Como deve um cristão estudar a Bíblia? Como adventistas do sétimo dia, você e eu, juntamente com outros milhares ao redor do mundo que aceitaram as três mensagens angélicas como a última mensagem de Deus a um mundo agonizante, o sabemos muito bem. Tal como Paulo afirmou, devemos estudar a Bíblia não como “palavra de homens”, mas como “a Palavra de Deus” (I Tess. 1:13).
Essa pressuposição fundamental nos coloca imediatamente em uma posição singular para definir o método a ser usado para o estudo das Escrituras. Ele deve ser um método que 1) trata a Bíblia como a revelação inspirada de Deus à humanidade, 2) faz uma leitura desprovida de crítica em relação à sua validade, 3) compreende-a como uma inquebrantável unidade, do Gênesis ao Apocalipse, e 4) reconhece sua plena autoridade.
Na Bíblia, divindade e humanidade estão inseparavelmente juntas. A divindade revelou a perfeita verdade, inspirando homens através da ação do Espírito Santo; e a humanidade colocou essa revelação na imperfeita linguagem humana. Deus não inspirou as palavras, mas os homens que escreveram as Escrituras. Quando nós estudamos a Bíblia, não devemos pensar que encontraremos infalibilidade nas palavras, mas perfeição no conteúdo.
O estudo das palavras, da linguagem, estrutura literária, do ambiente histórico, etc., estão sempre condicionados ao conteúdo divino pessoal estruturado. Não é a linguagem que configura esse conteúdo, mas é ele quem determina a linguagem escolhida para completa compreensão da verdade revelada, e aplicação prática e espiritual de um texto bíblico em particular. Um conteúdo claro ilumina outro não tão claro, mas relacionado. O contexto é mais importante para compreender um conceito do que palavras particularmente usadas para transmiti-lo. O método correto não vai da linguagem ao conteúdo, mas do conteúdo divino pessoal estruturado às palavras e linguística, ou mesmo às estruturas literárias.
Embora este artigo pretenda ser um testemunho pessoal sobre os modernos métodos crítico-científicos de estudo da Bíblia, tal testemunho deve ser informativo. Portanto, veremos rapidamente alguns desses métodos.
Desde a Reforma, três principais métodos têm lutado para conquistar a comunidade erudita mundial – método gramático-histórico, método crítico-histórico e método estrutural. A ênfase principal deste artigo será sobre o método crítico-histórico considerando ser ele o mais popular através dos anos, e o que mais influência tem exercido entre os eruditos bíblicos.
Método gramático-histórico
O método gramático-histórico, seguido por importantes reformadores como Calvino, Zwínglio e Melancton, tornou-se o método adotado pelos protestantes e o fundamento dos estudos realizados tanto por eruditos como por educadores cristãos, da Reforma até o presente. É originado no princípio de Sola Scriptura. A Bíblia, como inspirada Palavra de Deus, deve ser seu próprio intérprete. A inspiração deu a mensagem de Deus aos escritores, que a comunicaram à humanidade em linguagem limitada. Esse método está preocupado com o conteúdo das Escrituras. Conhecimento de autoridade, antecedentes históricos, data da composição, e linguagem também são importantes mas somente quando relacionados ao conteúdo de um livro em particular e à Bíblia como a soberana Palavra de Deus.
Método crítico-histórico
O método crítico-histórico opera em oposição. O conteúdo não é tão importante quanto os estudos eruditos. Considera as Escrituras como um produto histórico, puramente humano. Sua ênfase não é sobre o aspecto “histórico”, mas sobre o “crítico”. Pressupõe apenas erudição, livre de qualquer doutrina, especialmente da doutrina da inspiração. Dessa forma, a Bíblia deve ser estudada cientificamente. Ou seja, de acordo com os eruditos alemães, “humana” e “racionalisticamente”. O método crítico-histórico não estuda a Bíblia como “a Palavra de Deus”, mas como “a Palavra do homem”.
