Um dos versículos bíblicos que apresentam certa dificuldade de interpretação é o texto de Jeremias 17:16, onde se lê: “Mas eu não me recusei a ser pastor seguindo-Te; nem tampouco desejei o dia da aflição. Tu o sabes; o que saiu dos meus lábios está no Teu conhecimento.” As maiores discussões giram especificamente em torno da primeira frase do verso – “Mas eu não me recusei a ser pastor seguindo-Te”.
Segundo o Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia, essa frase originalmente seria “Não me apressei para não ser pastor”. Alguns eruditos entendem que, ao se expressar dessa maneira. Jeremias queria dizer que não se havia apressado a deixar seu trabalho como pastor a fim de aceitar a comissão profética que Deus lhe dera. Supõem que antes de ser chamado como profeta, Jeremias pastoreava em Anatote e adjacências.
Há também os que acreditam serem as palavras de Jeremias, indicadoras de seu propósito de não abandonar a missão de seguir a Deus como pastor espiritual.
Outros até sugerem que a leitura da palavra ro’eh, traduzida como “pastor”, deveria ser substituída por ra’ah, que quer dizer “mal”, considerando que no hebraico, sem vogais, elas são idênticas.
Com tanta discussão, não admira que sejam tão variadas as versões do texto em apreço. A Bíblia de Jerusalém, por exemplo, o traduz da seguinte maneira: “Eu não me acheguei a Ti para o mal e não desejei o dia fatal; Tu o sabes; o que saiu de meus lábios está aberto diante de Ti.” Já a Versão Trinitária diz: “E quanto a mim, não me apressei para que não fosse pastor após Ti; nem desejei o dia desesperado, Tu o sabes. O que saiu dos meus lábios foi reto na Tua presença.” Segundo a tradução do Padre Matos Soares, são estas as palavras do profeta: “Mas eu não me turbei seguindo-Te como meu pastor, nem desejei dia de homem; Tu o sabes. O que saiu dos meus lábios foi reto na Tua presença.”
E a Bíblia na Linguagem de Hoje assim verte o texto: “Mas, Senhor, eu nunca pedi que fizesses a desgraça cair sobre eles, nem pedi que passassem por tempos difíceis. O Deus, Tu sabes disso; Tu sabes o que eu disse”.
R. K. Harrison, professor de Antigo Testamento no Colégio Wycliffe e na Universidade de Toronto, sugere que o sentido do verso parece ser que Jeremias não iria abandonar suas funções de profeta somente por ser perseguido. Pelo contrário, ele ora por graça para poder suportar a oposição até que a verdade se manifeste, quando todos veriam que o que ele estava proclamando, com tanta fidelidade, não era a sua própria palavra mas a de Deus.
Sem dúvida, uma sugestão que se encaixa bem no senso de missão e de chamado divino, que caracterizou a vida e o ministério de Jeremias (embora esse profeta seja também conhecido por suas lamentações). E que, evidentemente, deve ser visto na experiência de todo ministro de Deus. Mas, como chega um homem a possuir tamanha convicção? Que fatos ocorrem na vida de um indivíduo, levando-o a esse estado de comprometimento? Para entender isso, possivelmente necessitemos relembrar os fatos que definem e consolidam a vocação pastoral.
Conta-se que certo dia, na cidade de Londres, um jovem, tendo-se deparado numa encruzilhada vocacional, dirigiu-se ao grande pregador Spurgeon em busca de orientação e aconselhamento. E perguntou-lhe: “O senhor acha que eu devo me tornar um pastor?” Ao que Spurgeon respondeu: “somente se não puder evitá-lo.”
Surpreendente e curiosa como possa ter parecido, a resposta foi sábia. As jóias mais caras do ministério pastoral são aqueles indivíduos que um dia sentiram não mais poder fazer outra coisa, atraídos que foram pelo chamado de Deus. Nenhuma outra alternativa para a vida lhes pareceu tão preciosa. E por isso hoje podem alegremente dizer, livres de preocupação com a problemática exegese, e com profundo senso de realização pessoal, “não me recusei a ser pastor, seguindo-Te”.
