Periodicamente, através da História, a Igreja tem sido confrontada com o problema da introdução de novos elementos, estranhos a uma prevalecente tradição. No contexto do canto congregacional, a discussão sempre esteve centralizada na infiltração de elementos seculares. Neste artigo, pretendemos não somente apresentar a situação em si, mas também mostrar como as pessoas reagiram às mudanças ocorridas, em seu tempo, e tirar lições aplicáveis aos dias atuais.

Música secular na igreja 

 O ressurgimento do elemento popular na música da igreja tem sido um fenômeno constante através da História. Os heréticos arianos usavam o poder de melodias populares para disseminar falsas doutrinas através do canto.1 Efraim Syrus, de Antioquia, um dos pais da Igreja no quarto século, não hesitou em recuperar essas melodias, dizendo-se consciente de seu efeito “agradável”.2 Novecentos anos mais tarde, reagindo ao duro formalismo da Igreja e desejoso de que os hinos fossem mais cristocêntricos, Francisco de Assis também integrou melodias e ritmos contemporâneos ao seu louvor.3

Martinho Lutero, também reagindo contra o estilo formalista de culto na Igreja de seu tempo, usou melodias e ritmos familiares ao povo para seus corais.4 Ao contrário de Calvino, Lutero não percebia a Igreja como separada da sociedade; em sua filosofia, os elementos seculares podiam ser transformados de acordo com uma nova com-preensão.

Durante o fim do século XVII e o início do século XVIII, os pietistas, em reação contrária ao escolasticismo da Igreja protestante, rejeitaram o estilo de ópera característico da música de arte, e adotaram hinos cujos ritmos tinham características dançantes. Na Inglaterra, João Wesley tinha a idéia de que a melodia dos hinos deveria ser acessível, de modo que todos pudessem participar no canto e expressar sua aceitação pessoal da salvação. Para grande descontentamento dos oficiais da Igreja, ele adaptou melodias populares, valendo-se de muitas fontes.5

Chegando ao século passado, o canto de hinos era um elemento significativo durante as reuniões campais e o Grande Despertamento. Essa prática tinha o propósito de ser um meio para comunicação do evangelho, por meio de uma linguagem simples e direta, e de uma maneira efetiva para homens e mulheres comuns. As melodias desses cânticos espirituais ou evangélicos eram bem populares, fáceis de ensinar e de aprender, em sua maioria, adaptadas de cânticos folclóricos bem conhecidos. Algumas delas, usadas nas reuniões de reavivamento protagonizadas por Moody e Sankey, no fim do século XIX, foram herdadas de Stephen Foster.6 William Booth, fundador do Exército da Salvação, partilhava a mesma filosofia.

Esse desejo de reintroduzir a simplicidade da música popular na experiência do culto brotava, freqüentemente, de uma reação à pompa e à formalidade que caracterizavam a religião oficial. Além disso, até aquele momento na História, a congregação ficava geográfica e, com freqüência, fisicamente separada por um biombo do coro da igreja, o local onde o ofício do culto tinha lugar.7 O estilo suntuoso da Igreja bizantina ocasionou os hinos antifônicos simples de Ambrósio; a luxúria da liturgia romana dirigiu a convicção de Lutero em relação à necessidade de hinos próximos do povo. Essas “reformas” correspondem então a um tempo de reaviva-mento e reforma, um tempo quando os reformadores decidiram colocar a música de volta nas mãos do povo.

A reação oficial da Igreja a essas inovações muito freqüentemente resultou em proibição parcial ou total da participação congregacional no serviço. Entre os possíveis motivos para uma decisão tão radical, poderiamos enumerar o medo do sincretismo ou enfraquecimento dos poderes eclesiásticos, suspeita de que a espontaneidade do povo pudesse comprometer o caráter transcendental do ato de adoração, ou simplesmente uma preocupação pelo continuísmo da tradição.