Esse método originou-se no século dezoito como fruto do iluminismo do racionalismo, por Johann Salomo Semler (1725-1791), filho de um pastor luterano pietista. Embora rejeitasse o pietismo, ele tomou-se um professor e diretor da Faculdade de Teologia da pietista Universidade de Halle. Entre 1771 e 1776 Semler escreveu um livro em cinco volumes, criticando o cânon e a inspiração.
A principal tese de Semler foi que nem toda a Bíblia é a Palavra de Deus. Ela apenas “contém” a Palavra de Deus. Seu trabalho crítico era uma tentativa de encontrar a Palavra de Deus nas Escrituras. Encontrar o cânon no cânon, com a ajuda do método crítico-histórico. Ele, o cientista, determinaria o que seria o cânon e o que não seria.
Dos dias de Semler até o presente, com a influência evolucionista nos estudos científicos, o método crítico-histórico tornou-se um elemento controlador dos eruditos descrentes na Bíblia. Esse método deixou cada erudito com o trabalho subjetivo de decidir quais partes das Escrituras eram inspiradas e quais não eram, e deu a cada leitor bíblico a impossível responsabilidade de escolher qual erudito é correto e qual está errado – como eles estão em frequente oposição, não podem estar corretos.
Eu creio que há uma caminho melhor para resolver o problema de qual parte da Escritura é inspirada e qual não o é – aceitar sua inspiração total e tratá-la plenamente como Escritura inspirada por Deus.
Nesse ponto, provavelmente é oportuno considerar rapidamente as partes fundamentais do método crítico-histórico: criticismo da fonte, criticismo da forma e criticismo da redação.
Criticismo da fonte busca descobrir se um livro bíblico é uma unidade escrita por um autor ou uma compilação de muitas fontes ou documentos colocados juntos por um ou muitos redatores. Começa com estudos do Velho Testamento, particularmente com o Pentateuco, e depois é também aplicado ao Novo Testamento.
Outro nome dado ao criticismo da fonte é “criticismo literário”, que inclui mais possíveis documentos – sua origem e natureza – que originalmente faziam um livro bíblico. É também o estudo de um texto ou livro como um trabalho literário. De fato, um estudo literário da Bíblia como uma obra de arte não é errado em si mesmo. O problema do crítico literário reside no fato de que ele trata as Escrituras “como qualquer outro livro”.
Para ter uma ideia do modo como isso ocorre daremos algumas informações relacionadas com o Pentateuco.
Desde o tempo apostólico até a Reforma, o Pentateuco foi geralmente considerado como escrito por Moisés sob a inspiração de Deus, com excessão de um pequeno número de judeus e eruditos cristãos que levantaram algumas questões. Entre os eruditos da Reforma, apenas Andreas von Karlstadt, em seu livro De Canonis Scripturis Libellus (1520), expressou dúvidas a respeito de Moisés como autor do Pentateuco.
Uma grande mudança ocorreu no século dezoito. Jean Astruc (1684-1766) escreveu, em 1753, um livro que tornou-se básico para o criticismo da fonte, Conjectures about the Memories in which it seems that Moses used to compose the book of Genesis, publicado em Paris. Sua conclusão: Moisés usou duas fontes. Uma, a Fonte A na qual o nome de Deus é Elohim, e a outra, a Fonte B, onde aparece o home de Yahweh. A essa Astruc adiciona mais dez fontes para o livro do Genesis.
De 1780 a 1783, J. G. Eichhom (1752-1827) popularizou e deu mais precisão à teoria de Astruc em seu livro Introduction to the Old Testament. Chamou a Fonte A de “Eloísta” e a Fonte B de “Jeovista”. Eichhom também falou sobre três a cinco fontes fragmentárias das quais os redatores teriam compilado de Gênesis a Levítico. Depois de Eichhom muitas hipóteses foram desenvolvidas.
A “hipótese fragmentária” foi introduzida por Alexander Geddes. Ele sugeriu que no tempo de Salomão um redator combinou muitos fragmentos contraditórios no Pentateuco.
