Aposição adventista do sétimo dia a respeito do divórcio e novo casamento, tem como principal fundamento básico a seguinte declaração do Manual da Igreja: ‘“No sermão do Monte, Jesus afirmou clara-mente que não podia haver dissolução do laço matrimonial, a não ser por infidelidade ao voto conjugal.’ (O Maior Discurso de Cristo, pág. 63; Mat. 5:32; 19:9).
“E quando disse: ‘Não o separe o homem’, estabeleceu uma norma de procedimento para a Igreja sob a dispensação da graça que devia sempre transcender todas as legislações civis que ultrapassassem a interpretação divina da lei de Deus que governa a relação matrimonial. Dá Deus aí, para Seus seguidores, uma regra que devem seguir quer o Estado ou o costume em voga permitam maiores liberdades, quer não.”
O principal problema com essa declaração é concernente a seu significado. O que é que determina o significado de uma declaração – o propósito do autor ou a compreensão dos leitores? É o significado extraído, ou importado, ou produzido pela integração entre as duas hipóteses? Quando uma declaração possui múltiplos autores, como no caso do produto de uma comissão, têm eles o mesmo pensamento? São introduzidas ambigüidades intencionais a fim de permitir o consenso? É o significado de uma palavra, numa declaração, determinado apenas por seus antecedentes, ou pode evoluir? Deve uma exegese ser limitada pelo provável propósito original, ou pode haver algo como um sensus plenior, que permite aos leitores e gerações posteriores encontrar dimensões de significado que jamais foram imaginadas pelo autor original, ou autores?
Tais são as questões que nós enfrentamos quando interpretamos mesmo uma declaração curta como a que transcrevemos anteriormente.
O Manual e a infidelidade
O Manual da Igreja estabelece que o laço matrimonial é indissolúvel, exceto por “infidelidade ao voto conjugal”, e que essa é a norma estabelecida por Jesus, que transcende as leis civis e os costumes sociais. Três observações devem ser feitas aqui.
Primeira, a norma admite uma exceção à proibição do rompimento: “infidelidade ao voto conjugal”.
Segunda, a declaração parece usar a linguagem de indissolubilidade doutrinária. No desenvolvimento inicial do cânon católico, Agostinho via o casamento como um sacramento, apresentando-o como indissolúvel. No entanto, o significado disso, segundo ele, era que a união não deveria ser dissolvida. O escolasticismo medieval deu um passo além, e destacou que o casamento não poderia ser dissolvido. Isso significava que duas pessoas que se divorciassem continuavam casadas à vista de Deus, e por essa razão não poderiam casar novamente sem cometer perpétuo adultério.
O aparente significado dos autores do Manual da Igreja é mais consentâneo com o pensamento agostiniano original, do que com o posterior reforço escolástico; do contrário a frase exceção não seria mencionada.
Terceira, e mais importante observação, a norma é dada na forma de uma citação direta de Ellen White. Isso nos leva de volta ao significado de sua afirmação, e daí para um estudo da frase “infidelidade ao voto conjugal”.
Ellen White e o conceito de infidelidade
A declaração diz: “No sermão do Monte, Jesus afirmou claramente que não podia haver dissolução do laço matrimonial, a não ser por infidelidade ao voto conjugal.” Dois aspectos chamam a nossa atenção.
O primeiro é a referência ao “voto conjugal”. Sem dúvida, Ellen White tinha em mente o voto tradicional que era parte da cerimônia de casamento em seus dias, e que, com alguma modificação, ainda é encontrada nos manuais para ministros. A for-ma comumente utilizada diz alguma coisa como: “Prometes solenemente diante de Deus e na presença destas testemunhas tomar a fulano/fulana de tal como esposo/esposa, para viverem juntos segundo os mandamentos de Deus, no santo estado do matrimônio? Queres amá-lo(a), consolá-lo(a), honrá-lo(a), protegê-lo(a), na enfermidade e na saúde, na prosperidade e na adversidade; e, renunciando a todo(a)s o(a)s outro(a)s, conservar-te somente para ele(a) enquanto ambos viverdes? Assim o declaras?” A isso os noivos respondem “sim”. Esse é o “voto conjugal”, após o qual o ministro formalmente declara ambos como marido e mulher, acrescentando que “o que Deus ajuntou não o separe o homem”.
As palavras chaves são “renunciando a todo(a)s o(a)s outro(a)s, conservar-te somente para ele(a) enquanto ambos viverdes”. É a violação dessa parte do voto que tem sido tradicionalmente compreendida como terreno para o divórcio. A pergunta que realmente devia ser feita, embora não respondida a essa altura, é se a violação de alguma outra parte do voto também pode tornar-se favorável para o divórcio.
Para Agostinho, o casamento era uma união indissolúvel, no sentido de que não deveria ser desfeita. O escolasticismo medieval deu um passo além, e destacou que o casamento não poderia ser dissolvido. O Manual da Igreja está mais de acordo com o pensamento agostiniano.
O segundo aspecto a ser notado, é que a afirmação de Ellen White ocorre numa exposição sobre o Sermão da Montanha, especificamente sobre Mat. 5:32, passagem paralela a Mat. 19:9. Portanto, a busca para com-preensão posterior sobre “infidelidade ao voto conjugal” deve levar-nos aos ensina-mentos de Cristo, relatados no Evangelho de Mateus.
A exceção em Mateus
Desde que a frase usada por Ellen White, “a não ser por infidelidade ao voto conjugal”, faz parte de seu comentário sobre Mat. 5:32, parece claro dizer que ela pretende ser uma paráfrase da exceção feita por Ma-teus, que na versão King James poderia ser interpretada como “salvo por causa de fornicação”.
