É fácil presumir que uma verdade eterna seja automaticamente compreensível, independente das circunstâncias e mudanças do contexto em que ela deve ser comunicada. Não se discute o fato de que a fé cristã é relevante em qualquer situação. Contudo, ignorar ou desconsiderar as complexidades e variações do contexto onde ela deve ser proclamada, é tão fatal como o seria para qual-quer atividade humana que envolva a necessidade de comunicação.

Todos nós conhecemos exemplos de profissionais de diferentes áreas, que deixaram de se atualizar ou se ajustar a novas situações, sendo, portanto, ultrapassados e marginalizados pela incapacidade de funcionar efetivamente dentro do contexto alterado. Os cristãos podem cometer o mesmo engano, subsistindo à sombra de glórias passadas e nostalgia; respondendo perguntas que não estão sendo feitas, ou dando respostas a questões que foram formuladas em outras épocas e situações, sem tratar com as questões do mo-mento e do novo contexto. Como observa Steve Wilstein, “é perigoso crer que você se manterá em sucesso simplesmente fazendo as mesmas coisas que trouxeram sucesso no passado. Isso seria verdade se o mundo não mudasse. Para se ter sucesso por um longo período de tempo, é necessário mudar antes que o método deixe de funcionar”.1

O texto de I Crônicas 12:32, indicando que “os filhos de Issacar eram entendidos na ciência dos tempos, para saberem o que Israel devia fazer”, sugere que a habilidade de se fazer a leitura correta dos tempos é ingrediente indispensável para a prática lúcida. Aquilo que deve ser feito deve ser sempre informado pela clara compreensão das circunstâncias, do contrário, corremos o risco de estar falando algo sem sentido ao nosso auditório.

O desafio

Uma das coisas básicas para o comunicador cristão, hoje, é: como comunicar a fé num ambiente que se toma progressivamente secularizado? Por Secularização, entendemos o fenômeno pelo qual a sociedade toma-se cada vez mais inclinada a ver a vida sem nenhuma referência a Deus. O homem moderno tem, progressivamente, experimentado uma erosão da fé no sobrenatural e sido bombardeado por uma percepção que o leva a ver aquilo que acontece ao seu redor, seja o que for, como algo limitado a este mundo e à experiencia dos sentidos. Valores e práticas religiosos têm sido descartados como irrelevantes e superados.

Como comunicar o significado cristão da vida a pessoas que não apenas se afastam da igreja, mas não encontram nela qualquer sentido? Como comunicar a fé a pessoas desprovidas de vocabulário cristão, e para quem a perspectiva cristã parece isolada do contexto geral da vida? Como comunicar a fé a multidões imersas em preocupações criadas e alimentadas por um horizontalismo exclusivo, para quem a vida se expressa dentro das fronteiras dos cinco sentidos, numa forma de empirismo crônico?

De que maneira é possível comunicar a fé a multidões isoladas do mundo religioso, ignorantes do mais simples esboço do que seja o cristianismo? Como podemos comunicar a fé a mentes saturadas pelas mensagens transmitidas por revistas, novelas, músicas, jogos eletrônicos, filmes e shows que não apenas alienam da realidade, mas dificultam a própria habilidade de sentir e perceber em níveis mais profundos? De que forma é possível comunicar com famílias, onde os membros passaram a viver isolados, com prioridades estabelecidas por agendas individualistas; famílias divididas, para as quais o significado do relacionamento humano tornou-se difícil de ser entendido? Como manter relacionamento com o “homem nuclear’’, autocentralizado, altamente interessado em conforto material e gratificação imediata dos desejos, que não olha mais além da morte, e por isso mesmo parece incapaz de relacionar-se com qualquer coisa além do tempo e espaço de sua vida?

A palavra secular descreve a condição em que vivem multidões no mundo moderno. O termo não se refere primariamente ao ateísmo ou ao agnosticismo, mas à indiferença quanto à existência e relevância de Deus. Conseqüentemente, ele pode descrever uma absorvente preocupação com as questões humanas, freqüentemente excluindo o que, do ponto de vista cristão, é relevante, duradouro e prioritário.