A “hipótese suplementar” foi desenvolvida por H. Ewald (1803-1875) em um artigo publicado em 1831. A Eloísta foi “suplementada” por seções da Jeovista além de outras fontes fragmentárias.
Iniciada por H. Hupfeld (1853), e completamente desenvolvida por K. H. Graf (1815-1869), A. Kuenen (1828-1891), e Julius Wellhausen (1844-1918), apareceu a “nova hipótese documentária”. Wellhausen argumenta que quatro principais documentos forjaram o Hexateuco (Pentateuco mais Josué) – Documento J (Jeová) datado de 880 a.C., Documento E (Elohim) cerca de 770 a.C., Documento D datado de 621 a.C., e Documento P, do exílio até 450 a.C., tempo da redação final do Hexateuco.
Finalmente há a “novíssima hipótese documentária”. O Documento J dividiu-se em J1 e J2. O. Eissfeldt (1965) nomeou J1 como L (Fonte leiga) e G. Fohrer (1967) chamou-a N (Fonte nômade). O Documento E foi dividido em El e E2. Gehard von Rad dividiu o Documento P em Pa e Pb. Existem ainda outros argumentos para a existência da Fonte K36 (Fonte Kenita) e da Fonte S37 (Fonte Seir).
Surgiram muitas reações favoráveis ou contrárias ao criticismo da fonte ou literário. Mas uma coisa é clara. O criticismo literário do Velho Testamento não produziu até agora qualquer unidade definida de fontes para o Velho Testamento. Por quê? Porque os críticos eruditos não estão trabalhando com fontes atuais, mas apenas com hipóteses a respeito de fontes. Esse é um método inteiramente estranho ao conteúdo e ao texto bíblico.
Criticismo da forma pressupõe uma longa e complicada tradição oral para o Velho Testamento, bem como para o Novo Testamento. Ele tem início com os estudos do Velho Testamento e vai até o fim do último século, e foi estabelecido especialmente com um livro escrito por Hermann Gunkel (1862-1932) intitulado Genesis (1901). Ele afirmou que o Pentateuco foi escrito dos “ciclos orais de mitos”, e especulou sobre a maneira através da qual os textos escritos foram desenvolvidos em sua “forma” atual.
A pressuposição número um desse método é que antes do Velho Testamento não havia revelação de Deus, mas narrativas de contos oralmente transmitidos, dos quais – e por causa das forças sociológicas – os escritores do Velho Testamento produziram o respectivo texto. Esse texto, de acordo com H. S. Nyberg (1935), veio a existir, pela primeira vez, através do trabalho de uma “comunidade judaica pós-exílica”. Então ele data o Velho Testamento como literatura escrita no início do mesmo tempo entre a destruição de Jerusalém (587 a.C.) e os dias de Macabeus.
A segunda pressuposição sugere que existe um relacionamento direto entre a forma literária, as instituições sócio-culturais e o conteúdo do Velho Testamento. A compreensão do conteúdo do texto do Velho Testamento é necessária para reconstruir seus contextos sócio-culturais. A relação entre os dois – texto bíblico e contexto socio-cultural – foi dito ser o “assentamento vital” do texto, que lhe deu a “forma” final. Essa “forma” pode ser hinos, provérbios, lendas, romances, profecias, etc. O estudo da Bíblia, então, requer a reconstrução do assentamento vital. Dessa moderna reconstrução do assentamento socio-cultural, os críticos interpretam a unidade textual do Velho Testamento.
Finalmente, a terceira pressuposição estabelece que o texto do Velho Testamento apenas pode ser interpretado com a ajuda do fenômeno sociológico construído sobre linguística contemporânea, antropologia, e sociologia. É muito estranho, mas os críticos da forma consideram que as leis da sociologia contemporânea, antropologia e linguística trabalharam para formar material bíblico. Portanto, o texto cresce de pequenas unidades (formas curtas) a longas formas, como apresentadas no texto do Velho Testamento.
