Há mais de 20 anos, tentei produzir um curso chamado “Bioética Cristã” na faculdade adventista em que ensinava. Um de meus colegas duvidou da conveniência da idéia. O assunto, ele concordou, era interessante, mas haveria, porventura, uma abordagem cristã a novas questões em biologia e cuidado de saúde quando tais questões estavam tão claramente fora do território moral da Bíblia? Afinal, as Escrituras não têm nenhum texto aplicável à maior parte das questões no campo da bioética. A despeito das dúvidas de meu colega, ensinei o curso em caráter experimental.
Os tempos mudaram. A Universidade de Loma Linda, onde agora ensino, abriga o Centro para Bioética Cristã, há quase 12 anos, e os estudantes podem agora obter um mestrado em bioética.
O que mudou? Primeiro, as questões urgentes de bioética – questões centrais para o que significa o ser humano – recusam-se desaparecer. Com efeito, elas se têm multiplicado. Segundo, um número crescente de cristãos tem aceito a responsabilidade de entrar no debate bioético.
Conseqüentemente, as perguntas de meu antigo colega são mais pertinentes do que nunca. Podemos nós desenvolver uma abordagem distintamente cristã em questões de bioética? Pode essa abordagem ser honestamente fundamentada na Bíblia? Tais questões exigem séria atenção por adventistas do sétimo dia, com seu compromisso com a fé bíblica e o cuidado da saúde.
Vários assuntos ligados à bioética ilustram a espécie de perguntas que os cristãos precisam enfrentar:
Aborto. Tenho lido inúmeras monografias de estudantes sobre esse tema. Às vezes, penso que todas as facetas têm sido focalizadas, mas a questão não dá sinais de que vá desaparecer. Efetivamente, o conflito sobre aborto parece se tornar cada vez pior. E novos desenvolvimentos biomédicos prometem intensificar as questões morais.
Por exemplo, RU486, a droga abortiva aperfeiçoada na França, com o correr do tempo, provavelmente se tornará acessível em todo o mundo. Seu uso tornará o aborto mais barato, mais seguro e privado, aumentando assim a necessidade de indivíduos moralmente responsáveis pensarem mais clara e profundamente sobre a questão.
Os cristãos, especialmente os que estão envolvidos com problemas de saúde, não podem evitar encarar as questões morais da vida humana pré-natal. Aqueles que, como eu, acreditam que Deus deseja que protejamos a vida pré-natal e que o aborto, mesmo quando necessário, é uma questão moral séria, necessitam se perguntar o que significa tornar prática a nossa fé. Que podem fazer os cristãos para reduzir a tragédia do aborto?
Eutanásia. No passado, a maior parte dos países tinha leis proibindo a eutanásia. Na Alemanha nazista, por exemplo, ela estava associada à corrupção. Mais recentemente, entretanto, novas técnicas médicas para prolongar a vida humana têm feito com que muitas pessoas indaguem sobre a qualidade da vida prolongada. Estamos realmente salvando vidas ou simplesmente prolongando o processo de morrer?
A questão se levanta com freqüência crescente naqueles países bastante ricos para se dar o luxo de tecnologias excessivas. Começando na Holanda e vinda para os Estados Unidos e outros países, estamos vendo a disposição do público para “ajudar” aqueles que estão morrendo a encurtar deliberadamente a vida. E o caso de se perguntar: negar cuidado médico, que parece apenas aumentar o sofrimento do moribundo, é moralmente a mesma coisa que colocar fim ativamente à vida do paciente? Importa se as medidas são tomadas por profissionais (isto é, eutanásia) ou pelos próprios pacientes (ou seja, suicídio com assistência)? Terá o cristianismo, que tradicionalmente se opôs ao suicídio, respostas para os dilemas atuais introduzidos pela capacidade da tecnologia para controlar o fim da vida?
Reprodução. Entre as questões mais recentes de bioética, nenhuma é mais intrigante do que as que se relacionam com a reprodução humana assistida. Além da inseminação artificial, mães substitutas e fertilização in vitro, agora é possível clonar embriões humanos por divisão celular. Pode-se até colher e armazenar oócitos (isto é, óvulos em desenvolvimento) retirados de ovários de fetos abortados.
Novas possibilidades para a vida humana parecem ser limitadas apenas pela imaginação dos novos tecnocratas. Tudo isso suscita questões profundas sobre paternidade, família e o cuidado dos “próprios” filhos. Além disso, a comercialização desses novos processos tem aumentado a complexidade moral. Em face desses dilemas, qual é o ponto de vista cristão sobre procriação e família? Que princípios cristãos deviam guiar nas decisões sobre oferecer ou aceitar novas técnicas para a reprodução humana?