Nesse ambiente, pouco se sabe do cristianismo, que, para milhões, parece ter-se tornado o eco de um eco distante, exceto pelas impressões negativas criadas por escândalos explorados pelos meios de comunicação. Raramente a Igreja é incluída no pensamento do homem moderno e, quando isso acontece, ela está associada com forte suspeita, inclusive de clérigos.

O desafio, para os cristãos, envolve o relacionamento com vizinhos e mesmo familiares que perderam a consciência, memória e vocabulário cristãos. Conquanto possam viver do outro lado do corredor com vizinhos secularizados, os cristãos podem parecer-lhes tão estranhos como alguém vindo de outra galáxia. O problema que nos pressiona com grande intensidade é percebermos que o mundo ocidental tomou-se novamente um vasto campo missionário.

Não surpreende, então, que dentro desse contexto, métodos tradicionais de evangelismo não estejam funcionando com importantes segmentos sociais. Nosso limitado sucesso em alguns setores pode criar a ilusão de que tudo esteja como sempre e que nada deve ser mudado. Podemos estar cegos ou convencer-nos de uma “realidade” que existe apenas em nossa imaginação. Podemos buscar refúgio no mundo imaginário do “faz-de-conta”, porque a realidade nem sem-pre é atrativa. Embora isto possa representar certo consolo, está longe de ser a solução adequada. A Igreja hoje manterá uma posição de influência na sociedade pluralista e secularizada apenas em termos de sua atitude responsável para com o presente, não com base em vagas memórias de glórias do passado. Nostalgia pode ser uma experiência interessante, podendo até mesmo trazer algum conforto em tardes chuvosas, mas nada pode fazer para assegurar presença efetiva no mundo confuso e desalojado que atual-mente enfrentamos.

Quatro pontos importantes

Neste ponto, cremos ser necessária uma aparente digressão, para consideração de quatro elementos fundamentais de nossa discussão

Primeiro, aquele que comunica, se deseja ser ouvido e entendido, deve começar com o ouvinte onde este se encontra. Não onde imagina que ele esteja ou onde gostaria que estivesse. Isso naturalmente impõe uma necessidade de Contextualização. O significado parece claro: nós pregadores, que costumamos falar da importância da exegese do texto, devemos também tomar consciência da importância da exegese do contexto, para fazermos a leitura correta de nosso auditório.

Segundo ponto: alguns podem defender que devemos proclamar o evangelho da forma como o entendemos e o apreciamos; e se os outros não o entendem nem o apreciam, isso é “problema deles”. A vida provavelmente seria mais simples dentro desta mentalidade de “pega ou larga”. Contudo, a revelação sugere que o evangelho não terá sido anunciado, até que nosso auditório o escute em seu próprio contexto e linguagem. As pessoas têm que receber a comunicação em linguagem que lhe seja inteligível.

Jon Paulien, faz uma válida aplicação ao discutir a necessidade de ajustes na comunicação do evangelho ao homem secularizado, sob a figura de “dois horizontes”.2 Da mesma forma que as pessoas têm um horizonte físico, isto é, a visão permitida pelo lugar em que elas se encontram, possuem também outro tipo de horizonte: o intelectual, emocional e experiencial. O conhecimento, a percepção e a experiência tendem a ser limitados pela educação, pelo contexto, origens e raízes familiares. Quando encontramos um outro ser humano, é na convergência de horizontes, nos pontos de interesse e com-preensão comuns que podemos nos comunicar de maneira mais efetiva.

Em nossa interação com o homem moderno, defrontamo-nos com pessoas de horizonte religioso extremamente limitado. E, não apenas isso, pessoas com uma atitude mental predisposta à resistência, uma vez que elas foram amplamente treinadas a pensar em termos de dúvida. Isso significa que nos deparamos com uma visão do mundo e da vida, tão distinta da nossa, que os pontos de contato são considerados quase inexistentes. Que fazer para que a interação seja possível? Aquele que busca comunicar o evangelho deve ampliar seu horizonte para incluir outros horizontes e permitir pontos de contato para comunicação efetiva. É crucial ter-mos em mente que no contexto do testemunho, tal responsabilidade está sobre os cristãos. Paulo compreendeu isso ao afirmar: “Fiz-me tudo para todos, para por todos os meios chegar a salvar alguns” (I Cor. 9:22).