Num outro episódio de sua vida, Jeremias rendeu-se novamente a esta realidade. Eis seu testemunho: “Quando pensei: Não me lembrarei dEle e já não falarei no Seu nome, então Sua palavra me foi no coração, como fogo ardente encerrado nos meus ossos; fiquei cansado de suportar e não consegui deter-me.” (Jer 20:9). O sentimento de frustração e fracasso diante de mais um revés levou o profeta a acreditar que a única alternativa era recuar de sua missão. Mas a conscientização da ordem divina, do chamado celestial, novamente aqueceu-lhe o ser, penetrando o interior “como fogo ardente”, impulsionando-o a avançar.
Jeremias enfrentou o cárcere e a perseguição. Mas retroceder era ainda mais difícil do que prosseguir. Era preciso dar a mensagem, apesar da desonra, do escárnio e da perseguição. Então o Senhor tornou-Se para ele, justamente aquilo que deseja ser para os modernos ministros – o “poderoso guerreiro”, que luta em seu favor.
Escolhido e moldado
A atividade pastoral é santa e elevada.
E para desempenhá-la, um homem precisa estar plenamente consciente do chamado divino. Este não é um privilégio que podemos usurpar. Ninguém escolhe ser um ministro. É Deus quem faz tal escolha. E quando alguém aceita essa indicação, já não pertence a si mesmo. Passa a viver sob ordens superiores. Qualquer pessoa pode escolher seguir uma profissão, abraçá-la ou abandoná-la, mantendo-se livre de qualquer prejuízo espiritual. No entanto, embora Deus não obrigue ninguém a ser um pastor, tampouco condicione a salvação de uma pessoa ao exercício dessa atividade, não será feliz o indivíduo que, tendo consciência do chamado divino, lança mão do arado e olha para trás. O minis-tério é uma sagrada vocação.
Ninguém escolhe ser um ministro.
E Deus quem faz tal escolha.
E quando alguém aceita essa indicação, já não pertence a si mesmo.
Condição indispensável para o sucesso pastoral é a disposição de ser-vir. O exemplo de Paulo é singular: “Porque sendo livre de todos, fiz-me escravo de to-dos, a fim de ganhar o maior número possível. Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei. Aos que sem lei. como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei. Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de por todos os mo-dos, salvar alguns. Tudo faço por causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador com Ele.” (I Cor. 9:19-23).
Desde o dia em que foi encontrado por Je-sus, na poenta estrada de Damasco. Paulo não foi mais o mesmo de antes. A descrição que ele mesmo faz daquela experiência é empolgante e cheia de lições para nós. “Ao meio-dia, ó rei, indo eu caminho fora, vi uma luz no Céu, mais resplandecente que o sol. que brilhou ao redor de mim e dos que iam comigo. E, caindo todos nós por terra, ouvi uma voz que me falava em língua hebraica: Saulo, Saulo, por que Me persegues? Dura coisa é recalcitrares contra os aguilhões. Então eu perguntei: Quem és Tu, Senhor: Ao que o Senhor respondeu: Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Mas, levanta-te e firma-te sobre teus pés, porque por isto te apareci para te constituir ministro e testemunha, tanto das coisas em que Me viste, como daquelas pelas quais te aparecerei ainda; livrando-te do povo e dos gentios, para os quais Eu te envio, para lhes abrir os olhos e convertê-los das trevas para a luz e da potestade de Satanás para Deus, a fim de que recebam eles remissão de pecados e herança entre os que são santificados pela fé em Mim.” (Atos 26:13-18).
É imperioso notar uma afirmação de Pau-lo. Ele diz que o Senhor apareceu para lhe “constituir ministro”, expressão que repete, escrevendo aos efésios: “Do qual fui constituído ministro coforme o dom da graça de Deus, a mim concedida, segundo a força operante do Seu poder.” (Efés. 3:7).
