O que a experiência do centurião Cornélio pode nos ensinar sobre os dons espirituais Silvia Scholtus

“Morava em Cesareia um homem de nome Cornélio, centurião da coorte chamada Italiana” (At 10:1). Essa é uma história interessante. Nela vemos o modo como o Espírito Santo mexeu com os preconceitos herdados pelo apóstolo Pedro e pelos primeiros cristãos judeus. O Espírito concedeu dons àqueles que ainda não eram da “igreja” nem haviam sido “batizados”. Nesse ato divino, demonstrou-se que não há discriminação de etnia, condição social ou gênero na distribuição dos dons.

Cristo disse a Seus discípulos que o crescimento da igreja ocorreria por intermédio do Espírito. O Consolador seria responsável por convencer o mundo do pecado, da justiça e do juízo (Jo 16:8). Na história de Cornélio, essa obra fica evidente. De acordo com o relato, Deus enviou um anjo ao centurião, afirmando-lhe que sua oração havia sido ouvida e que ele deveria chamar o apóstolo Pedro. Essa intervenção nos ajuda a entender como os cristãos colaboram com Deus na tarefa de testemunhar de Sua graça. Os crentes devem estar atentos para “ver” como o Espírito está operando em cada coração.

Enquanto isso, o Consolador trabalhava no coração e na mente de Pedro. Ele foi “convencido” pelo Espírito a deixar seus preconceitos culturais por meio de uma visão. Quando os emissários de Cornélio chegaram, sua mente estava pronta para aceitar o convite desse “gentio”. Sem dúvida, o Espírito é quem de fato convence. No caso de Cornélio, o Espírito Santo o havia convencido do pecado (era “temente a Deus”, At 10:2), e mostrou-lhe como obter a “justiça”, indicando alguém que pudesse lhe dar explicações. No caso de Pedro, o Espírito o convenceu da justiça, preparando-lhe para entender melhor a extensão da graça divina. Ele também mostrou que, ao manter barreiras estabelecidas por tradições culturais e religiosas equivocadas, o apóstolo cometia um erro.

Quando Pedro aceitou ir à casa desse “gentio”, alguém culturalmente rejeitado pelos “eleitos”, levou com ele uma delegação de “crentes de Jope”, a fim de evitar ser criticado. Na casa de Cornélio, o Espírito Se manifestou poderosamente, derramando dons sobre aqueles gentios, antes de que fossem batizados. Assim, o Espírito mostra aos cristãos as barreiras sociais e culturais que devem ser derrubadas para incluir aqueles que Ele tem convencido a ser parte do grande povo de Deus (Ap 18). O que dizer a respeito daqueles que recebem dons espirituais? Este artigo extrai princípios da administração dos dons do Espírito, obtidos a partir desse importante relato da igreja apostólica.

Princípios de administração dos dons

Princípio 1: O Espírito é quem administra os dons. Durante a visão anterior à sua visita a Cornélio (At 10), Pedro recebeu o dom de discernir a graça de Deus e a administrou, não se opondo à atuação do Espírito
Santo, que concedeu dons àqueles que eram considerados impedidos de recebê-los em virtude de barreiras étnicas e religiosas. O Espírito concedeu, e o apóstolo aceitou e também difundiu a graça de Deus de um modo melhor. Pedro testificou da orientação que recebeu do Espírito àqueles que estavam “dentro” da igreja. Evidentemente, a “igreja”, com todos os dons recebidos, ainda não entendia a maneira pela qual o Espírito administra os dons. “Ver” essa graça também é um “dom” espiritual.

Princípio 2: O Espírito é o responsável por gerar um organismo que permita a plena expressão dos dons concedidos para a missão. Às vezes o Espírito Santo tem que lidar com a incompreensão daqueles que receberam dons, aceitaram a graça divina e, embora sejam Seus colaboradores, tornaram-se empecilhos para o avanço da missão. Na história de Cornélio, Ele levou Pedro e seus amigos para que fossem “testemunhas” de que Sua graça é derramada sobre todos aqueles que aceitam a Cristo. Assim, a comitiva apostólica não pôde rejeitar essa demonstração. Isso iria contra Deus. Dessa forma, o Espírito ligou os recém-convertidos àqueles que já faziam parte da igreja.