É preciso fazer um grande esforço de adaptação e uma tremenda dose de rejeição das pressuposições bíblicas para aceitar que nossa compreensão do seu material depende de mitos vazios transmitidos oralmente de improváveis assentamentos sociais reconstruídos, e das altamente mutantes leis da linguística, sociologia e antropologia. Se este era realmente o caso, eu duvido que pudéssemos recuperar qualquer conteúdo importante do texto bíblico. Mas este problema toma-se pior quando o criticismo da forma é usado para estudar o texto do Novo Testamento.
Isto se deu em 1919, quando muitos estudiosos alemães do Novo Testamento – entre eles Martin Dibelius (1883-1947), Kari Ludwig Schimidt (1891-1956), e Rudolf Bultmann – aplicaram esse criticismo aos evangelhos. Sua tarefa impossível era recriar o texto original do texto existente nos Evangelhos Sinóticos, cujas palavras ou ações eram realmente a palavras e os atos de Jesus, e que a eles foram acrescentadas pela Igreja apostólica.
Os críticos da forma do Novo Testamento aplicam muitas pressuposições das quais mencionaremos algumas.
Primeira, e a mais importante, é que “tradição consiste basicamente de declarações individuais e narrativas associadas aos evangelhos pelo trabalho dos editores”. Não havia escritores realmente inspirados, apenas editores trabalhando com narrativas e ditos.
Segunda, a tradição orientava e servia à Igreja, suas necessidades e propósitos. De acordo com M. Debelius, essa Igreja surgiu das igrejas helenísticas antes de Paulo associadas ao judaísmo. Eles configuraram a forma de tradição a partir de seus interesses missiológicos. Foi a Igreja, não a inspiração divina, que deu forma e conteúdo às narrativas missionárias.
Terceira, a tradição dos Sinóticos pode ser classificada em harmonia de “forma” e estilo. A forma, originada da Igreja apostólica, permite recriar a história da tradição. O conteúdo do Evangelho não vem de Deus, mas da situação vital da Igreja.
Como ocorrem mudanças de situação na vida da Igreja, ela cria diferentes formas de narrativas. Se em necessidade de pregação e ensino, ela produz paradigmas ou narrativas de atos de Jesus, para ilustrar e apoiar a mensagem. Se a questão é o prazer da narrativa, a Igreja produz novelas ou histórias de milagres. Outras formas, segundo M. Dibelius, foram mitos, contos e a narrativa da Paixão.
Rudolf Bultmann atribuiu a mesma experiência para a Igreja criar formas às quais deu diferentes nomes: ditos do Senhor que incluem provérbios, declarações proféticas ou apocalípticas, leis e normas para a comunidade. Contos, através dos quais Jesus falou a respeito de Si mesmo, Seu trabalho e Seu destino; e narrativas materiais, compostas de histórias de milagres, contos e narrativas históricos.
Apenas os nomes que eles escolheram para o que chamam “formas” mostram muito claramente como consideravam o Novo Testamento – uma literatura humana desprovida da revelação de Deus. E isso além do fato de que cada crítico desenvolveu seu próprio conceito de formas. Por que deveria eu, ou qualquer cristão, escolher a visão de Dibelius, Bultmann, ou qualquer outro, em lugar dos ensinos e conteúdo do Novo Testamento? Só por causa do eruditismo? Evidentemente eu valorizo o conhecimento tanto quanto qualquer adventista do sétimo dia, mas não a ponto de pagar um alto preço por ele. A revelação de Deus é absolutamente vital. Ela conta mais que o conhecimento humano. Conduz ao conhecimento da própria salvação. Como poderia eu rejeitar a verdade revelada de Deus e substituí-la por imaginárias especulações de homens? Eu não poderia fazê-lo e ao mesmo tempo permanecer honesto a Deus e à minha herança cristã.