O Concilio de Laodicéia, convocado pelos pais da Igreja em 367 d.C., decidiu proibir o canto congregacional, a fim de evitar o uso de melodias seculares, bem como proibir a utilização de instrumentos, para que não fossem feitas associações pagãs. Uma decisão semelhante foi tomada por ocasião do Concilio de Trento (1545-1563). O canto congregacional já não era parte da Missa, mas foi relegado aos momentos extra-litúrgicos da devoção popular. Juntamente com a eliminação da participação congregacional na Missa, o Concilio também proibiu o uso de elementos seculares, tidos como “lascivos e impuros”8 como uma base para a composição da Missa, uma prática que tem sido disseminada por 200 anos.

Fontes de resistência

A resistência em relação às mudanças na área de música na igreja, não foi de domínio exclusivo dos líderes eclesiásticos. Muitos protestos vieram de dentro da própria congregação. É digno de nota que tais reações não ocorreram unicamente quando as alterações afetavam verdades teológicas e valores morais. Aparentemente, as mudanças eram, por si mesmas, o problema. O “novo” era mau simplesmente porque era novo. Alguns dos argumentos apresentados naqueles tempos tinham sabor muito contemporâneo.

Em 1712, Thomas Symmes, que encorajou uma nova maneira de cantar (usando partitura), em contraposição à prática do canto pela prática, relata algumas das reações verificadas: “Embora na polida cidade de Boston a nova modalidade de canto tenha encontrado boa aceitação, no campo, onde as pessoas são mais rústicas, alguns velhos mal-humorados desferem testemunhos fortes contra essa inovação, e … não apenas … classificam o cântico destes cristãos como um louvor ao demônio, como também saem da reunião e voltam para casa, assim que o serviço tem início.”9

Entre as objeções, nós encontramos as seguintes: “É uma nova maneira, uma língua estranha. Não é tão melodiosa quanto a maneira usual. … A prática causa distúrbios, e leva o povo a se comportar desordenada e indecentemente. … Os nomes dados às notas (dó, ré, mi) são indecentes e também blasfemos. É um modismo desnecessário, desde que nossos pais alcançaram o Céu sem ele.”10

Agitação na igreja

É um fato bem conhecido que a introdução de “novos” instrumentos também criaram tumulto na comunidade cristã. Tal foi a situação vivida na Nova Inglaterra, no final do século XVIII. Uma igreja da região teve de recusar um órgão que lhe foi ofertado pelo tesoureiro da Universidade Harvard, sob o argumento de que “se fosse permitido o uso de órgãos, logo outros instrumentos também o seriam, e, então, o local se tomaria um salão de danças.”11

Finalmente, “a igreja de Brattle Street rendeu-se ao inevitável e decidiu aceitar o órgão, mas, mesmo assim, houve uma amarga discórdia na congregação. Um irmão muito rico suplicou com lágrimas que a casa de Deus não fosse profanada, prometendo ofertar o equivalente ao preço do instrumento, desde que ele fosse lançado no fundo do porto de Boston. Gradualmente, porém, a oposição foi diminuindo”.12

Da mesma forma que o órgão foi considerado um instrumento secular, para o qual não haveria lugar na igreja, os instrumentos usados por J. S. Bach, em sua “Paixão de São Mateus” também foram considerados sacrílegos naqueles tempos. “Quando numa grande cidade a música de Bach foi tocada pela primeira vez, com doze violinos, muitos oboés, fagotes e outros instrumentos, muitas pessoas ficaram assustadas sem saber o que fazer. Num lugar especial do templo, muitos ministros, senhores e senhoras nobres estavam presentes, acompanhando o coral com muita devoção. Mas quando os instrumentos foram acionados, toda aquela gente ficou grandemente perplexa, olhando um para o outro e dizendo: ‘O que será isto?’ Uma viúva da nobreza gritava: ‘Salve-nos Deus, meus filhos! É justamente como se fosse uma comédia de ópera!’ Mas todos estavam sinceramente ofendidos por aquilo, e se queixaram abertamente. Há, é verdade, algumas pessoas que ainda têm prazer nessas coisas infundadas.”13

Dificuldade para mudar

Os exemplos anteriores demonstram como é difícil mudar, mesmo se isso for para melhor. Na verdade, a mudança é sempre um processo doloroso, porque nós gostamos de conservar o que é familiar, confortável e não ameaça. Além disso, o valor do que é antigo é associado a tradição, estabilidade e ausência de mudança.

