Por que um Deus de amor teria ordenado o extermínio de nações inteiras?
Em 7 de janeiro, um ataque terrorista em Paris causou comoção em todo o mundo. Os irmãos Cherif e Said Kouachi (e outros dois cúmplices) atacaram a revista satírica Charlie Hebdo, deixando 12 mortos. A tragédia comoveu, ao despertar sentimentos de insegurança. Afinal, no horizonte cultural, ainda está clara a imagem do atentado ocorrido em 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, e considerado o maior da História. Tais fatos trazem de volta uma questão bastante discutida: Atentados são frutos legítimos da religião muçulmana, que promoveria o Jihad ou “Guerra Santa” contra os infiéis?1
Para os cristãos, voltar a discutir sobre a Guerra Santa em pleno século 21 adquire um significado mais abrangente. De fato, certo autor faz um levantamento de como cristãos ainda têm aplicado textos de livros como Josué para contextos bélicos. Por exemplo, em novembro de 2004, depois de um ataque à cidade de Falluya, usando textos de Josué, o capitão militar Kenny Lee animou os sobreviventes a atacar os inimigos. “Cristãos têm repetidamente usado acontecimentos como a invasão de Jericó para assegurar para si mesmos que eles estão causando terror no mundo em nome de Deus e com a Sua bênção.”2
Ademais, a própria Bíblia igualmente endossa e narra eventos que tratam do que poderia ser enquadrado como “guerra santa”. Dessa forma, cresce a opinião popular de que o fundamentalismo religioso pode conduzir a uma expressão tão radical de religiosidade que toda liberdade perderia o sentido, dando margem à possibilidade de extermínio das minorias.3
Essas questões mencionadas merecem ser claramente respondidas. William Dembinski escreveu: “A questão, portanto, não é o que as pessoas fizeram em nome do cristianismo, mas o que o cristianismo é em essência.”4 A questão central é: Como um Deus de amor pode incumbir um povo de matar outro? Teria Deus algum prazer na guerra e no sofrimento dos inocentes?
Guerras na Bíblia
Yahweh convocou Moisés para libertar Seu povo escravizado pela nação egípcia. O Êxodo, além de livramento, foi também uma autorrevelação divina e um juízo contra o Egito (Êx 12:12). De tão notórias, as pragas que deram liberdade a Israel difundiram o nome de Deus até em Canaã
(Js 2:10). Aliás, a ordem divina a Israel requeria a destruição dos povos de além do Jordão (Nm 33:51-56; Js 11:20).5 Cumpre recordar que Deus é o verdadeiro dono da Terra e a dá a quem quiser. A terra é tanto um dom de Deus, quanto algo que exigia a conquista dos israelitas.6
Aparentemente, houve uma ação genocida, envolvendo a matança indiscriminada de centenas de milhares de inocentes. Porém, ao atentarmos para a situação que os israelitas teriam que enfrentar, verificamos que eles não estavam lutando contra povos pacíficos. O próprio Jeová preveniu Moisés a respeito dos anaquins (Dt 9:1, 2).
Vale ressaltar que as leis bíblicas incluíam normas para a guerra (ver Dt 20), o que integrava a cultura estabelecida.7 Contudo, Israel não reproduzia simplesmente a prática cultural. Israel não praticou a sangrenta crueldade presente nas inscrições assírias, e houve proibição à violação de mulheres. Até árvores frutíferas estavam protegidas.8
Não há um padrão uniforme, quando estudamos as guerras retratadas na Bíblia.9 Nem sempre o extermínio dos inimigos era ordenado na guerra. Isso difere da atitude dos inimigos de Israel, conhecidos por atos cruéis (Lm 5:2-15).
Por que Deus ordenou especificamente o extermínio dos povos de Canaã? Muitos comentaristas bíblicos se sentem pouco à vontade com a narrativa de extermínio,10 a ponto de a questão ser apontada como a mais difícil para a ética do Antigo Testamento.11 Algumas formas de interpretar o texto foram propostas, muitas das quais acabam desqualificando o Antigo Testamento como Palavra de Deus, ou sublocando-o a uma categoria de revelação menor em relação ao Novo Testamento.12
De acordo com os registros históricos, os povos espalhados pela região eram proverbiais por sua maldade extrema, e o próprio Deus anunciou que a conquista da terra se daria em consequência das práticas iníquas daqueles povos (Dt 9:5).