Contudo, o maior testemunho desse tipo de ajuste é oferecido pelo próprio Deus. Tomemos o exemplo das Escrituras. A revelação não foi comunicada fora da História, independente dos homens escolhidos como canais da comunicação divina, ou daqueles a quem ela se destinava. As Escrituras não foram compostas por Deus, no Céu, e entregues aos homens em forma final, como se crê do Alcorão. Ao contrário, elas foram dadas passando pelo filtro humano. Encamando-se no tempo, no espaço, linguagem e cultura específicos. O conhecimento, a experiência e o contexto dos autores bíblicos e de seus ouvintes foram respeitados, e aí estão refletidos, como parte integral do fenômeno. Nesse processo, o próprio Deus “ampliou” o Seu horizonte, para incluir o nosso.

Como sabemos, o Novo Testamento foi escrito em um grego diferente (koinê), tanto da língua clássica de Platão e Aristóteles, como do grego moderno. Por muito tempo, os eruditos julgaram que esse tipo especial de grego fosse uma “língua celestial”. Até que, no Egito, há pouco mais de um século, foram descobertos remanescentes de correspondências antigas, cartas de amor, contos, recibos, listas de compras e outras peças da comunicação diária. Para surpresa de muitos, esses fragmentos de papiros estavam escritos na mesma linguagem e estilo dos livros do Novo Testamento. Ficou claro que o Novo Testamento não foi escrito em linguagem celestial, mas na linguagem das pessoas comuns. Deus vem às pessoas onde elas estão, comunicando-Se com elas em termos compreensíveis.

Aquele que comunica, se deseja ser ouvido e entendido, deve começar com o ouvinte onde se encontra.

Não onde imagina que ele esteja ou onde gostaria que estivesse.

Essa verdade é ainda ilustrada na composição dos quatro evangelhos. Cada evangelista, sob a direção do Espírito Santo, ajustou a narrativa às necessidades de seus ou-vintes originais, incluindo ou excluindo os elementos de maior ou menor importância, para aqueles a quem a mensagem se destinou. Dois fatos são evidentes nesse processo: seletividade e adaptação. Como autores inspirados, cada evangelista selecionou as narrativas e ensinos que melhor se adaptavam ao seu propósito de atender necessidades específicas. Escrevendo a judeus, por exemplo, Mateus evoca fortemente o Velho Testamento, na tentativa de persuadi-los de que Jesus de Nazaré era, de fato, o Messias prometido a Israel. Lucas, por outro lado, escrevendo a gentios, faz pouca referência ao VT e remove tudo aquilo que poderia ser um obstáculo à compreensão deles, de Jesus como o Salvador universal. Tais narrativas são ao mesmo tempo específicas (porque se dirigem a situações diferentes) e complementares (em vez de contraditórias). Em conjunto, elas nos fornecem um quadro amplo de Jesus.

Mais importante ainda do que a Palavra escrita, é a própria Palavra encarnada. Na encarnação, Deus veio à humanidade em carne; exceto pelo pecado, precisamente como um de nós. Além disso, a encarnação não se deu desvinculada do seu contexto. Je-sus Cristo não veio como um cavaleiro medieval, ou como um executivo do século vinte. Ele veio como um judeu do primeiro século, vivendo na Palestina, falando nos termos apropriados da linguagem e cultura local; que tomou-Se faminto, cansado e algumas vezes frustrado e triste (Marcos 1:40; 3:4; 6:6; 10:13 e 14). A encarnação de Jesus é a suprema demonstração do compromisso de Deus em comunicar-Se com as pessoas em seus termos e onde elas se encontram.