Diz Roy Allan Anderson: “Quando o Senhor encontrou a Saulo de Tarso, na estrada de Damasco, iniciou a formação de um pregador, cujo nome seria ouvido em todos os rincões da Terra. Vários anos se passaram, antes de aparecer o produto final. A primeira coisa que o Escultor celestial fez naquela estrada síria, foi esmagar o orgulho natural e o amor-próprio, daquele sábio representante do Sinédrio. Na presença do Cristo vivo, a vangloria e a ambição humana foram espojadas na poeira da estrada. Mas então veio a ordem: ‘Levanta-te e firma-te sobre teus pés’. E desde aquele momento, Saulo percebeu que estava sob ordens e preso por cadeias invisíveis.” (O Pastor Evangelista, pág. 49).
O chamado de Paulo, ainda segundo Anderson, “certamente não foi uma preferência entre alternativas. Não havia outra alternativa. ‘Sobre mim pesa essa obrigação’, declarou ele (I Cor. 9:16). Contudo, a despeito dessa premência divina, havia uma emoção em todo o seu serviço para Deus. Vez após vez, suas mensagens soam com esta nota de alegria. ‘Regozijei-me grandemente no Senhor’, diz ele em Fil. 4:10. E ao admoestar os seus conversos, escreve: ‘Alegrai-vos sempre no Senhor; outra vez digo, alegrai-vos.’ E ‘quanto ao mais, irmãos meus, alegrai-vos no Senhor. (Fil. 4:4; 3:1).”’
Assim como chamou a Jeremias, Paulo e a tantos outros, no passado, o Senhor continua chamando homens para a tarefa especial de pastorear. Evidentemente, nem todos os membros da Igreja serão chamados a servir como ministros. Deus não deu todos os dons a todas as pessoas, embora haja lugar para cada membro na missão da Igreja.
Mas há pessoas às quais Ele deseja contemplar com o dom de pastorear. Quem quer que tenha ouvido o Seu chamado solene, ja-mais deve recusar-se a ser pastor. E quem quer que tenha se tornado um pastor, seguindo-O, jamais deve dar lugar ao pensamento de retroceder.
Que qualidades deveria possuir um homem chamado por Deus? Primeiramente, o homem a quem o Senhor chama, não necessita ser um gênio, ou alguém de grande prestígio social. Ele usa a todos – gênios ou não. Davi, por exemplo, era um obscuro pastor em Israel. Pedro, um rude pescador galileu. Lutero era filho de um modesto mineiro. Guilherme Carey era um sapateiro anônimo.
O homem a quem Deus chama não é perfeito, sem manchas. Isaías reconheceu-se pecador e indigno. Pedro mesmo era explosivo e impulsivo. Paulo não ficava muito atrás. Em obediência ao chamado, porém, todos eles foram transformados e, pela graça de Deus, habilitados a realizar grandes coisas em Seu favor.
Deus necessita de homens cheios de fé, paixão pelas almas, humildes, servos, dispostos a serem usados por Ele. O Senhor mesmo os chama, molda e lhes supre as deficiências. É Ele quem os faz verdadeiros e poderosos ministros, tornando-os Sua propriedade exclusiva.
A despeito da segurança e da felicidade produzida pela convicção do chama-do divino, a tarefa de pastorear não é fácil de ser executada. É uma vida de renúncia de si mesmo. É abnegar-se, tomar a cruz de Cristo e carregá-la por caminhos às vezes íngremes e espinhosos. Mas as provas são nada menos que lições que enriquecem a experiência e burilam o caráter, imprimindo-lhe tenacidade e valor.
Além do mais, a expectativa sempre presente de Sua bendita companhia torna insignificante qualquer revés. E até nos permite antever o momento quando, das mãos de Jesus, receberemos “a imarcescível coroa de glória”.