Criacionistas e evolucionistas discordam quanto ao Dilúvio. Os criacionistas argumentam que a Biblia é um documento divinamente inspirado e que seu registro do Dilúvio descreve um acontecimento histórico real, de alcance universal. Os evolucionistas respondem à narrativa bíblica de diversos modos. Alguns a rejeitam como não histórica e indigna de consideração séria. Outros, contudo, dão uma explicação que não concorda com a opinião criacionista. Sugerem a existência de um aconteci-mento que fornece a base para a história, mas que ela tem sido muito exagerada em relação ao que houve originalmente. Pensam que houve uma grave inundação local no rio Tigre ou no Eufrates, ou em ambos, e que essa inundação foi ampliada de tal modo que quando o relato chegou ao escritor bíblico, foi considerado um dilúvio universal.
Essa teoria começou com um arqueólogo. Sir Leonard Wooley estava escavando em Ur, no sul do Iraque, no final de 1920, quando nu-ma trincheira particularmente profunda, seus operários chegaram a um depósito estéril de argila sem mais nenhum traço de civilização. Fez com que os operários continuassem a cavar através desse sedimento. Mais no fundo, chegaram a uma nova camada de ocupação. De pé na trincheira com um dos operários e sua esposa, ele perguntou: “Vocês sabem o que é isso, não sabem?” O operário olhou surpreso, mas a esposa prontamente respondeu: “É o dilúvio de Noé!” E assim nasceu a teoria de uma inundação local na Mesopotâmia co-mo a explicação do dilúvio bíblico.
Depois da Segunda Guerra Mundial, Sir Max Mallowan, cavando em Nimrud (Calah), propôs uma revisão da teoria de Wooley. Ele queria atribuir o dilúvio bíblico a um nível diferente de depósito aluvial em outros lugares na Mesopotâmia. Ao passo que o dilúvio de Wooley tivesse sido fixado por volta de 3500 a.C., na maneira convencional de datação arqueológica, Mallowan propôs a data de 2900 a.C. à camada que deu origem às histórias na Mesopotâmia sobre o dilúvio.
Nosso propósito aqui não é avaliar ou endossar essas datas arqueológicas, mas usá-las como base para comparação. A teoria de uma inundação local levanta muitos problemas, os quais podem ser examinados de três perspectivas diferentes: arqueologia, lingüística e tradições literárias. Tal exame vai determinar se a história bíblica do dilúvio remonta à história da inundação local de um rio na Mesopotâmia, ou à Bíblia como o registro histórico de um dilúvio universal.
O teste da arqueologia
Tratando-se da arqueologia, há dificuldade enorme em tentar achar o estrato correto em várias cidades para fazer a ligação com o dilúvio bíblico. A razão é que há diferentes cidades da Mesopotâmia, e outras cidades sem nenhum sinal de níveis de inundação. Assim, o quadro das inundações locais na Mesopotâmia é como uma colcha de retalhos na qual muitos desses retalhos diferem uns dos outros.
Consideremos os depósitos do período que Wooley preferiu como fornecendo uma explicação para o Dilúvio. Eles foram encontrados apenas em dois lugares: Ur e Nínive. As diferenças entre esses dois locais deviam ser notadas. Nínive fica sobre o Tigre, no norte do Iraque. Ur está localizada num canal que sai do Eufrates, no sul do Iraque. Assim, essas duas cidades estão em extremos opostos do país e ficam sobre rios diferentes. Nenhum dos outros lugares intermediários que foram escavados produziu o mesmo nível de “inundação”. O trabalho de Wooley mostra que a inundação nem cobriu toda a cidade de Ur. Os habitantes locais podem tê-la considerado como algo sério, mas nem de longe atingiu o ponto em que poderia ter sido ampliada em proporções universais.
Que dizer do nível da inundação fixada em 2900 a.C.? Aqui pelo menos temos algo a ver com quatro cidades: Kish, Shuruppak, Uruk (a Ereque bíblica) e Lagash. Kish é a que fica mais ao norte, perto de Babilônia. Shuruppak estava localizada num canal, no centro-sul da Mesopotâmia. É famosa na tradição literária como a cidade da qual Atra-hasis, o herói do dilúvio, saiu. Uruk es-tá situada no mesmo canal que Shuruppak, bem mais ao sul. Lagash encontra-se num canal mais para o leste, no sul da Mesopotâmia. A camada de solo estéril de Lagash, contudo, talvez não tenha vindo da inundação de um rio local ou de um canal, mas sim da fundação de um dos seus templos, de acordo com André Parrot, que escavou Telloh em 1930 e 1931.