Foi precisamente esse princípio manifesto na encarnação que motivou Paulo em seus esforços missionários. Ele demonstra que há um considerável preço de sacrifício para se alcançar pessoas diferentes. Talvez a maior razão pelo limitado sucesso com esse tipo de pessoas seja o fato de que temos preferido não assumir o custo, permanecendo dentro dos limites dos nossos horizontes. Em I Cor. 9:20 a 22, o apóstolo afirma: “Fiz-me como judeu para os judeus, para ganhar os judeus; para os que es-tão debaixo da lei, como se estivera debaixo da lei, para ganhar os que es-tão debaixo da lei. Fiz-me como fraco para os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com to-dos, para por todos os meios chegar a salvar alguns. E eu faço isto por causa do evangelho, para ser também participante dele.” Nessa passagem, Paulo apresenta um mandato para o ministério ao mundo secular e um apelo para expansão de nosso horizonte, e, assim, alcançar outros horizontes, aprendendo como falar às pessoas onde elas estão. E isso “por causa do evangelho”, para sermos também participantes dele.

O terceiro aspecto, de certa forma relacionado com os anteriores, tem a ver com a possível objeção: Não é papel do Espírito Santo estabelecer uma ponte sobre o abismo entre as pessoas? Não diz a Bíblia que é pelo Espírito (Zac. 4:6) que Deus alcança os Seus propósitos? De maneira nenhuma gostaríamos de dar a impressão de que estratégias e técnicas humanas possam substituir o papel do Espírito. É deplorável a idéia de que a Igreja seja apenas uma empresa que tenha sido invadida pela mentalidade de marketing, deixando a impressão de que o evangelho pode ser comunicado com as mesmas técnicas de propaganda utilizadas para se vender refrigerantes ou dentifrícios.

Contudo, existe a posição oposta, não menos perigosa em seus efeitos. Nesse caso, deixa-se que Deus assuma completa responsabilidade, com a absoluta omissão humana. Tal posição, em geral, justamente porque é expressa em termos aparentemente piedosos e “espirituais”, é difícil de ser desafiada sem que aquele que faz a objeção não pareça irreligioso e “carnal”. Se no primeiro extremo o homem assume toda a responsabilidade para a comunicação do evangelho, no outro, ele se omite de toda responsabilidade, produzindo uma desastrosa passividade.

Deus escolheu não concluir Sua Obra sem nós. Não podemos fazer sem Ele, o aquilo que Ele decidiu não fazer sem nós. Ele utiliza pessoas para cumprir Seus propósitos.

A Bíblia claramente ensina que Deus nos deu um papel crucial na proclamação do evangelho. A Igreja cumpre sua missão quando o poder divino e o esforço humano, adequado e responsável, se unem. E uma coisa não exclui a outra, como às vezes parece ser sugerido. Certamente não podemos desempenhar nossa parte sem Deus, mas, por outro lado, Deus escolheu não concluir Sua Obra sem nós. Não podemos fazer sem Deus, aquilo que Ele decidiu não fazer sem nós. Ele utiliza as pessoas para cumprir Seus propósitos.

Finalmente, um outro argumento comum é a afirmação de que o problema básico do homem é o mesmo em todos os tempos e lugares, portanto, não há nenhuma necessidade de se alterar os métodos. Não se discute que o problema central do homem – o pecado – é o mesmo, independente das situações variáveis. E não apenas isso, a solução continua também inalterada: Jesus Cristo e a salvação que Ele oferece. O que muda não é o problema, ou a solução, mas as circunstâncias, o contexto humano. E as novas situações interferem e alteram a percepção humana daquilo que é inalterável, tanto do problema como da solução. A reconciliação com Deus continua sendo a necessidade básica da cultura secular. Os cristãos percebem isso, mas da perspectiva em que vive o homem secularizado, sua percepção é extremamente limitada e anuviada.

Por isso, conhecendo as necessidades que ele percebe, podemos, a partir delas, construir pontes de comunicação, e, pela ação do Espírito, conduzi-lo à compreensão do seu problema real e da grande necessidade não consciente. O fato de que Paulo, nos capítulos iniciais de sua Carta aos Romanos, indica que a natureza pecaminosa e a injustiça diante de Deus sejam o problema básico tanto dos gentios como dos judeus (Rom. 1:8 a 3:30), e que a justiça de Cristo seja a exclusiva resposta divina à condição humana (Rom. 3:21 a 5:21), não impede que ele, diplomaticamente, se faça “gentio com os gentios e judeu com os judeus” para ganhar alguns.