Tradição é, freqüentemente, um assunto de sentimento familiar, com o qual nós crescemos, e acaba sendo interpretado como ver-dade. A música antiga carrega também a aura de ser consagrada pelo passado. Antiguidade toma-se uma recomendação em si mesma. Hoje, a veneração do passado é essencialmente uma conseqüência do Romantismo. Realmente foi a compreensão romantista do mundo como uma unidade orgânica que despertou o interese na origem das coisas, e assim levou à consideração dos tempos passados como valiosa e digna de interesse.

Depois daqueles tempos, a música feita por compositores contemporâneos tem sido ofuscada por concertos que apresentam obras históricas. Antes do século XIX, não era comum a execução de obras musicais muito antigas, tanto nas igrejas como em auditórios seculares. É um fato bem conhecido que J. S. Bach, por exemplo, produzia uma nova cantata cada domingo, o que, a propósito, explica as numerosas apropriações de suas obras, bem como das de outros compositores antigos, uma prática difundida há muito tempo. Tais apropriações envolviam fontes seculares ou sacras.

Os exemplos também confirmam o problema de apropriação de elementos musicais seculares familiares à congregação. E isso é o que grandes personalidades eclesiásticas fazem desde o princípio. Examinando mais profundamente a questão, parece que as razões dessa tensão residem no conflito entre dois ideais diferentes para música na igreja. Por um lado, notamos a preocupação por meios relevantes de participação congregacional, uma maneira de o povo se alegrar e cantar junto sem treinamento musical particular, enfatizando os aspectos humanos da religião. Por outro lado, também notamos a preocupação pelo elevado ideal da música eclesiástica, como uma expressão transcendental de Deus e da verdade, um meio para elevar o pensamento humano ao Criador.

De fato, as duas preocupações são legítimas e deveriam trabalhar de mãos dadas numa saudável e necessária tensão. A fim de que a música na igreja se tome uma autêntica expressão de louvor, ela deve ter implícitos tanto os aspectos transcendentais como antropológicos. Deve ser apropriada às circunstâncias, e daí traduzir o elevado caráter do louvor; mas também deve ser relevante e comunicada numa linguagem que seja facilmente compreendida para uma participação mais espontânea.

As lições da História

A primeira lição que podemos tirar da História é, por conseguinte, uma lição de abertura e flexibilidade. Entretanto, se esses princípios ainda são aplicáveis hoje, permanece uma intrigante questão: pode a História ser usada como um modelo perfeito para os dias atuais? Em outras palavras, como podemos usar os elementos seculares em nosso canto congregacional? Para responder essa questão de maneira apropriada, devemos não somente considerar os paralelos com a História passada, anteriormente descrita, mas também ser sutilmente cônscios das diferenças. Realmente, a situação atual traz novos elementos específicos que tomam o processo de mudança muito mais complexo e certamente mais delicado. Eu assinalaria aqui pelo menos dois elementos:

Primeiro, nos tempos históricos, a introdução de música secular foi proposta e monitorada por teólogos, e realizada por profissionais do ramo. Muitos dos reformadores falam não apenas de adoção, mas de adaptação. Alguns pais da Igreja eram treinados na música, e o mesmo era verdade em relação a Lutero, que trabalhava intimamente com eminentes compositores, como Johann Walter. Esses músicos eram especialistas tanto na música secular como na música sacra, e sabiam como manipular a linguagem para qualquer um dos dois modelos.

A atual reforma da música religiosa, iniciada pelo Concilio do Vaticano II, é maiormente o resultado de um movimento fundamentado na máxima “Do povo e para o povo”. A iniciativa para reforma freqüentemente vem diretamente da congregação, e, na realidade, é feita pelo povo que forma a congregação.