As escavações em Kish levaram a quatro níveis diferentes de argila, e não um. Estendiam-se sobre um período de quatro séculos, segundo os escavadores. O mais antigo foi fixado por volta de 3300 a.C.; o último, em 2900 a.C. O estrato superior tinha cerca de 30 cm de espessura. A questão é: qual desses quatro níveis locais de inundação devia ser escolhido como a base para construir uma lenda de dilúvio para o texto bíblico? Nenhum deles parece ser tão importante, e a multiplicidade de camadas diminui o entusiasmo em identificar qualquer deles com a história bíblica.
Os outros dois lugares poderiam parecer candidatos um pouco mais legítimos. Shuruppak, a moderna Tell Fara, foi escavada por Eric Schmidt. Em suas escavações de 1930 e 1931, Schmidt achou um depósito aluvial da espessura de 60 cm, que datava do começo do terceiro milênio a.C. Uruk es-tava localizada no mesmo canal, mas a uma boa distancia mais ao sul. Julius Jordan em suas escavações de 1929 achou aí um estrato estéril de um metro e meio.
Assim, dos quatro lugares envolvidos nesse período de tempo, um tinha níveis múltiplos de sedimento de inundação local; um não tinha sedimento algum de inundação; e dois tinham dois níveis de sedimento. Isso se compara com os dois lugares do período anterior, que também tinham sedimentos. Assim, umas compensam as outras, as inundações anteriores e posteriores. As inundações continuam até os tempos modernos. Houve uma grande inundação na região central do Iraque, em 1948.
É interessante observar que a maior parte desses lugares foi escavada mais ou menos ao mesmo tempo, entre 1929 e 1932. Dessa forma, a história local do dilúvio parece ser uma idéia em voga por volta de 1930, motivada pela sugestão de Wooley.
Quando o caso é considerado como um todo, no entanto, as provas arqueológicas para essa teoria são insuficientes. Os sedimentos de inundações junto aos rios eram irregulares, ora afetando uma cidade, e não outra, nas proximidades. Dos seis lugares estudados, somente um deles era situado sobre um grande rio: Nínive, sobre o Tigre. O resto era situado sobre canais que saíam dos rios, e não sobre eles. Provavelmente, essa teoria devesse ser chamada a teoria mesopotâmica do Dilúvio.
A lingüística
O povo que vivia nessa área durante tais inundações fluviais, estava bem familiarizado com elas e as descrevia de vários modos. Mas havia um outro termo para o Grande Dilúvio – abubu, no idioma acádio. Esse termo nunca foi usado para inundações locais, mas para um dilúvio maior no qual o herói salvou sua família por meio de uma arca. Também foi empregado para descrever o ataque das hordas assírias sob certos reis. Nesses casos, o exército assírio esmagava seus inimigos como o abubu. O paralelo é bem mais válido quando comparado ao Grande Dilúvio da Mesopotâmia do que com uma inundação de um rio local. É assim que os reis assírios queriam dizer quão fortes eles eram.
O hebraico bíblico faz algo semelhante. Existe um termo especial para o dilúvio de Noé – mabbul – usado apenas em dois lugares: Gên. 6 a 9 e Sal. 29. O salmista diz que “O Senhor preside aos dilúvios” (Sal. 29:10). Isso coloca o dilúvio de Noé não apenas como uma inundação qualquer de um rio local. Esse é um salmo que descreve a tempestade do poder divino. Jeová é. E controla os elementos da Natureza, segundo o Seu propósito. Isso era verdade mesmo durante o maior cataclisma que o mundo testemunhou, o dilúvio de Noé. Do mesmo modo que os reis da Assíria comparavam o poderio de seus exércitos com a maior potência jamais vista na Natureza, Deus compara Seu poder com aquela Sua manifestação, jamais vista na Terra.
Pode haver uma relação entre os dois ter-mos. Não é certo se o da língua semítica oriental acrescentou as consoantes quando foi adotado pelo semítico ocidental, ou vice-versa, o que resultaria no termo composto (m)abubu(l). A etimologia do termo é obscura em ambos os idiomas, mas aquilo a que se aplica é muito claro: somente para o Grande Dilúvio.