Assim, nossa tarefa, à semelhança dos próprios evangelistas, e do teor geral das Escrituras, é essencialmente comunicar a mesma história, adaptando-a em formas de linguagem e pensamento capazes de comunicar o seu significado a um auditório diferente. O que muda não é a história de Jesus a ser contada, mas o método, a abordagem da comunicação, que deve ser re-contextualizada, para que nossa proclamação faça sentido ao mundo moderno. En-quanto a mensagem permanece inalterada, os métodos de sua comunicação são variáveis. Devemos libertar-nos da idolatria das formas e nenhuma confusão deve existir entre a mensagem e o método. Ao mesmo tempo em que a substância da pregação é imutável, o estilo de se ministrar a Palavra deve ser inovativo e adaptável. Portanto, basicamente, estamos falando de adaptação do método, não de invenção ou reinvenção da mensagem.

Nasce a Secularização

Cada geração opera dentro de um clima de opinião dominante. Na maior parte do mundo ocidental hoje, que no passado foi tão fortemente influenciado pelo cristianismo, o clima dominante é, na melhor das hipóteses, de apatia e freqüentemente de hostilidade em relação à fé cristã. Como isso aconteceu? Que fatores contribuíram para essa reversão? A questão é de absoluta importância porque, em diferentes estágios de ação, as mesmas causas estão produzindo seus efeitos em todas as par-tes. Em busca de uma resposta que nos ajude a compreender o mundo ao qual temos que pregar, tomaremos algum espaço para uma breve análise histórica.

Por séculos, o mundo ocidental viveu o período de uma “sociedade cristã”, na qual a maioria, acreditava-se, pertencia à Igreja,cercada por seus ritos e ensinos. Historiadores chamam esse período de “cristandade”. A cristandade tem raízes profundas, cuja análise detalhada aqui é impossível. Era dominada, sobretudo, por uma visão do propósito divino para a vida, como ensinado pela Igreja, e marcada por uma “tentativa de se criar uma civilização cristã, com leis que refletissem os ensinos bíblicos, reis, governantes e mestres, sob a explícita obrigação de lealdade à Igreja”.4

A Igreja definia os propósitos de cada área da vida. Assim, governo, educação, arte, arquitetura, literatura, música, moralidade pessoal, vida comunitária e mesmo a economia marchavam pelo tambor do cristianismo. A Igreja tomou-se a fonte e o centro da civilização ocidental, influenciando cada área da vida. O próprio pensamento era regulado por aquilo que ela ensinava. Durante o período da cristandade, a influência eclesiástica, muitas vezes, chegou aos limites do monopólio. Se as pessoas eram educadas, tal educação era transmitida pela Igreja ou sob sua tutela. Arte e música serviam a temas cristãos. A Igreja tomou-se a força dominante da sociedade. A mais preeminente instituição era a Igreja; e o papa, mais importante que qualquer príncipe. Em tal arranjo, a Igreja formou um ambiente cultural a tal ponto que, com algumas variações, as pessoas nascidas dentro da cristandade eram automaticamente consideradas cristãs.

Com esse pano de fundo, não é difícil compreender porque uma das primeiras definições de Secularização a relaciona com libertação do controle, primeiro, da religião e depois, da metafísica sobre a razão e linguagem humana.5 Em outra definição, a Secularização é vista “como o processo pelo qual setores da sociedade e cultura são removidos do domínio de instituições e símbolos religiosos”.6 Wolfhart Pannenberg descreve a Secularização como “o modo pelo qual o mundo e a cultura se tomaram independentes do cristianismo e sobretudo das igrejas”.7

O arranjo da cristandade durou aproximadamente dez séculos. Mas, desde então, o ocidente foi substancialmente perdido. Avaliando-se a questão pelo simples indicador de freqüência às igrejas, pode-se perceber o massivo declínio do cristianismo no ocidente.8 O desafio é complicado, senão drasticamente agravado, pelo fato de que a maioria das populações ocidentais foi exposta a alguma forma distorcida de meias-verdades ou expressão caricaturada do cristianismo, o que contribui para inocular as pessoas contra o real cristianismo bíblico.