É bem sabido que Mateus é o único entre os evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lu-cas) a inserir a cláusula de exceção, pronuncia-da por Jesus a respeito do divórcio. Marcos e Lucas não fazem qual-quer tipo de ressalva. A frase de Mat. 5:32, que a versão King James traduz como “salvo por causa de fornicação” vem do grego parektos togou porneias (Mat. 19:9 diz me epi porneia). Há muita discussão sobre o significado de porneia
Essa é uma palavra mais geral que moicheia, cujo significado é adultério. Tratando com questões lexico-gráficas, assim tão rapidamente, devemos lembrar que porneia é um termo geral, usado para qualquer mau procedimento sexual. Segundo antigas fontes gregas, originalmente ele era usado para identificar a prostituição de escravas, mas acabou significando qualquer desvio sexual, inclusive adultério. No judaísmo, a palavra era algumas vezes aplicada às relações sexuais, no casamento, contrárias às leis judaicas, como por exemplo, num matrimônio entre um judeu e um gentio antes da conversão desse, ou dentro dos graus de proibição descritos em Lev. 18.
Muitos eruditos têm visto a ressalva de Mateus como uma referência à causa de divórcio, de acordo com Deut. 24:1, que fala de um homem dando termo de divórcio à esposa, e despedindo-a, por “ter ele achado cousa indecente nela”. Na língua hebraica, segundo a Revised Standard Version, “cousa indecente nela” é bah ervat dabar. A expressão logos porneias poderia muito bem ser uma tradução literal de ervat dabar. Se isso é correto, devemos voltar a Deut. 24:1.
Que é “indecência”
O significado e a tradução correta de ervat dabar, em Deuteronômio 24:1, são menos seguros e mais debatidos do que logos porneias em Mateus. Somente em mais uma vez a expressão aparece no Velho Testamento, no capítulo precedente, Deut. 23:14 (verso 15, na Bíblia hebraica). Aí a referência é à matéria fecal, que pode também ser o significado em Deut. 24:1.
Como se sabe, no tempo de Jesus, os rabis não se harmonizavam quanto ao significado de certos assuntos. O debate entre a escola de Shammai e a escola de Hillel é resumido no Mishnah Gittin 9:10. Beth Shammai limitou ervat dabar à impureza, mas Beth Hillel relacionou-a com qualquer coisa que desagradasse o marido.
Dos ensinos de Jesus é evidente que Ele rejeitaria o ensinamento e o espírito de Beth Hilell neste assunto em particular. Mas a frase exceção em Mateus é apenas um pouco menos ambígua que sua correspondente em Deut. 24:1, e parece referir-se a ofensas de natureza sexual e não meramente a coisas como queimar o feijão, por exemplo.
Ambigüidade e sensus plenior
Tradicionalmente porneia, em Mateus, e “infidelidade ao voto conjugal”, segundo Ellen White, são expressões que têm sido compreendidas como referindo-se apenas ao adultério. Mas, suficientemente ambíguas para permitir uma compreensão ampla que pode, ou não, ter sido imaginada por Mateus e Ellen White.
Se porneia inclui qualquer desvio sexual em geral, isso poderia envolver violência, frigidez, ou abandono do leito matrimonial, por exemplo? Se uma tal interpretação ampla é admissível, então a declaração de Paulo em I Cor. 7:15, que parece favorecer a separação matrimonial, no caso de deserção do cônjuge descrente, pode ser vista como uma extensão legítima da ressalva de Mateus – embora Paulo não a apresente dessa maneira. Uma comparação do uso da palavra agamos, significando “solteiro”, quer por alguém nunca ter-se casado, quer por ter perdido o cônjuge por outras razões, nos versos 8 e 9, com parthenoi, nos versos 25 a 28, parece estender o direito de um novo casamento a pessoas divorciadas por tais razões.
O “voto conjugal” referido por Ellen White continha mais itens que a promessa de alguém limitar-se a um parceiro sexual. Poderia a violação de qualquer parte do voto também ser porneia e motivo para o divórcio? Por exemplo, de acordo com o voto tradicional, poderia uma pessoa requerer um divórcio, argumentando que o cônjuge deixou de amar, honrar ou exercer cuidado a seu respeito? Se a resposta for afirmativa, a formulação do voto matrimonial torna-se cruciante.
A linguagem de textos autoritativos, como temos examinado, parece prover uma tal aplicação; por outro lado, a preponderância de ensinamentos nas Escrituras e nos escritos de Ellen White milita contra o divório fácil, induzido por emoções transitórias ou mesmo crônicas.
Temos limitado nossa discussão da frase “infidelidade ao voto conjugal”, no Manual da Igreja e os antecedentes dos quais ela é derivada – a declaração feita por Ellen White, o Evangelho de Mateus e Deuteronômio 24. Vimos que todas essas fontes fazem uso de termos chaves que são suficientemente ambíguos para deixar margem a alguma latitude de interpretação. Esses termos são logos porneia e ervat dabat. Não podemos saber agora se essa ambigüidade foi premeditada pelos autores humanos, mas, desde que ela existe, devemos admitir que o Espírito Santo a preservou.
Isso coloca sobre a Igreja a responsabilidade de decidir quais princípios, ou normas específicas, são apropriados para nossa sociedade e nosso tempo, operando dentro do espaço deixado pela ambigüidade de documentos autoritativos.