Pedro entendeu que cada dom era dado para “servir os outros” (1Pe 4:10, NVI). Quando ele teve discernimento, serviu a Deus ajudando a integrar os novos crentes na comunidade de fé. Às vezes, o termo “serviço” é traduzido como “ministério”. No texto, o apóstolo usou o termo diakonéo, também utilizado para descrever a atividade de alguém disposto a receber os dons do Espírito para servir os outros. Paulo se considerava um “diácono” (Ef 3: 7; Cl 1:23, 25), e Cristo Se considera um servo que veio exercer diaconia (Mt 20:28; Mc 10:45). É possível dizer que a diaconia é o nível em que se encontram todos os dons. Os cristãos devem cuidar para não limitar, rotular ou impedir as expressões de dons que o Espírito concede para Seu serviço.

Princípio 3: Na concessão de dons não há distinção étnica, social ou de gênero. Paulo disse que “não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”, portanto, “herdeiros segundo a promessa” (Gl 3:28, 29). O Novo Testamento deixa claro que o “serviço” é uma atribuição de todos os cristãos.

No Antigo Testamento, Israel deveria ser um “reino de sacerdotes e nação santa” (Êx 19: 6), encarregado de mostrar Deus ao mundo. Essa responsabilidade não se limitava aos levitas e sacerdotes. Estes últimos, aliás, simbolizavam o ministério de Cristo no Santuário Celestial. Quando Jesus morreu, essa tipologia não mais era necessária. No entanto, o sacerdócio de acompanhamento da obra de Cristo no Céu permaneceu em vigor. Pedro enfatizou isso dizendo que os cristãos são “raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes Daquele que vos chamou das trevas para a Sua maravilhosa luz” (1Pe 2:9).

O Espírito concedeu dons sem qualquer tipo de discriminação. Por exemplo, os primeiros diáconos eram de origem grega (At 6); Priscila e Áquila eram evangelistas (Rm 16:3); o dom de profecia foi concedido a homens e mulheres (At 13:1; 15:32; 21:9), bem como o dom de línguas (At 2) e outras habilidades para o serviço (Tg 1:5; 2:2, 3).

Objetivos dos dons

Os dons concedidos não são para gerar competição entre os membros, mas para servir à igreja harmoniosamente, sem impedir a operação planejada pelo Espírito. Somente assim a igreja poderá ver os dons e manter um vínculo correto com o Espírito de Deus para a propagação do evangelho.

Crescimento interno

Paulo disse que Cristo é a cabeça e, a igreja, Seu corpo (Ef 5:23; Cl 1:18, 24). Esse corpo cresce pelo poder que operou em Jesus, ressuscitando-O dentre os mortos (Ef 1:11, 19, 20; 2:2; 3:7, 20; 4:16). Ao mencionar o Salmo 68:18, o apóstolo afirmou que a intenção divina em conceder dons aos homens é “para que o Senhor Deus habite no meio deles” ou “para encher todas as coisas” (Ef 4:8-10). Todo crente se torna morada em que Deus habita. Quanto mais dons espirituais se manifestam, maior é a presença do Senhor (cf. 1Co 6:19). Assim, não se deve destacar alguns dons em detrimento de outros porque, ao assim fazer, a presença manifesta de Deus na igreja acaba sendo obscurecida ou anulada.

Paulo organizou diferentes listas de dons espirituais, feitas de acordo com seus respectivos contextos. Por exemplo, em Efésios 4:11, ele tratou acerca daqueles que têm responsabilidade direta na promoção do conhecimento, para evitar que o corpo de Cristo seja ferido e perca parte de seus membros num conflito interno. Assim, cada dom tem a função de realizar uma diaconia (serviço) por amor, a fim de promover o crescimento do corpo.

Em 1 Coríntios 12, o apóstolo afirmou que os membros do corpo são muitos e têm diferentes funções (1Co 12:18-20), todas elas importantes. Embora Paulo exorte a buscar os melhores dons (1Co 12:31), ele mostra que o propósito final é o amor (1Co 13). A ideia é que o exercício dos dons não seja um desejo que desvia do objetivo fundamental para o qual eles operam. Cristo disse que o amor que se manifesta entre Seus seguidores seria o elemento de distinção com o mundo (Jo 17:21-23, 26).

Atualmente, a igreja cristã tem vários problemas que impedem seu crescimento. Algumas dessas dificuldades estão relacionadas com seu crescimento quantitativo. A falta de informação sobre a administração dos dons gera críticas ou interpretações equivocadas quanto às atitudes daqueles que realizam diferentes “serviços”. Como resultado, às vezes a igreja passa a enfrentar movimentos independentes ou separatistas. Isso contribui para que os membros parem de congregar ou abandonem a igreja. Além disso, a pressão para se obter bons resultados quantitativos produz tensão em relação aos resultados qualitativos. Essas dificuldades causam nos membros uma crise de fé.

