Maior projeto fluvial da Igreja Adventista no mundo completa 90 anos de serviço à comunidade

As histórias de superação e conquistas de obreiros no campo missionário têm o poder de relembrar algumas lições preciosas sobre a grande comissão de pregar o evangelho. Essas experiências servem de incentivo e instrução. Elas nos fazem seguir adiante com fé e confiança, não porque a vida dessas pessoas tenha sido fácil, mas porque a renúncia, as dificuldades ao longo do caminho e os grandes resultados, apesar da limitação de recursos, mostram o que Deus pode fazer por intermédio daqueles que não medem esforços para atender Seu chamado à obediência e à missão.

As lanchas Luzeiro, que por 90 anos atuam nos grandes rios da Amazônia, configuram um exemplo dessa verdade. Mais do que um projeto evangelístico, elas são uma escola viva para todos os que estão, de alguma forma, envolvidos com a proclamação da mensagem adventista.

O sacrifício antecede o legado

No início do século 20, a Igreja Adventista estava em processo de organização no Brasil. A princípio, o país todo era o território da Associação Brasil, sediada em Gaspar Alto, SC. Anos depois, surgiu a União Este Brasileira, cujo escritório ficava no Rio de Janeiro. Foi somente em 1927 que a Missão Baixo Amazonas foi criada, para atender mais de perto as necessidades da região amazônica.1

Enquanto isso, um legado estava sendo iniciado por homens e mulheres que decidiram expandir a mensagem adventista na região Norte do Brasil. Entre eles, estava o alemão Hans Mayr, um colportor cheio de vontade de evangelizar a Amazônia. Entretanto, ele mal sabia o que o esperava. Por ser estrangeiro, além dos desafios culturais e climáticos, enfrentou dificuldades de aceitação, pois ninguém queria, ao menos, alugar uma casa para ele. Os problemas pareciam ser maiores que as forças físicas, e o campo, certamente, maior do que a quantidade de pessoas dispostas a batalhar nele. Mayr passou a trabalhar com André Gedrath e, juntos, diante dos momentos desafiadores, puderam desenvolver a fé, a sabedoria e a criatividade na idealização de planos para ampliar o evangelismo na região amazônica.

Para alcançar as comunidades mais distantes, os missionários dependiam totalmente de barcos comerciais, porém isso atrasava muito a expansão do trabalho a ser realizado por eles. Foi então que a chegada do casal Leo e Jessie Halliwell se tornou um marco significativo para a equipe missionária.

Renúncia pessoal

Leo Blair Halliwell era um engenheiro elétrico que, durante a Primeira Guerra Mundial, trabalhava em uma fábrica de armamentos nos Estados Unidos. Sua esposa, Jessie, era adventista e orava pela conversão de seu esposo. Após um acidente de trabalho que o obrigou a se afastar de suas atividades, Leo passou a frequentar a igreja e participar de campanhas evangelísticas. Motivado pelas mensagens que ouvia, começou a estudar a história de missionários como David Livingstone e Fernando Stahl. O assunto teve grande impacto em sua vida e, aos poucos, o desejo de fazer mais pela humanidade foi tomando o lugar dos sonhos de construir grandes usinas elétricas. Diante dessa ardente chama missionária, Leo decidiu deixar o emprego e dedicar a vida totalmente à pregação do evangelho.

Não demorou muito para o chamado acontecer. Em 1922, o casal Halliwell já preparava o necessário para sair do conforto de sua casa nos Estados Unidos e servir à igreja no Brasil, na antiga Missão Baiana. Após nove anos de trabalho, foram transferidos para cuidar da recém-criada Missão Baixo Amazonas, em uma realidade totalmente diferente da que estavam acostumados. A população daquela região não tinha muito conhecimento dos princípios de saúde. Na maioria das vezes, as doenças eram tratadas por meio de curandeirismo.

Sem dúvida, era um grande campo para se trabalhar, e apesar das diferenças linguísticas e culturais, o ministério do casal Halliwell prosperou. Pensando em fortalecer o trabalho evangelístico iniciado pelos colportores em toda a Amazônia, Leo teve a ideia de construir uma lancha que servisse de clínica e o levasse às comunidades mais afastadas. Foi então que seus conhecimentos em engenharia elétrica resultaram na construção da primeira lancha Luzeiro. Nascia, então, um ministério que deveria propagar luz até às regiões mais distantes do norte do Brasil.

Ministério médico-missionário

O impacto do trabalho do casal Halliwell em favor dos ribeirinhos fez com que seu barco fosse conhecido como Anjo Branco. Sobre a importância da obra médico-missionária, Ellen White ressaltou que, “durante Seu ministério, Jesus dedicou mais tempo a curar os enfermos do que a pregar”.Seguindo esse exemplo, os missionários estacionavam o barco às margens das comunidades ribeirinhas e atendiam a adultos e crianças. Por ano, eram realizados cerca de seis mil atendimentos. A atenção e o cuidado dispensados pelos missionários conquistava espaço no coração das pessoas. Isso proporcionava oportunidade para falar da verdade eterna. “Nosso Salvador ia de casa em casa, curando os enfermos, confortando os tristes, consolando os aflitos e dirigindo palavras de paz aos abatidos.”3

À semelhança de Cristo, o casal Halliwell colocou em prática esse método por meio da Luzeiro. O pastor Jorge Lobo afirmou: “Não há, em todo o Amazonas, barco semelhante à Luzeiro. Já houve quem por ela oferecesse quarenta contos. Mas ela não tem preço! Vale pelo que faz e não pelo que custou ou aparenta. Seu valor é incalculável e, quanto mais os anos passam, mais ele aumenta. Não se pode, em palavras ligeiras, descrever o que tem feito a Luzeiro”.4

Até os confins da Amazônia

Quando o casal Halliwell começou o trabalho com os colportores, havia 53 membros na Missão Baixo Amazonas. Com o passar dos anos, esse número foi se multiplicando como grãos de areia. Os pequenos grupos se transformaram em igrejas, e estas reunidas formaram Associações. Em 2021, a União Noroeste Brasileira soma mais de 167 mil membros batizados. Esse número dá testemunho de que o objetivo principal da Luzeiro, isto é, propagar a luz do evangelho, tem sido cumprido ao longo do tempo.