Durante séculos, Deus havia permitido que os cananeus mantivessem sua rejeição ao que conheciam a respeito dEle. Eles tiveram e desprezaram oportunidades para obedecer-Lhe.13 Se compararmos Deuteronômio 2:20 com Gênesis 15:5, 6, veremos que as mesmas nações inter-relacionadas aparecem nos dois textos: refains, zuzins (ou zazumins), emins e anaquins.
Essas e outras nações cananeias tiveram contato com Abraão e puderam conhecer algo do Deus ao qual ele servia. Para os habitantes de Canaã haveria ainda um tempo de graça. Porém, tanto Deus sabia que os cananeus continuariam impenitentes, que prometeu a ocupação da terra deles pela descendência de Abraão (Gn 15:16).14
Existem fatos que nos ajudam a recordar o grau de depravação a que desceram as nações de gigantes e seus conterrâneos.15 Examinaremos mais de perto os costumes de Canaã para entender por que Deus ordenou a eliminação daqueles povos.
O câncer contaminou Canaã
Há um princípio bíblico de que o objeto de nossa adoração tem o poder de nos transformar, moldando nossa cultura, nossas preferências, reações e percepções
(Jr 2:5; 2Co 3:18). Quando examinamos o panteão dos cananeus, entendemos os motivos para a subversão de sua cultura.
Os principais deuses, El e Asserá, eram um casal que teria gerado 70 filhos. Um deles, Baal, casou-se com uma de suas irmãs, Anat. Asserá seduziu Baal e ele contou o fato a seu pai. El encorajou o filho a aceitar relacionar-se com a mãe. Além disso, Baal tinha como consorte sua primeira filha, Pidary.16 Paralelamente, a sociedade canaanita orientou sua visão sobre incesto em conformidade com seus deuses. “As primeiras leis canaanitas prescreviam morte ou exílio para o incesto”, observa Clay Jones. “Depois do século 14 a.C., as penalidades foram reduzidas para não mais que um pagamento de uma multa”, ele conclui.17 Vale recordar que o século 16 a.C. é justamente a data do Êxodo, a saída de Israel do Egito. Os cananeus estavam maduros para o juízo.
A imoralidade dos cananeus também fazia parte de seu culto: os sacerdotes provavelmente realizassem os rituais nus. Sexo era parte do culto cananeu, porque a religião deles consistia um culto de fertilidade.18 A sexualidade canaanita estava totalmente depravada por ocasião do Êxodo. O 199º estatuto das leis hititas dizia: “Se alguém tiver relações sexuais com um porco ou um cão, ele morrerá. Se um homem tiver relações com um cavalo ou mula, não haverá punições.”19
Diante disso, o que um Deus de amor deveria fazer? Se Deus não interviesse, periodicamente, refreando o pecado e punindo os culpados, o que seria do mundo? Nas palavras de um estudioso, “gostaríamos de crer que tais coisas nunca aconteceram, ou se aconteceram, que elas nunca foram recomendadas por Deus”.20 Entretanto, se uma mulher descobrisse um câncer de mama em estágio inicial, não iria operar antes que ele se instalasse irreversivelmente pelo corpo? Por mais traumática que fosse a cirurgia, perder a mama e continuar viva não lhe seria melhor do que definhar até a morte? Os cananeus eram a parte afetada pelo câncer. Deus os amava, mas deixá-los vivos seria o mesmo que contaminar a humanidade com sua influência maléfica.21
Tal afirmação é verificável. Note que os israelitas não cumpriram completamente a ordem divina, deixando alguns resquícios dos cananeus nas terras que passaram a habitar (Jz 2:1-4). Eis o resultado: “A lição de juízes é que Israel se corrompeu porque eles não erradicaram os cananeus. Gideão ergueu um ídolo, Jefté sacrificou a filha, Sansão fez sexo com uma mulher cananeia. Isso é mostrado como evidência da corrupção dificilmente tolerável deles.”22
Não restam dúvidas da malignidade dos cananeus. Eles sacrificavam crianças ao deus Moloque, praticavam a pedofilia, a homossexualidade, a bestialidade e eram extremamente sanguinolentos. Conquanto seja assim, acaso Deus tinha o direito de ordenar o extermínio de nações inteiras?
