem à Terra.
Ter a imagem de Deus, portanto, significa ser um filho de Deus, e denota dependência, privilégio e obrigação. Crer que fomos criados à imagem de Deus e conforme a Sua semelhança significa reconhecer nossa dependência de Sua Pessoa para termos vida, apreciar o privilégio de pertencer a Sua família e assumir as obrigações resultantes.
Niels-Erik Andreasen, diretor do Departamento de Estudos Bíblicos, Divisão de Religião, Universidade de Loma Linda, Califórnia.