A exortação de Paulo aos crentes do primeiro século para que crescessem no conhecimento da graça de Deus chega aos nossos dias com voz poderosa. Todos os dons são resumidos em um objetivo: o amor. Portanto, eles expressam diretamente o caráter amoroso de Deus, que é oferecido na diaconia a Seus seres criados.

Crescimento externo

O Espírito é quem convence e atrai, mas aqueles que receberam os dons colaboram com Ele. Os membros que possuem dons relacionados com a propagação do evangelho serão capazes de fazer melhor seu trabalho quando forem apoiados por aqueles que receberam dons ligados ao crescimento interno da igreja. O caminho mais excelente do amor faz com que a vinculação no Espírito seja real, resultando no apoio a todas as necessidades da igreja em sua missão.

Um aspecto interessante da concessão de dons durante os primeiros anos do cristianismo é entendê-los à luz da resolução dos desafios decorrentes da expansão do evangelho. O lema manifesto para a resolução de problemas era manter a unidade da igreja. Essa unidade só foi alcançada por meio da intervenção e aceitação do Espírito Santo, que Se manifestou pela concessão dos dons que melhoraram a organização do corpo para que ele crescesse em qualidade.

Os primeiros capítulos de Atos destacam os dons que pareciam ser fundamentais para propagar o evangelho em um momento importante do desenvolvimento da igreja. Por exemplo, (a) o dom de línguas (At 2) ajudou a expandir a obra sem a barreira do idioma, num evento em que estavam presentes em Jerusalém judeus de várias partes do mundo; (b) o dom da hospitalidade foi dado em situações críticas de conversões em massa, de modo que aqueles que foram rejeitados por suas famílias tivessem provisões em todos os aspectos; (c) visões e sonhos foram dados para chamar atenção de alguns como Cornélio, Saulo e Pedro, e guiá-los a um relacionamento próximo com a igreja, evitando preconceito ou fanatismo. Nesse caso, o Espírito não fez diferença entre judeu ou gentio. Deus não faz acepção de pessoas (At 11:15-17). Isso evidencia a maneira pela qual a provisão divina dos dons colaborou para resolver as dificuldades que a igreja enfrentou em seus primeiros anos.

Portanto, o Espírito Santo administra a tensão entre o crescimento qualitativo e quantitativo, uma vez que é responsável pela concessão de dons que tratam de situações de conflito. Assim, Ele evita que se detenha o crescimento qualitativo e se mantenha o crescimento quantitativo.

Conclusão

A história de Cornélio apresenta Pedro fazendo a seguinte pergunta: “Se Deus lhes concedeu o mesmo dom que a nós nos outorgou quando cremos no Senhor Jesus, quem era eu para que pudesse resistir a Deus?” (At 11:17).

Os dons são administrados pelo Espírito. Eles são concedidos para apoiar o crescimento interno e a propagação das boas-novas. Aquele que recebe um dom deve entender que tem o privilégio de colaborar com o Espírito de Deus.

Tratar do tema dos dons é lidar com o caráter divino. O Espírito Santo é um “servo”, um “diácono” que administra e dá dons àqueles que amam a Deus para que O imitem ao servir à humanidade. A Bíblia afirma que aqueles que recebem dons espirituais estão envolvidos com o Senhor em Sua obra. O crente não deve crescer sozinho, mas em comunidade. Essa conexão é vital (Ef 4:12-16; 6:10-18). Algumas perguntas podem ser úteis para aqueles que desejam atingir esse objetivo:

1) Os membros da igreja estão proporcionando o ambiente ideal para a plena expressão dos dons concedidos pelo Espírito Santo, a fim de estimular o crescimento pessoal e corporativo e a propagação do evangelho?

2) Existe algum impedimento que limite a plena expressão dos dons espirituais (etnia, cultura, gênero)?

3) Minha igreja está crescendo em conhecimento? Há conflitos ou competição entre os dons? Qual é a solução que a Bíblia apresenta para esses conflitos?

A igreja não é um “negócio” de sucesso, que administra diferentes instituições em todo o mundo, mas um corpo espiritual que exerce os dons concedidos pelo Espírito, que se encarrega de preparar um povo para a segunda vinda de Cristo.

Ela continua enfrentando problemas e desafios. Ainda está na Terra, não no Céu. Todo membro tem a responsabilidade de exercer o dom que recebeu para preservar a unidade em amor sem competir, nem impedir a operação dos dons nem buscar a supremacia. É importante que o compromisso de cada cristão seja o mesmo do Espírito: preparar “uma igreja gloriosa” que possa permanecer em pé no “dia da redenção”. 

Silvia Scholtus, doutora em Teologia, é editora sênior na Editorial Universidad Adventista del Plata, Argentina