Genética humana. Novos avanços em genética parecem prover maiores possibilidades para definir o que é ser humano. O mapeamento do genoma humano progride mais rapidamente do que se previa há poucos anos. Logo poderemos identificar milhares de características que se desenvolverão numa pessoa, estudando no estado pré-natal o código genético do indivíduo. Esse novo conhecimento encerra promessas fantásticas para o cuidado da saúde.
A habilidade de predizer doenças genéticas e preveni-las é excitante para qualquer pessoa que se preocupa em diminuir o sofrimento humano. É fácil imaginar como essa informação pode levar a abusos tais como aborto seletivo por razões triviais e discriminação contra os portadores de certos defeitos genéticos. De que modo os cristãos decidirão como fazer o melhor uso das oportunidades providas pela nova informação em genética, ao mesmo tempo rejeitando os abusos potenciais?
Além de compreender o genoma humano, o homem adquiriu o poder de mudá-lo. Durante os últimos 20 anos, biólogos têm descoberto como manipular os genes de muitas diferentes formas de vida, incluindo vidas humanas. Material genético pode ser transferido de uma vida para outra, mesmo através de barreiras entre espécies. Ademais, o potencial para ajudar aqueles que têm doenças graves é espantoso. A pessoa cuja enfermidade resulta de um gene ausente ou defeituoso pode tê-lo substituído por outro material genético apropriado. Embora esses tratamentos ainda este-jam na fase experimental, prometem muito. Mas há também a ameaça de abuso, quando pessoas são tentadas a usar a possibilidade não só para aliviar o sofrimento humano, mas também para produzir uma “quantidade superior” de seres. Um exemplo comum é a demanda crescente de um fator de crescimento produzido pela engenharia genética para fazer com que as crianças fiquem mais altas.
Quais são os limites morais da engenharia genética? Será que a crença na criação divina nos ajuda a responder tais questões?
A ciência e seus limites
Esses avanços podiam levar a ciência médica a novas alturas de confiança. Mas outros fatos recentes nos fazem lembrar que o sucesso científico tem limites. Durante a maior parte deste século, acreditávamos que gradualmente estávamos eliminando as doenças mais terríveis. Mas a epidemia da Aids renovou nosso sentimento de vulnerabilidade. Mesmo doenças como a tuberculose, que Pensávamos estar sob controle, nos países industrializados, começam a reaparecer com freqüência assustadora. E novas variedades de bactérias resistentes a antibióticos ameaçam a vida e a segurança do homem. Que significa o sacrifício cristão em tempo de epidemia, especialmente quando algumas doenças, tais como Aids, também estão associadas com estigma social? Será que a fé bíblica oferece qualquer diretriz sobre se deveriamos assumir os riscos necessários para cuidar dos necessitados?
Outra lembrança dos limites da ciência é o fato de que nenhuma sociedade é bastante rica para prover todos os cidadãos com a mais recente e mais dispendiosa tecnologia médica. À medida que novos tratamentos dispendiosos, como o transplante de órgãos, passam da categoria de cuidado experimental para a de normal, mesmo sociedades ricas têm de encarar a realidade dos limites econômicos. Ouvem-se mais e mais debates sobre o racionamento do cuidado médico, incluindo o de tratamentos capazes de salvar vidas.
Um fato básico garante que esse problema vai se tomar cada vez mais agudo. A capacidade humana de inventar coisas ultrapassa sua capacidade de pagar por elas. A idéia de omitir tecnologias médicas, marginalmente úteis porque são muito custosas, parece ofensiva a muitos. Mas, afinal, temos de aceitar essa realidade. Aqui, deparamo-nos com outra intrigante questão: quem poderia se beneficiar dos recursos médicos que potencialmente salvam vidas? As camadas sociais economicamente mais privilegiadas? Aquelas pessoas consideradas mais úteis à sociedade?
Se essas técnicas médicas dispendiosas não podem ser colocadas ao alcance de todos os que delas necessitam, deveriamos mesmo limitar o favorecimento somente a alguns poucos? Que diz a ética cristã sobre questões de justiça social ou distributiva?