Desde que Bultmann é o mais influente crítico da forma e seu prestígio é muito forte hoje, é necessário ter uma visão de algumas outras suposições das quais seus ensinos foram desenvolvidos. Em 1921, foi publicada a primeira edição do livro History of Synoptic Tradition. Sua aproximação feita dos Sinóticos, a partir de um levantamento histórico, requer uma explanação do seu conceito da história em geral e da história dos evangelhos em particular.
História, para Bultmann, era a mesma coisa que representava para qualquer outro crítico moderno – uma série de eventos cercados de causas e consequências naturais. Sem nenhuma interferência sobrenatural ou intervenção divina de qualquer tipo.
Até onde a História dos Evangelhos é afetada, ele não viu diferença alguma da História Geral. Não houve milagres, nem inspiração divina, nem qualquer tipo de revelação, nem obra de poderes sobrenaturais. Os evangelhos eram trabalhos literários puramente humanos, o produto das influências religiosas e históricas na comunidade, e seu conteúdo enquanto eventos de salvação, não pode ter acontecido realmente na História. Portanto, os evangelhos, como qualquer outro livro histórico, eram objeto e deviam ser submetidos à avaliação crtítico-histórica.
Esse método crítico como é aplicado por Bultmann a Jesus, por exemplo, deve produzir o seguinte quadro: Jesus foi apenas um professor ou profeta judeu humano. Ele ensinou que Deus enviaria o Filho do homem “que ressuscitaria da morte, julgaria todos os homens, conduziria o presente mundo corrompido a um fim, e estabeleceria um reino celestial.” Jesus nunca disse que Ele era o Filho do Homem.
A Igreja – de acordo com Bultmann – chegou a esta conclusão através de um processo crescente, o qual começou em Jerusalém, quando os discípulos creram que Jesus ressuscitou dos mortos. Continuou a crescer quando eles se convenceram de que o Mestre ascendeu ao Céu e voltaria brevemente como o Filho do homem para estabelecer o Reino de Deus na Terra. Até agora tudo isso foi desenvolvido dentro da igreja cristã palestina e fruto de sua própria invenção.
O próximo passo da evolução ocorreu entre os cristãos gentios que deixaram seus antecedentes orientais de religiões misteriosas e introduziram o conceito que Jesus também era uma deidade a ser cultuada. Tal processo, que uniu a fé palestina à helenística, segundo Bultmann, teve lugar antes dos escritos atuais dos evangelhos. Ele data de algum tempo entre 70 e 100 d.C. Portanto, ele diz, muito do conteúdo dos evangelhos foi “originado deliberadamente pelas comunidades cristãs palestina e helenística em resposta a específicas necessidades de expansão.”
Finalmente os evangelistas introduziram suas próprias contribuições quando eles escreveram os evangelhos.
Assim, que temos nós a fazer sobre o Jesus histórico e Seus reais ensinamentos nos evangelhos? De acordo com Bultmann, muito pouco. Jesus existiu, viveu, e morreu na Palestina, há cerca de dois mil anos. Mas as narrativas presentes nos Sinóticos são mitos que, “como contos de ocorrências sobrenaturais, não são históricas.” Que dizer a respeito dos ensinamentos de Jesus? Bultmann responde: “Nós não podemos definir com certeza a extensão da autenticidade das palavras de Jesus, mas estamos em condições de distinguir os vários níveis de tradição.”
Eu não vejo nenhum valor espiritual num método de estudo da Bíblia baseado em um anti-sobrenaturalismo racionalístico, uma rejeição da Bíblia como a Palavra de Deus, uma teoria da origem da fé cristã, e uma compreensão sócio-cultural-linguística de seu conteúdo. Nenhum crescimento espiritual cristão poderá advir de tal artifício.
Criticismo da redação originou-se do criticismo da forma, que via os escritores dos evangelhos como redatores sem personalidade própria. Essa compreensão transforma os autores evangelistas em indivíduos sem ideias teológicas pessoais. Tal problema sugeriu a alguns teólogos alemães, depois da Segunda Guerra Mundial, o estudo da “motivação teológica” dos autores dos evangelhos e “como isto é revelado na coleção, no arranjo, na edição e modificação do material tradicional, e na composição do novo material ou na criação de novas formas dentro das tradições do cristianismo primitivo.”