O irônico é que a resistência à fé cristã instalou-se precisamente no coração da antiga cristandade, gerando o desafio de alcançar para Cristo populações “pagãs” vivendo em territórios que no passado foram a fortaleza do cristianismo. Isso, certamente, requer uma lúcida estratégia missionária, provavelmente mais que em qualquer outro período da História.

A cristandade desintegrou-se através de um longo processo, de 500 ou 600 anos de Secularização, de tal forma que ela tornou-se simplesmente uma lembrança remota. A idéia da Secularização pode ser ilustrada por um evento histórico: durante os séculos 15 e 16, quando as armas de vários nobres e barões saqueavam os mosteiros e se apossavam das propriedades da Igreja, dizia-se que tais propriedades estavam sendo “secularizadas”, isto é, retiradas do seu do-mínio. Tal exemplo pode ilustrar a retirada de áreas inteiras da vida, pensamento e atividades, do controle ou influência da Igreja. Ela sempre experimentou uma perda de influência em quase todas as áreas da vida da sociedade ocidental, desde educação, governo, economia, arte, arquitetura, literatura, música, moralidade pessoal e vida comunitária. Hoje, ninguém considera que a cultura ocidental marcha ao som de tambores cristãos.

Há variações nesse processo. Além disso, a Secularização de uma área (literatura) varia de outra (música, ou economia, por exemplo). O processo não é uniforme. As raízes são complicadas e faltaria tempo e espaço para qualquer tentativa de análise extensiva. Vamos nos limitar aos aspectos básicos, para estabelecer o contexto da nossa discussão. Duas áreas fundamentais devem ser consideradas: primeira, a ação de seis eventos desintegradores; e, segunda, a própria alienação da Igreja, resultado de sua atitude reacionária.

Eventos desintegradores

 A primeira causa do declínio da cristandade e da conseqüente Secularização do ocidente é encontrada numa série de seis eventos culturais de extraordinária magnitude ao longo de vários séculos.

•1.0 processo de Secularização iniciou-se com a Renascença, um movimento intelectual e cultural desde a metade do século 14 até o início do século 16, liderado por Erasmo e Bacon. Essencialmente, a Renascença representou a redescoberta ocidental da cultura da Grécia clássica – sua arte, filosofia, literatura, ciência e sobretudo seu humanismo. Com a Renascença, aconteceu um redirecionamento das preocupações. A atenção, antes voltada para Deus, o “outro mundo” e questões teológicas, passou para questões humanas e progresso da humanidade. A humanidade, não Deus, tomou-se a medida de todas as coisas. Este mundo, não o próximo, tomou-se o centro de atenção. Como conseqüência inevitável, a visão da vida fornecida pela Igreja era até então a opção exclusiva. O pluralismo foi introduzido como uma nova fonte de dúvida na mente ocidental. A Renascença criou o solo cultural de onde, eventualmente, emergiu o humanismo moderno como o maior e mais perene rival da verdade cristã.

  • 2. Ironicamente, a Reforma Protestante do século 16 removeu a influência da Igreja da vida ocidental, dividindo-a e desviando a atenção dela. Sua preocupação em administrar a sociedade voltou-se para problemas internos, de renovação, reorganização e questões teológicas.
  • 3. O processo de Secularização continuou com o surgimento do nacionalismo que fragmentou a tradicional hegemonia medieval. O espírito nacionalista que varreu a Europa contribuiu para a desintegração da cristandade como uma entidade política. “Devoção à nação” diz Michael Green, “substituiu a antiga devoção a Deus.”’ O nacionalismo suscitou guerras entre povos, incluindo, a longo termo, duas guerras devastadoras, introduzindo desilusão, dúvidas e uma atitude de cinismo no homem moderno.
  • 4. O surgimento da ciência desafiou as pressuposições pré-científicas da cristandade, acerca do Universo e da vida humana. Seria difícil exagerar o impacto da ciência e daquilo que foi apresentado como tal, pela referência à influência de seis pensadores: Copérnico, Galileu, Newton, Darwin, Marx e Freud.