Tradições literárias
As histórias do Dilúvio possuem dois elementos principais: um trata da sua extensão, em termos de descrição; o outro refere-se aos resultados. Em ambos os casos, nas duas culturas e nos dois idiomas, a diferença entre o Grande Dilúvio e as inundações era bem reconhecida. O primeiro aspecto disso é a questão da terminologia inclusiva, como se vê na história do dilúvio bíblico. A questão aqui envolvida é: quão inclusiva era aquela língua? Gerhard Hasel tratou desse assunto num artigo intitulado “The biblical view of the extent of the flood”, na revista Origins 2, em 1975, págs. 77 a 95. Ele assinala que a expressão “face de toda a Terra” é usada 46 vezes em Gêne-sis 6 a 9. A frase “toda carne” aparece 13 vezes. Três vezes aparece a expressão “toda criatura vivente”. E Gên. 7:19 menciona “debaixo do Céu”. Essas frases se referem à extensão do Dilúvio. É verdade que no hebraico o termo todo nem sempre significa totalidade, mas nos mencionados capítulos de Gênesis, onde é apoiado pela multiplicidade de tais expressões, certamente devia ter esse significado.
A versão do Dilúvio que se acha no poema de gilgamés diz o mesmo: “toda a humanidade virou barro” (XI: 133). Utnapishtim, o herói do dilúvio, abriu a janela de sua arca e contemplou a terra seca. É também interessante notar que não foi a subida dos rios por causa da fusão da nave na Anatólia que causou o dilúvio. Segundo Utnapishtim, o fenômeno foi causado por uma tempestade vinda das nuvens, acompanhada de relâmpagos. Quando prestes a testar as possibilidades de abandonar a arca, ele também soltou aves, como Noé. Os primeiros dois pássaros, uma pomba e uma andorinha, voltaram à arca porque “nenhum lugar de pouso era visível” (XI: 148, 151). Não há dúvida aqui sobre a vasta extensão do dilúvio.
A parte sobre a tempestade que provocou o dilúvio falta no tablete Gênesis, sumério de Eridu, e do épico de Atra-hasis. Mas as partes que sobreviveram nos contam da seqüela no panteão. Uma disputa extraordinária surgiu entre os deuses. A maior parte deles estava arrependida por haver trazido o dilúvio e destruído a humanidade. Enlil, porém, o primeiro-ministro entre os deuses e o maior culpado pelo dilúvio, teve uma reação oposta. Ele descobriu que algumas pessoas tinham escapado e sobrevivido. Ficou furioso. O propósito do dilúvio era acabar com a humanidade inteira, e o fato de que alguns escaparam era absolutamente contrário a seu desígnio, o que explica o seu furor. Ele fora enganado por Anki (Ea), o deus da sabedoria, que instruira o herói do dilúvio para que construísse um barco e recolhesse a bordo sua família e os animais.
Parte do diálogo pode ser recuperada do épico de Atra-hasis. A deusa que tinha dado forma à humanidade lamentava a decisão de trazer o dilúvio: “Na assembléia dos deuses, como comandei eu, junto com eles, destruição total?” Lamenta que Anu, o deus principal, concordou com essa decisão: “Aquele que não considerou mas causou o dilúvio e consignou os povos à destruição?” (Atra-hasis, págs. 95, 97 e 99). A ira de Enlil é revelada quando pergunta: “Onde escapou a vi-da? Como sobreviveu o homem à destruição?” (Idem, pág. 101).
Enki tem de confessar que foi ele o “responsável por salvar vidas”. A mesma idéia é expressa pela informação que Enki transmitiu a Ziusudra, o herói do dilúvio na versão suméria. Ao adverti-lo a se preparar para o dilúvio iminente, ele disse: “A decisão de que a humanidade devesse ser destruída foi feita; um veredicto, uma ordem pela assembléia [divina], não pode ser revogada.” (Journal of Biblical Literature 100, 1981: 523).
De tudo isso infere-se que era intenção de Enlil destruir toda a humanidade com o dilúvio. Os deuses na assembléia votaram a favor, mas se arrependeram depois. Quando uma parte da humanidade escapou, o intento de Enlil foi frustrado e ele irou-se, porque tinha resolvido destruir todo ser humano, e devido à atitude enganosa de Anki em relação a ele, alguns conseguiram escapar.