Atualmente, apesar da realidade pandêmica, a fórmula não mudou. Enquanto ainda existem comunidades que precisam da mensagem de esperança, saúde e serviços assistenciais, esse “Anjo Branco” continua trabalhando na linha de frente por meio de missionários que realizam um verdadeiro serviço de sacrifício e abnegação. Hoje, cinco barcos são administrados pelas Uniões Noroeste e Norte do Brasil: As Luzeiros XXVI e XXX (atuam nos rios Negro e Solimões), as Luzeiros XXIX e XXXI (atendem os arredores da cidade de Belém) e a Igreja que Navega (IQN), um barco missionário que tem o objetivo de plantar igrejas onde ainda não existe a presença adventista.

Lições para a missão

Grande é a necessidade de missionários para os campos dessa região. Algumas lições dessa história servem como guia para todos aqueles que desejam se aventurar na maravilhosa experiência de ser missionário.

1. Comece, ainda que aos poucos. As duas primeiras lanchas missionárias no Brasil foram feitas por Hans Mayr e André Gedrath. Em Belém, com o motor de um carro abandonado, Mayr construiu um pequeno barco. Os recursos eram poucos, oriundos do trabalho na colportagem e da venda de ovos de uma pequena criação de galinhas que o casal Mayr tinha. Apesar de pequena, a embarcação era funcional. Já o barco de Gedrath não era tão eficiente e precisou ser trocado. A partir dessas duas iniciativas humildes, surgiu a Luzeiro, o maior projeto missionário fluvial da Igreja Adventista no mundo. Assim, é possível afirmar que quando Deus nos separa para uma missão, não importa quão pequena ela pareça no início. Se trabalharmos com o espírito correto, grandes serão os resultados (Zc 4:10).

2. Avance, mesmo com poucos recursos. Financeiramente, o projeto iniciou em um período durante o qual os investimentos da igreja limitavam o avanço de novos campos missionários. Isso porque o orçamento havia diminuído por causa da crise econômica mundial de 1929. No entanto, o amor do casal Halliwell pelos ribeirinhos moveu o coração de governos e empresários que passaram a fornecer doações de suprimentos para as viagens.

Não faltaram recursos para que o barco, em seus primeiros 10 anos, percorresse mais de 200 mil quilômetros e atendesse cerca de 40 mil pessoas.5 Quando o assunto é missão, lembre-se: “Do ponto de vista do mundo, o dinheiro é poder; mas do ponto de vista cristão, o amor é poder.”6

3. Use o melhor método: o amor. Na maioria das comunidades ribeirinhas, a tripulação da Luzeiro encontrava a população em grandes necessidades, principalmente na área de saúde. Desde o início, o objetivo final era pregar o evangelho, mas para isso os missionários passavam o dia cuidando das pessoas e tratando das enfermidades tropicais como malária, febre tifoide e varíola. Lidavam com casos lastimáveis de ferimentos provocados por cobras e jacarés e ofereciam toda ajuda possível. À noite, mesmo estando exaustos, usando o gerador do barco para ligar um projetor de slides, faziam as reuniões evangelísticas, com temas de saúde e religião. As pessoas aliviadas da dor e sofrimento vinham então com o coração aberto para ouvir aqueles que, durante o dia, demonstravam tanto amor por elas.

4. Compartilhe sua influência. Não é possível mensurar com exatidão o trabalho que os pioneiros realizaram pela pregação do evangelho na região Norte do Brasil por meio das lanchas. Esse ministério construiu dezenas de barcos, atendeu uma multidão de enfermos e fez a alegria da salvação chegar a milhares de pessoas. Mas seu maior serviço para a proclamação do evangelho foi inspirar obreiros até os dias atuais a deixar o conforto do lar e desbravar as selvas do campo missionário. É incontável a quantidade de pessoas que se dedicaram à missão após ouvir ou ler relatos inspiradores de histórias envolvendo a Luzeiro e o casal Halliwell. Ellen White escreveu: “O testemunho silencioso de uma vida sincera e desinteressada exerce influência quase irresistível.”7

Conclusão

Como as ondas feitas por um humilde barco movimentam toda a serena superfície das águas até chegar às margens, a história das lanchas viajou no grande lago do tempo por nove décadas, e sua influência ainda é notável nos dias atuais. Na literatura profética, rios simbolizam multidões, e estas são a razão da maior e mais urgente necessidade da existência das Luzeiros: mover as águas de muitos corações através do poderoso motor do amor.

Referências

1 Ana Paula Ramos, Desafio nas Águas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2009), p. 21.

2 Ellen G. White, A Ciência do Bom Viver (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2016), p. 9.

3 Ellen G. White, Beneficência Social (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), p. 59.

4 Abdoval Cavalcanti, Luzeiro (Niterói, RJ: Editora Ados, 2011), p. 33.

5 Floyd Greenleaf, Terra de Esperança (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), p. 361.

6 Ellen G. White, Testemunhos Para a Igreja (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), v. 4, p. 138.

7 Ellen G. White, Mensagens aos Jovens (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2007), p. 418.

Gisele Calisto, jornalista voluntária do Instituto de Missões Noroeste, Manaus, AM

Ronivon Santos, diretor do Instituto de Missões Noroeste, Manaus, AM