No centro da fé cristã, está a convicção de que Deus provê direção para as decisões que precisamos tomar. Através de Sua Palavra (II Tim. 3:16), mediante Seu Espírito (João 16) e pela participação da comunidade da fé (Atos 15; I Cor. 12), temos os recursos para refletir cuidadosamente e decidir sobre a vontade de Deus para nós. Esses recursos cooperam no desenvolvimento de virtudes cristãs em nossa vida. Como regra, traços cristãos de caráter, tais como amor ao próximo (Rom. 13:8 a 10), imparcialidade (Atos 10:34) e disposição para obedecer os mandamentos de Deus (João 14:15), levam a ações que refletem responsabilidade cristã. Noutros casos, os cristãos enfrentam dilemas morais reais, especialmente quando dois ou mais valores cristãos estão em aparente conflito.
Tais dilemas, conforme notados anteriormente, não são raros hoje na bioética. A maturidade cristã requer uma abordagem bíblica honesta a tais questões morais difíceis. Naturalmente, não há nenhuma fórmula cristã simples para resolver todas as complexidades morais. Assim mesmo, podemos esboçar algumas considerações básicas que os cristãos deviam incluir no processo de tomar decisões.
Abertura à direção do Espírito. A ética cristã começa com abertura à direção de Deus (Mat. 21:22). Questões específicas de bioética podem ser novas, mas não deviam nos intimidar, porque Deus tem prometido nos conduzir por Seu Espírito às verdades de que precisamos para sermos fiéis à Sua vontade (João 14:15 a 17). Nossa petição pela direção do Espírito provém do reconhecimento de que a sabedoria de Deus é infinitamente superior à nossa (Prov. 3:5 e 6; I Cor. 3:18 a 20).
Aceitando a direção do Espírito, somos levados à Bíblia na qual Deus revelou Sua sabedoria moral (Salmo 119:105). Em resposta ao amor de Deus, somos motivados a obedecer a Seus mandamentos (João 14:15). Os Dez Mandamentos (Êxodo 20:1 a 17) e muitas outras expressões da vontade de Deus nos dirigirão especificamente para um leque de atividades humanas (Salmo 19:7 e 8), incluindo problemas de bioética. Mesmo quando nenhum texto fale diretamente a uma questão específica de bioética, a Bíblia ainda apresenta princípios abarcantes para guiar nossas ações (Miq. 6:8; Mat. 23:23).
Na Bíblia, por exemplo, não encontramos passagens dizendo-nos especificamente o que fazer sobre a transferência de embriões humanos ou sobre o uso de terapia genética. Mas, se nos submetermos ao Espírito e procurarmos nas Escrituras algumas diretrizes básicas, não seremos desapontados. Não apenas nos mandamentos das Escrituras, mas também em sua história, poesia e profecias existem abundantes recursos que estimulam nossa imaginação moral e nos habilitam a ver a vida humana segundo a perspectiva dos valores divinos. Tais recursos são mais produtivos quando procuramos compreender o que o texto significava para o povo que primeiro o recebeu e a direção em que Deus os estava guiando. Os adventistas do sétimo dia também podem encontrar orientação nos escritos de Ellen White.
Princípios essenciais. A Bíblia nos diz que os valores e os princípios essenciais para nossa vida moral são unificados no amor. Jesus faz do amor a Deus e do amor às pessoas o fundamento da ética (Mat. 22:34 a 40). Paulo afirma o mesmo: “… pois quem ama ao próximo tem cumprido a lei … de sorte que o cum-primento da lei é o amor.” (Rom. 13:8 a 10).
No amor temos, então, uma base prática para resolver conflitos de valores. Isso significa que devemos aplicar todas as normas bíblicas de modo consistente com o amor. Afirmar isso não é pedir o impossível. Temos o amor feito real na pessoa de Jesus (João 3:16). O ministério de Jesus exemplificava o amor de Deus e desperta em nós o desejo de segui-Lo (Fil. 2:5; I Ped. 2:21). O ministério médico de Jesus e Seu respeito por aqueles que eram vulneráveis e rejeitados, são o padrão pelo qual devemos tratar as questões de bioética. Cristo é a revelação suprema dos valores morais de Deus (Heb. 1:1a 4), nEle temos a fonte competente para lidar com questões morais mais complexas.
Deus quer que os cristãos ajudem uns aos outros em seguir a Jesus, participando na vida da comunidade da fé (Mat. 18:20). Ele outorga dons aos membros do corpo de Cristo de modo a poderem ajudar uns aos outros com crescimento na fé (Efés. 4:11 a 16). Quando a Igreja primitiva defrontava-se com questões difíceis, os líderes reuniam-se em conselho e, dirigidos pelo Espírito, chegavam a decisões práticas (Atos 15:1 a 35). Assim fazendo, deixaram-nos um exemplo de confiança mútua que devíamos imitar ao encararmos questões potencialmente explosivas de nossos dias, incluindo assuntos que envolvem bioética.