A narrativa bíblica do Dilúvio se aproxima dessa versão, mas faz uma alusão moral distinta da narrativa mesopotâmica. Deus es-tava aborrecido com a impiedade humana, mas decidiu salvar os poucos justos por meio da arca de Noé (Gên 6:4 a 8). Não se poderia fazer isso, nem na escala bíblica, nem na de Babilônia, somente com uma inundação local. Requer-se um dilúvio universal para destruir a humanidade.
Evidência geológica do dilúvio
Um acontecimento como o dilúvio narrado em Gênesis haveria de deixar evidências significativas nas camadas rochosas de Terra. Ao serem elas examinadas, descobertas importantes sugerem uma interpretação na base de um dilúvio. Durante um dilúvio universal, era de se esperar uma atividade catastrófica tão rápida quanto extensa, e a evidência disso pode ser vista. Devemos ter em mente, porém, que, ao tratar de um acontecimento passado como esse, estamos lidando com interpretações e não com observações diretas.
Eis algumas características das rochas que sugerem um dilúvio universal:
- 1. Sedimentos marinhos sobre os continentes. No mundo, cerca da metade dos sedimentos sobre os continentes atuais veio do mar. Como é que tanto material marinho foi depositado sobre os continentes, se o normal era esperar-se que ficassem no oceano? A distribuição extensa de mares sobre os continentes é, certamente, uma situação que difere de hoje, e ela é coerente com a crença num dilúvio universal.
- 2. Abundante atividade de água subterrânea nos continentes. Evidência disso é percebida em grandes “leques submarinos” antigos e outros depósitos submarinos, como as turvações encontradas nos continentes. Turvações são aglomerações de rochas, limo, areia e partículas de argila depositadas em camadas sob a água. Estudos de turvações demonstraram que enormes depósitos de vários metros de espessura e cobrindo até 100 mil quilômetros quadrados, podem ser depositados no oceano em questão de horas depois de terremotos. Milhares de camadas de sedimento sobre os continentes, outrora considerados como tendo sido depositados através de longos períodos em água rasa, agora são vistos como depósitos rápidos de turvações, como é próprio esperar-se durante o dilúvio bíblico.
- 3. Distribuição ampla de sedimentos exóticos. Muitas camadas de sedimento exótico cobrem áreas tão grandes que é difícil crer que foram depositadas lentamente sob condições não-catastróficas. Por exemplo, no oeste dos Esta-dos Unidos, o conglomerado de Shinarump, que tem uma espessura de 30 metros, cobre quase 250 mil quilômetros quadrados. A formação Morrison, de 100 metros de espessura, que contém os restos de muitos dinossauros, se estende sobre mais de 1 milhão de quilômetros quadrados, e o grupo Shinle, que encerra madeira petrificada, cobre 800 mil quilômetros quadrados.
- 4. Ausência de erosão nas lacunas das camadas sedimentares. Freqüentemente há lacunas na seqüência de camadas sedimentares de terra. Podemos identificar essas lacunas, comparando-as com outras séries de camadas e fósseis encontrados alhures. Amiúde vastas camadas geológicas, datadas de uma época pela escala geológica padrão, jazem sob uma outra considerada muito mais recente. Os estratos que representam o longo tempo que se admitiu entre as camadas, faltam em algumas localidades. Contudo, nessas lacunas, as camadas inferiores mostram pouca evidência de erosão que certamente teria ocorrido se tivessem existido por muitos milhões de anos. Com efeito, segundo a erosão média corrente, as camadas em questão – e muito mais – teriam sofrido erosão nesse período de tempo. A falta de erosão na maior parte dessas lacunas sugere depósito rápido, como havia de se esperar no caso de um dilúvio, quando havia pouco tempo para a erosão.
- 5. Sistemas ecológicos incompletos. Em vários estratos que contêm fósseis, tais como o arenito de Coconino, da região do Grand Canyon, e a formação Morrison, do oeste dos Estados Uni-dos, achamos boa evidência de fósseis animais, mas pouca ou nenhuma evidência de plantas. Os animais requereríam plantas como alimento. Contudo, poucas plantas foram encontradas no Morrison, que encerra restos de muitos dinossauros, e nenhuma planta foi encontrada no Coconino, com suas centenas de rastros de animais. Como poderiam os animais sobreviver durante milhões de anos sem nutrição adequada? A seleção operada e a ação rápida que se havia de esperar das águas do Dilúvio parece ser uma explicação mais plausível. – Ariel Roth, Ph.D., Instituto de Pesquisa Geológica.