Justo Juiz
O erudito adventista Roy Gane questiona se há diferença entre o que Israel fez e outros casos de genocídio. Ele assume que Israel agiu com base na “direta revelação de Deus e levou a justiça retributiva em Seu nome”. Embora, segundo Gane, muçulmanos extremistas pudessem argumentar, alegando agir sob a orientação de Alá, em casos de atentados, há um ponto a ser considerado: “Qual divindade é verdadeira e, acima de tudo, tem autoridade final sobre a vida humana?”23
Ao contrário de outras guerras religiosas, aquelas retratadas na Bíblia explicitam a participação de Jeová, principalmente por meio de fenômenos extraordinários dirigidos contra os inimigos (Êx 14:24;
2Cr 20:22-26; 32:21, 22).24 É claro que a participação divina criava um contexto especial que jamais poderia ser reproduzido em outras circunstâncias.
Algumas medidas militares só tinham sentido no contexto de Israel com a presença do Senhor assegurada entre eles. Copan definiu bem esse aspecto do problema quando escreveu: “Alguns espetáculos televisivos alertavam as crianças: ‘Meninos, não tentem fazer isso em casa.’ Semelhantemente, nós poderíamos dizer sobre a situação da ‘guerra santa’ de Israel: ‘não tente fazer isso sem revelação especial’.”25
Outra razão para não aplicarmos literalmente as orientações dadas a Israel é que Deus instrui Seu povo de forma crescente, à medida que esse povo se relacione com Ele (2Pe 1:19). No caso em estudo, era primordial preservar o povo de um convívio venenoso, que impediria à nação de Israel o desenvolvimento suficiente, a fim de que por meio dela viesse o Messias.
Deus tinha que ser justo, punindo não apenas os pagãos que ameaçavam a espiritualidade e segurança de Israel, mas punindo até Seu próprio povo eleito, à medida que este também se separava de Seus ideais.26 Deus nunca permitiu que Seu povo fosse completamente aniquilado27 – sempre haveria um remanescente do povo chamado a cumprir a obra dos que se afastaram do ideal. Quando finalmente Israel falhou como nação, Deus convocou Sua igreja, formada a partir de um pequeno grupo de judeus.
Logo chegará a vez de Deus julgar o mundo (Ec 12:17). Uns entrarão pelos portais eternos, outros, por desprezarem a graça, serão exterminados como os cananeus, pela glória divina que retribuirá a cada um segundo as suas obras. O câncer será então finalmente extirpado de uma vez por todas! A destruição dos cananeus foi o ensaio, o concerto será em breve.
Infelizmente, mesmo os cristãos vêm perdendo o senso de que todos nos reportaremos diante do Juiz universal. Muitas vezes, alguns questionam se Deus não está agindo contra o livre-arbítrio dado aos seres humanos. Porém, é certo que o pecado traz consequências, as piores possíveis.
Qual é a razão de um rigor tão grande na punição do pecado? O pecado separa as criaturas de seu Criador, impedindo-as de ter uma vida útil e plena de amor. Aqueles que se identificam com o pecado e rejeitam a graça de Deus se afastam da fonte de vida e só poderão sofrer e fazer outros sofrerem. Por isso, é necessário que o juízo de Deus elimine aqueles que se apegam indissoluvelmente ao mal.
Considerando o grau de degradação em nossos dias, são válidas as seguintes considerações: “Este é o meu ponto: nós não compreendemos as profundezas da nossa própria depravação, o horror do pecado e a justiça de Deus. Consequentemente, não é de surpreender quando vemos o julgamento divino sobre aqueles que cometeram os pecados que cometemos, que queixas e protestos se ergam em nosso coração: ‘Isto é barbárie divina!’, ou: ‘Isto é genocídio divino!’ Mas o estudo dessas coisas ao longo dos anos tem me levado a perguntar se os cananeus não poderiam se erguer no juízo e condenar esta geração.”28
O Deus que odeia o pecado punirá o mundo de forma ainda mais terrível, para salvar aqueles que não se contaminaram com o pecado, mas escolheram lavar suas vestes
(Ap 22:14), o que significa confiar na purificadora justiça de Cristo, permitindo que Ele remova toda mancha de pecado. Ainda é tempo de ser puros em meio à corrupção que impera neste mundo que, à semelhança de Canaã, caminha para o juízo.