Copérnico e Galileu, pela descoberta da estrutura do sistema solar, desafiaram a compreensão mantida pela Igreja a respeito do cosmo (a Terra como centro do Universo). A teoria da gravidade de Newton desafiou a doutrina da providência, como tradicionalmente entendida: a providência divina mantinha a Lua, planetas e estrelas em suas órbitas. Newton argumentou que tal ordem podia ser defendida em termos matemáticos. Eventualmente, o Universo veio a ser entendido como um sistema existente em si mesmo, ou como uma “máquina” que dispensa Deus para explicá-la ou administrá-la.

A teoria da evolução, de Darwin, desafiou a doutrina da criação e a natureza da humanidade. Por outro lado, os escritos de Marx proveram uma alternativa para a visão cristã do alvo da História. Marx substituiu a escatologia bíblica por uma utopia econômica. Finalmente, Freud colocou um ponto de interrogação sobre a fé e a experiência religiosa, acusando a crença em Deus e as experiências de Deus como algo que poderia ser explicado em termos psicológicos, ou entendido como ilusões.

  • 5. O Iluminismo, construindo sobre o fundamento da Renascença, deu extraordinário impulso à Secularização. O efeito do Iluminismo foi tão colossal que alguns pensadores concluem que apenas ele é responsável pela Secularização do ocidente. Agnóstico em relação a Deus, o Iluminismo emergiu na História européia com enorme confiança na razão humana, deixando um legado intelectual que afetou de forma irreversível a cultura ocidental: o homem é essencialmente bom e racional (é o ambiente que o toma menos bom e menos racional). Líderes do Iluminismo confiavam que a moralidade e a sociedade podiam estar baseadas apenas na razão, sem necessidade de se recorrer à revelação. Criam ainda que a ciência, tecnologia e educação trariam progresso inevitável. Deus, portanto, tornou-Se supérfluo. O Iluminismo trombeteou a “dignidade humana” e “direitos humanos”, inspirando movimentos intencionados em criar uma sociedade mais humana, provendo uma alternativa radical à ética e aos ensinos cristãos. Encorajando dúvidas acerca do cristianismo, o Iluminismo originou crenças e causas que pareceram uma substituição a ele, intoduzindo o modernismo na cultura ocidental.
  • 6. Finalmente, o processo de Secularização foi grandemente implementado pela urbanização.10 A concentração de grandes massas humanas nas cidades do mundo, desde a revolução industrial, é uma das mais poderosas forças em nossa sociedade. Seu desastroso efeito é visto na ruptura ou, pelo menos, no enfraquecimento do círculo familiar amplo. Ela desalojou os valores tradicionais, imergindo multidões num estilo de vida febril, em oposição ao tranqüilo ritmo rural e agrário de vida, onde fé em Deus era sentida como algo quase natural. Crime, desintegração dos relacionamentos, alienação e descrença estão entre seus efeitos colaterais. A urbanização pode ser considerada irmã gêmea da Secularização. Ela ampliou os efeitos da Secularização e, tão profunda como sutilmente, afetou a consciência de Deus nas populações urbanas.

A alienação da igreja

A primeira causa para a perda de in-fluência do cristianismo sobre a cultura ocidental foi o massivo impacto de uma série de seis eventos – da Renascença à urbanização. A segunda causa pode ser traçada à síndrome reacionária de caráter quase patológico, apresentada pela própria Igreja, em resposta a esses eventos. Essa atitude minou sua credibilidade e distanciou as pessoas de seu testemunho.