Os teólogos alemães eram Günter Bornkamm, que trabalhou com Mateus, Hans Conzelmann, que pesquisou Lucas, e Willi Marxsen, que estudou Marcos. Eles trabalharam independentemente, mas com a mesma aproximação. As ideias de Bornkamm apareceram primeiro. Professor da Universidade de Heidelberg e membro da direção da escola Bult-manniana, em 1948 ele publicou um pequeno artigo no jornal teológico da Escola de Bethel, que hoje está disponível em um livro publicado por dois de seus discípulos – Gerhard Barth e Heinz J. Held – intitulado Tradition and Interpretation in Matthew. Comparando o relato da tempestade, em Mateus 8:23-27 com Marcos 4:35-41, ele argumenta que Mateus a interpreta, colocando-a em um novo contexto e deu-lhe um novo significado. Ele não foi um mero coletor de material mas um teólogo usando-o para seus propósitos evangelísticos.
Hans Conzelmann é o mais importante crítico da redação. Seu livro, publicado primeiramente em alemão, no ano de 1954, Die Mitte der Zeit (O Centro do Tempo), foi traduzido para o inglês e publicado em 1960 como título The Theology of St. Luke. Olhando para a teologia do autor do evangelho, segundo a suposição básica do criticismo da redação, Conzelmann transforma Lucas, o primeiro historiador da Igreja, em um teólogo autoconsciente, com uma forte motivação histórica. Segundo ele, Lucas escreveu para resolver o problema de fé e história em geral e a “questão do Jesus histórico”, em particular.
Conzelmann argumenta que Lucas concentrou-se na “história salvadora” e a desenvolveu em três estágios. Primeiro, o período de Israel. Segundo, o período do ministério de Jesus, ao qual ele chama “o centro do tempo”. Terceiro, o período da Igreja, de Jesus até a parousia, o clímax de todas as coisas. Com esta aproximação, Conzelmann pensa que Lucas tenta resolver o problema da “demora da parousia e a subsequente necessidade da igreja colocar termo à sua coontinuada existência no mundo.”
A suposição básica de Conzelmann – Lucas manipulou suas fontes para conseguir seus objetivos teológicos; utilizou Marcos e Documento Q como fontes, e o estudo de seu evangelho deve ser focalizado sobre a estrutura da unidade das fontes além das formas posteriores da tradição — elimina a possibilidade de se estudar o Evangelho de Lucas como a Palavra de Deus.
Willis Marxsen, o terceiro originador do criticismo da redação, apresentou sua tese à Universidade de Kiel, na Alemanha, em 1954. Ela consistiu de quatro estudos críticos sobre Marcos. Em 1969, foi publicada em inglês com o título Mark the Evangelist. Marxsen dedicou a primeira parte do livro a uma apresentação sistemática do novo método ao qual denominou História da Redação e o restante aplicou ao Evangelho de Marcos.
Na primeira parte, Marxsen contrasta o criticismo de redação com criticismo da forma. 1) Os evangelistas não são meros coletores de tradição, eles foram autores reais em seu próprio direito. 2) Criticismo não está preocupado com quebra de tradições em pequenas unidades, nem com a maneira pela qual essas unidades vieram à existência. Melhor, está preocupado com ampla unidade e “forma” particular do Evangelho em si, incluindo o propósito de sua formação. 3) Criticismo da forma é insuficiente para compreender o novo passo tomado por Marcos em usar sua fonte material para produzir o Evangelho como algo novo e diferente disso. O Evangelho é a nova “forma” criada por Marcos com propósitos teológicos. Mateus e Lucas herdaram-na dele e a usaram com o mesmo propósito. 4) O assentamento vital para trabalhar não é o assentamento vital de Joaquim Jeremias sobre a vida de Jesus, nem o dos críticos da forma sobre o trabalho da Igreja apostólica, mas o assentamento e propósito do evangelista.