Referências:
- 1 Ver John Paulien, Armagedon at the Door: An Insider’s Guide to the Book of Revelation (Hagerstown, MD: Review and Herald Publishing, 2008) 9-ss.
- 2 Nick Solly Megoran, The War on Terror: How Should Christian Respond? (Nottingham, UK: Intervarsity Press, 2007), p. 72.
- 3 Hélio Schwartsman, Folha de S. Paulo 18/09/2012, p. A2.
- 4 William Dembinski, The End of Christianity: Finding a Good God in an Evil World (Nashville, TENN: Broadman & Holman, 2009), p. 15.
- 5 Ver outros exemplos: Dt 7:2; 20:16; Js 6:21; 10:1, 28, 30, 32, 35, 37, 39, 40; 11:9, 11, 12, 20-22.
- 6 Barna Magyarosi, Holy War and Cosmic Conflict in the Old Testament: From the Exodus to Exile (Berrien Spring, MI: Adventist Theological Society, 2010), p. 27, 30, 32, 33.
- 7 Daniel L. Gard em Stanley Gundri (ed), Deus Mandou Matar? Quatro Pontos de Vista Sobre o Genocídio Cananeu (São Paulo, SP: Editora Vida, 2006), p. 128.
- 8 Walther Eichrodt, Teologia do Antigo Testamento (São Paulo, SP: Hagnos, 2005), p. 118.
- 9 Hans K. Larrondelle, Armagedom: O Verdadeiro Cenário da Guerra Final (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2004), p. 25.
- 10 Ver Roy E. Gane, Israelite Genocide and Islamic Jihad, Spectrum, 34, v. 3 (2006), p. 61.
- 11 Paul Copan, Is God a Moral Monster? Making Sense of the Old Testament God (Grand Rapids, MI: Baker Publishing Group, 2011), p. 158.
- 12 Ver A. James Reimer, Christian and War: A Brief History of the Church’s Teachings and Practices (Mineápolis, MN: Fortres Press, 2010), p. 26-34.
- 13 Ellen G. White, Patriarcas e Profetas, p. 434, 435.
- 14 Tremper Longman III, “O ponto de vista da continuidade espiritual”, em Gundri, Op. Cit, p. 181.
- 15 Gleason L. Archer Jr., Merece Confiança o Antigo Testamento? (São Paulo, SP: Sociedade Religiosa edições Vida Nova, 2000), p. 196.
- 16 Clay Jones, We don’t Understand what Happened to the Canaanites: An Addendum to Divine ‘Genocide Arguments’, philosophia Christi, v. 11, nº 1 (2009), p. 57.
- 17 Ibid., p. 57, 58.
- 18 Ibid., p. 62; Francis D. Nichol (ed) SDABC, v. 1,
p. 315. - 19 Harry A. Hoffner Jr., Incest and Beastiality in the Ancient Near East Orient and Ocident (Germany: Neukirchen, 1973), citado em Clay Jones, Op. Cit., p. 64.
- 20 Gordon J. Wenhan, Números: Introdução e Comentários (São Paulo, SP: Mundo Cristão, 1985), p. 219.
- 21 Ver Gleason Archer Jr., Enciclopédia de Dificuldades Bíblicas (São Paulo, SP: Editora Vida, 1997), p. 153.
- 22 Clay Jones, Op. Cit., p. 62.
- 23 Hans K. Larondelle, Op. Cit., p. 27.
- 24 Paul Copan, Op. Cit., p. 161.
- 25 Gordon J. Wenhan, Op. Cit., p. 219.
- 26 Daniel L. Gard, Op. Cit., p. 131, 132.
- 27 Ibid., p. 192.
- 28 Clay Jones, Op. Cit., p. 71, 72.