Em quase cada situação, a Igreja apegou-se a seus dogmas e recusou-se a tratar com as novas e indesejadas questões. Tal postura gerou um conflito com a ciência. A Igreja, inicialmente, tentou controlar o que devia e o que não devia ser pesquisado, as conclusões da pesquisa científica (baniu os livros de Copérnico por 200 anos, forçando Galileu a retratar-se de suas descobertas na área da astronomia). Paradoxalmente, pessoas como Newton e Galileu nunca se viram como inimigas da Igreja. Mas o comportamento desta fez com que ela parecesse inimiga do pensamento, da racionalidade e da própria verdade.

Igrejas protestantes tornaram-se, posteriormente, aliadas do nacionalismo. O cristianismo protestante, portanto, também perdeu parte da visão de uma humanidade comum e contribuiu para o chauvinismo que acabou separando ainda mais as nações. Poucas pessoas no ocidente tiveram razão para associar o protestantismo como Príncipe da Paz, e muitos observaram essa expressão do cristianismo como uma traição a Ele.

O catolicismo europeu opôs-se vigorosamente às causas defendidas pelo Iluminismo. A Igreja perdeu sua credibilidade quando falhou em colocar adequadamente sua influência do lado de movimentos trabalhando por justiça e democracia. Na Europa católica, a Igreja aliou-se aos monarcas, ao poder e ao dinheiro, como aconteceu na América Latina. Bertrand Russel, em sua History of Western Philosophy, observou, provavelmente com algum exagero, que “as igrejas, em todas as partes, tanto quanto puderam, foram contrariadas praticamente a cada inovação criada para aumentar a felicidade e o conhecimento na Terra”.3 4 5 David Edwards, erudito cristão, atribui a Secularização ao fracasso do clero em transcender o nacionalismo, a entender a ciência e a democracia e alcançar os trabalhadores das indústrias urbanas. Edwards atribui o ateísmo europeu à resposta contraprodutiva da Igreja: “O ceticismo é generalizado, nem a política ou a vida diária são profundamente influenciadas pelos ensinos das igrejas, e o europeu médio perdeu qualquer senso vivo de Deus, ou qualquer noção religiosa de certo ou errado.”12

Resumo

Iniciamos esta seção apresentando o formidável desafio que a Secularização representa hoje para os cristãos. Buscamos então indicar as razões porque os cristãos de-vem considerar seriamente a importância de se entender a cultura secularizada, para adaptar estratégias capazes de fazer frente ao fenômeno. Buscamos sugerir respostas às possíveis objeções quanto à necessidade de ajustes onde eles sejam requeridos. Para ser efetiva, a proclamação cristã deve, por um lado, ter identidade bíblica, mas por outro, ser relevante à sua audiência. A menos que expressa em categorias familiares aos ouvintes, ela não é adequadamente expressa.

Num segundo momento, buscamos, em caráter particularmente descritivo, indicar as raízes do moderno fenômeno da Secularização. Isso porque, cremos, a clara com-preensão do problema é sempre parte indispensável da sua solução. As causas indicadas certamente não são as únicas, mas provavelmente as principais responsáveis pelo clima intelectual que se respira nos dias atuais. Tal ambiente parece tornar Deus uma hipótese improvável, uma força esgotada, uma relíquia piedosa do passado. Tais causas, refinadas, expandidas e projetadas sob o ímpeto de influências mais recentes, criaram na grande maioria das populações ocidentais, a consciência de que Deus e a religião foram superados. Se Ele existe, o que é duvidoso, certamente Ele é irrelevante para a vida.

É significante notar que o processo da Secularização que tomou séculos para instalar-se nos países desenvolvidos, em apenas duas ou três décadas terá varrido os, assim chamados, países em desenvolvimento. E, nas palavras de Emil Brunner, de forma geral “a Igreja hoje não fala princípalmente a cristãos, como ela o fez na Idade Média, ou mesmo no tempo da Reforma, ou mesmo ainda, cem anos atrás. Ela hoje deve falar primariamente a ‘pagãos’.”13

Na próxima edição, tentaremos, agora de forma mais analítica, traçar o perfil do secularizado, para então construirmos os possíveis pontos de contato com o vasto campo missionário à nossa frente.