Quando estamos firmes na fé bíblica, ganhamos confiança que Deus continuará a nos guiar e habilitar a entrar em qualquer área de investigação humana, servindo melhor a Deus e à humanidade.
Base cristã para decisões bioéticas
- 1. Análise. Comece com uma compreensão clara da questão.
- * Que fatos estão em dúvida? Alcançar julgamentos morais maduros requer um apanhado claro dos fatos, incluindo dados científicos atuais e a natureza das intervenções propostas.
- * Que conceitos precisam ser esclarecidos? Esclarecimento de conceitos envolve precisão de linguagem e significado dos termos centrais. Confusão conceptual leva a falhas na comunicação. Por exemplo. seria adultério a inseminação artificial que usa o esperma de um doador? É a retirada de suporte de vida artificial de um moribundo o mesmo que eutanásia? Para o cristão, o esclarecimento de conceitos requer que a linguagem do discurso moral esteja em harmonia com os princípios das Escrituras.
- * Que valores estão em conflito? Identifique explicitamente os valores em questão. Por exemplo, ao cuidar de um paciente agonizante, há conflito entre a possibilidade de prolongar a vida do indivíduo e aliviar a dor? Uma sensibilidade guiada pelo Espírito garante-nos a lembrança dos elementos-chave que devem afetar nossa compreensão da questão.
- * Que relacionamentos humanos serão afetados? A ética cristã devia pesar como as decisões afetam as relações pessoais. Por exemplo, como a inseminação afetaria relacionamentos dentro da família? Os princípios bíblicos visam promover relações humanas saudáveis.
- * Qual é o domínio apropriado da autoridade moral? Quem é o agente apropriado para fazer uma decisão bioética? A decisão de aceitar ou rejeitar uma interveção médica qualquer pertence ao paciente, se ele é adulto lúcido. Em caso contrário, quem decide? A família? A equipe médica? A sociedade? A Bíblia reconhece vários tipos de autoridade, provendo regras especiais para pais, dirigentes da Igreja e funcionários do governo.
- 2. Alternativas. Dê atenção criativa a uma variedade de opções.
- * Que cursos de ação existem? Deus nos deu criatividade para imaginar, avaliar e seguir cursos possíveis de ação. Diante de um paciente terminal, porventura, não há melhores maneiras de preservar a dignidade da pessoa e aliviar sua dor em vez de recorrer à eutanásia?
- * Quais são os efeitos prováveis das várias opções? Se bem que não seja possível em todos os ca-sos uma predição correta, seria irresponsável não considerar os efeitos prováveis de uma decisão. Quais são as complicações prováveis de uma mulher gerar um filho para outra mulher?
- 3. Princípios. Decisões cristãs maduras são guiadas pelos princípios divinos.
- * Que princípios relevantes podem ser derivados de um estudo da Palavra de Deus? Ao examinarmos as Escrituras, o Espírito Santo nos habilitará a discernir princípios para nos guiar em nossas decisões. Tal estudo tenta recobrar o sentido original das Escrituras para compreender a direção moral que Deus nos dá. Essa direção alcança sua expressão mais clara no ministério de Jesus.
- * Pode a experiência da Igreja ajudar? Ser parte do povo de Deus nos ajuda a partilhar intuições morais numa atmosfera de confiança e respeito mútuos. Isso inclui um estudo da reflexão de cristãos tanto de agora como da história da Igreja.
- 4. Decisão. A oração e o cuidadoso estudo da Bíblia deviam inspirar confiança para decisões, e humildade para mudá-las quando necessário.
- * Que decisões se harmonizam melhor com os princípios bíblicos? Ao encarar decisões morais complexas, os cristãos nem sempre estão livres de engano. Mas Deus concede recursos suficientes para decisões corajosas e ações apropriadas.
- * Que obstáculos precisam ser vencidos a fim de levar a efeito a decisão? Devíamos efetuar nossas decisões com estratégia apropriada, incluindo medidas bem fundamentadas para superar obstáculos,
- 5. Avaliação. Aprenda de decisões anteriores e faça os ajustes necessários.
- * Qual é nossa avaliação honesta da decisão? Deus continua a trabalhar conosco e por nós, mesmo quando erramos. Humildade cristã leva a uma nova compreensão e admissão de erros passados, A graça de Deus é libertadora, pois nosso destino final baseia-se em Cristo e não depende da perfeição de nossas decisões.