Nossa cultura tem desenvolvido um forte senso de democracia e, especialmente, desde os anos 60, os jovens têm conseguido voz própria e participado ativamente em vários assuntos sociais. De nada ajudaria ignorar ou negar essa realidade que pode ser observada em muitos outros aspectos da sociedade.

O mesmo fenômeno não poderia deixar de acontecer na religião. Os jovens necessitam expressar seu desejo de participação através de sua própria linguagem na música. Entre-tanto, o entusiasmo da convicção e o estímulo da ação não devem privá-los da reflexão sobre a natureza do louvor e o propósito da música na igreja. Eles também devem estar preocupa-dos com a natureza e o expressivo poder da música, e com seus elevados padrões.

Em segundo lugar, a mais forte consideração, no entanto, deve ser as mudanças que têm transformado o mundo moderno com respeito a sua compreensão do sagrado e do secular. Aqui reside a principal dificuldade para adoção de elementos seculares no louvor. A sociedade atual é caracterizada por uma grande rachadura entre o sagrado e o secular. A vida diária não é mais permeada pelo sagrado; já não existem leis, nem diretrizes.

Uma rememoração da História e uma observação lúcida de nossos tempos devem inspirar nossa abordagem do problema. Algumas pessoas adotam atitudes tradicionais de rejeição ou proibição, mas a História mostra que tais reações não são muito efetivas.

As mudanças acontecerão de qualquer maneira, com ou sem a nossa participação. Isso é um fato. Em lugar de rejeitá-las e assim provocar revolta, devemos nos tomar parte delas, fazendo-as acontecer de um modo responsável.

Por outro lado, considerando as forças que hoje nos rodeiam, conforme mencionadas anteriormente, as mudanças necessitam ser mui-to mais controladas e monitoradas do que nos dias de Lutero ou Wesley. Talvez a educação seja muito mais necessária hoje. Todavia, ela não deve operar contra, mas com, o povo. Isso significa ouvir um ao outro, e preparar um plano de ação comum. Melhor que resistir às mudanças, os músicos deveriam tomar parte nelas, ajudando na sua forma. Não é esse, afinal, o desafio do artista na sociedade?

Referências

  • 1. Theodore Gerold, Les Peres de 1’Eglise et la Musique, Geneva; Minkoff, 1973, págs. 46 e 47.
  • 2. Jules Jeannin, Melodies Liturgiques, Paris; Leroux, 1924, pág. 147.
  • 3. Donald P. Hustad, Jubilate! Christian Music in Evangelical Tradition, Carol Stream III; Hope Publications, 1981, pág. 123.
  • 4. Friedrich Blume, Protestant Church Music: A History, Nova Iorque, Norton, 1974, págs. 29 a 33.
  • 5. Adrew Wilson-Dickson, The Story of Christian Music: From Gregorian Chant to Black Gospel: An Autho-ritative lllustred Guide to all the Major Traditions of Music for Worship, Oxford; Lion, 1992, pág. 117.
  • 6. James R. Nix, Advent Singing, Washington, Departamento de Educação da Divisão Norte-Americana, 1988, págs. 88 e 89.
  • 7. James F. White, Introduction at Christian Worship, Nashville; Abingdon Press, 1991, págs. 100 e 102.
  • 8. Edith Weber, Le Concile de Trente et la Musique: De la reforme a la contrere-reforme, Paris; Honore Champion, 1982, págs. 65 e 87, 196 a 199.
  • 9. In K. Silverman, Selected Letters of Cotton Mather, Baton Rouge: Imprensa Universitária do Estado de Louisiana, 1971, pág. 376
  • 10. Henry Wilder Foote, Three Centuries of American Hymnody, Hamden, Shoe String Press, 1961, pág. 102.
  • 11. Edward S. Ninde, The Story of the American Hymn, Nova Iorque; Abingdon Press, 1921, pág. 95.
  • 12. Ibidem, págs. 96 e 97.
  • 13. Christian Gerber, in H. David e A. Mendel, The Bach Reader: A Life of Johann Sebastian Bach in Letters and Documents, Nova Iorque; W. W. Norton, 1966, págs. 229 e 230.