O criticismo da redação é construído sobre a suposição de que Marcos e Documento Q são as fontes de Mateus e Lucas. O que aconteceria se alguns eruditos provassem que esse não é o caso? William R. Farmer, em 1976, publicou um livro intitulado The Synoptic Problem buscando “demonstrar que a ideia da prioridade de Marcos é altamente questionável.”
Dentro do método crítico-histórico há uma constante moção do que os novos críticos considerariam uma melhor abordagem. Por exemplo, partir-se do criticismo da fonte, para o criticismo literário, para o criticismo da forma, e agora para o criticismo da redação. Porventura teriam chegado os eruditos ao método imutável e perfeito? Seguramente não. Este é um processo que nunca finda. Por que, então, defender qualquer método crítico particular como se ele fosse realmente o único verdadeiro?
Jamais haverá um verdadeiro método crítico final. Por que? Provavelmente porque os críticos não estão trabalhando com o evangelho real, mas com alguma coisa – fontes, assentamentos vitais, formas, objetivos teológicos, e assim por diante, nunca findando, porque o trabalho erudito, quando realizado por e para si mesmo, está sempre numa situação infindável, jamais chegando a sua própria perfeição. A Escritura não foi dada por causa dos eruditos, mas para a salvação da humanidade. Qualquer tipo de estudo da Bíblia que esquece seu propósito salvador perde o melhor conteúdo das Escrituras e nunca será um caminho para a condução da pessoa humana a Deus, tampouco produzirá uma melhor compreensão entre os seres humanos. Uma aproximação das Escrituras como a palavra do homem, implica perda de alguma coisa, inclusive da humanidade.
Na segunda parte, o tratado de Marxsen sobre o texto de Marcos é uma maneira de mudar quase tudo o que ele sustentou. Uma prova de seus quatro principais objetivos deveria ser suficiente – João Batista. Marxsen argumenta que a forma usada por Marcos para apresentar sua fonte material mostra que isto é sua própria composição. Marcos, diz ele, compôs seus materiais “invertidos”. Seu propósito não era dizer-nos qualquer coisa histórica a respeito de João Batista, mas teologizar sobre Jesus. Portanto, “João Batista não tem qualquer significado independente de si mesmo; não pode haver ensino sobre ele nem sobre o batismo; mais ainda, tudo o que é dito sobre João Batista já foi efetivamente dito sobre Jesus.”
A referência sobre João Batista vindo do deserto – “a voz do que clama no deserto… apareceu João Batista no deserto, pregando batismo de arrependimento para remissão dos pecados” (Mar. 1:3 e 4) – não é uma referência geográfica, mas uma declaração teológica. “Essa referência não tenciona dar uma localização para o trabalho de João… ‘no deserto’ qualifica-o como alguém que cumpriu a profecia do Velho Testamento.” Semelhantemente a referência do tempo. Quando Marcos diz: “Depois de Jesus ter sido preso, foi Jesus para a Galileia, pregando o evangelho de Deus” (1:14), seu intento não era dizer que o ministério de Jesus começou depois. Da mesma maneira e com o mesmo propósito teológico, o fim da “história” de João começou depois do início da “história de Jesus”.
Essa maneira de trabalhar o texto não conduz o leitor a ler o que está lendo, mas algo mais. Alguma coisa que os críticos querem que ele leia. Quais críticos? Os contemporâneos. Um método para estudar um texto é designado para ajudar o leitor. É a crítica da redação uma real ajuda? Tanto quanto eu percebo, da pressuposição de que a Bíblia é a inspirada “Palavra de Deus”, a resposta é não.
Quase chegamos ao fim do método crítico-histórico, mas não vimos ainda o moderno método crítico-científico. Há pelo menos um, muito recente, que deve ser considerado antes de tratarmos de dois eruditos do Novo Testamento treinados no método crítico-histórico. Esse é o método mais humanístico de todos eles. (Continua)