À luz das instruções do Novo Testamento, a cerimônia batismal não deve ser tratada de maneira descuidada

Entre as denominações cristãs que adotam o batismo bíblico por imersão, e consequentemente rejeitam a prática do batismo infantil, existe certa diversidade quanto à idade considerada mínima para a recepção do rito. Alvo de discussões acaloradas desde os tempos da Reforma Protestante, a idade batismal tem sofrido considerável decréscimo nesses quase quinhentos anos de história, passando de vinte anos entre os anabatistas do século 16 (sendo que a idade média era de 36,4)1 para quatro anos entre alguns grupos batistas modernos.2 Vários outros grupos tanto batistas quanto menonitas preferem a idade entre dez e doze anos. O mesmo acontece com a Igreja Adventista, embora haja exceções.

Em alguns países, crianças de até cinco anos de idade já foram conduzidas ao batismo, ao passo que em outros, a ideia de batizar adolescentes, mesmo de famílias adventistas, com menos de quatorze ou quinze anos de idade quase chega a ser considerada heresia. Portanto, é provável que o assunto mereça cuidadosa análise a partir de uma perspectiva mais ampla, que leve em consideração questões tanto de natureza histórica e teológica quanto aspectos relacionados ao desenvolvimento da criança.

Origem

Ritos de imersão (autoimersão) eram abundantes na religião judaica, da qual o cristianismo emergiu. O significado mais comum associado a tais ritos era o da purificação cerimonial. Além das muitas situações previstas no Pentateuco (Lv 14:8, 9; 15:2-30; 16:4, 24, 26-28; 17:15, 16; 22:3-7; Nm 19:2-8; Dt 23:11), diversos outros banhos cerimoniais eram praticados por grande número de judeus nos dias de Jesus. Havia rituais diários, como aqueles observados pelos essênios, bem como rituais específicos visando à participação em alguma cerimônia religiosa. Há informações de que os hemerobatistas, uma seita judaica da qual pouco se sabe, chegavam a banhar-se até mesmo antes de cada refeição.3

Os judeus do primeiro século também costumavam exigir a imersão (além da circuncisão, no caso dos homens, e de uma oferta no templo) dos gentios que se convertiam ao judaísmo, os chamados prosélitos. Em vez de ser um rito de iniciação, porém, a imersão proselítica era de natureza exclusivamente cerimonial, ou seja, consistia apenas numa purificação das impurezas pagãs e idólatras, e o rito era cumprido também por meio da autoimersão: a pessoa entrava sozinha na água, embora na presença de pelo menos dois homens instruídos na Lei (rabinos); caso contrário, a cerimônia não seria considerada válida.4

O batismo cristão, porém, não deriva de nenhuma dessas práticas cerimoniais judaicas, nem mesmo do batismo proselítico, mas do batismo moral introduzido por João Batista. Enviado por Deus como precursor de Jesus (Mt 3:1-3,11,12; Mc 1:2-4; Lc 3:1-6; Jo 1:6-8,15, 23, 25-27), João Batista desenvolveu seu ministério no deserto da Judeia, onde anunciava a chegada do reino de Deus (Mt 3:1-2) e o batismo do “arrependimento” (Mc 1:4; Lc 3:3; At 13:24; 19:4), para a “remissão dos pecados” (Mc 1:4; Lc 3:3), em vista da “ira vindoura” (Mt 3:5-10; Lc 3:7). Portanto, diferentemente das imersões cúlticas judaicas, o batismo de João era uma cerimônia única (não-repetitiva), com profundo significado profético e simbólico, e era recebido de forma passiva, ou seja, João mesmo era quem o ministrava (Mt 3:5-6,11,13-17; Jo 1:33; At 19:4). Foi exatamente por isso que João ficou conhecido como “o Batista,” isto é, “aquele que batiza” (Mt 3:1; 11:1-12; 14:2, 8; 16:14; 17:13; Lc 7:20, 33; 9:19; Mc 6:25; 8:28; cf. Jo 1:25).

A relação entre o batismo cristão e o batismo de João é óbvia e não precisa ser argumentada em detalhes. Não apenas Jesus e, supostamente, alguns de Seus discípulos foram batizados por João (Mt 3:13-17; Jo 1:35-42), mas também o início da atividade batismal de Jesus e Seus discípulos se deu em íntima associação com o ministério de João (Jo 3:22-23; 4:1-2). Portanto, desde seu início, o batismo cristão era uma continuação do batismo introduzido por João, inclusive na forma, visto que também era recebido passivamente pelo interessado.

É verdade que após o Pentecostes o batismo cristão adquiriu dois novos elementos – a realização “em nome de Jesus”5 e o “dom do Espírito Santo”(At 2:38; 8:14-17; 10:47-48; 19:5, 6) – mas ele continuou a ser definido como batismo do arrependimento para o perdão dos pecados (At 2:38; 22:16; cf. Ef 5:25-27; Tt 3:5-7). Em outras palavras, ele não perdeu o caráter moral (conversão) nem a orientação escatológica (Jo 3:5; At 2:38-40; Rm 6:4, 5; Tt 3:5-7) que herdara do batismo de João.

Talvez convenha salientar que a igreja apostólica como um todo nunca rompeu com o batismo de João, nem mesmo com as mudanças introduzidas no batismo cristão após o Pentecostes. O episódio ocorrido em Éfeso e registrado em Atos 19:1-7, no qual Paulo rebatizou alguns crentes que haviam sido batizados por João antes de se tornarem discípulos de Jesus (cf. v. 1, 2), parece ter sido único no período apostólico. Nem Áquila e Priscila rebatizaram Apoio, um cristão proveniente de Alexandria e que se encontrava em situação idêntica à dos discípulos de Éfeso (At 18:24-28), nem a igreja em Jerusalém rebatizou os 120 discípulos anteriores ao Pentecostes (At 1:15) que haviam recebido o batismo cristão primitivo ou, em alguns casos, apenas o batismo de João propriamente dito (Jo 1:35-42). O fato de Paulo haver rebatizado os discípulos de Éfeso talvez se deva, pelo menos em parte, à experiência de conversão do próprio apóstolo, que ocorrera após o Pentecostes, sendo que ele mesmo foi batizado em nome de Jesus (At 22:16; cf. Rm 6:3). A igreja apostólica, e mesmo pós-apostólica, sempre teve elevado respeito por João Batista (Mt 11:11; 17:10-13; Jo 1:6, 7; 5:33-35), cujo ministério representava o próprio início do movimento cristão (At 1:21, 22; 10:36, 37; 13:23-25).6

Significado

O significado do batismo cristão é determinado por sua natureza moral. O batismo está associado, em primeiro lugar, à oferta de perdão inerente ao evangelho. Foi assim que o próprio Jesus definiu Seu ministério (Mc 2:17; cf. Mt 9:1-6; Lc 7:36-50), e foi assim que os apóstolos O anunciaram ao mundo (At 13:38; Ef 1:7; Cl 1:13,14). Em segundo lugar, o batismo está associado a uma resposta de fé da parte do pecador (At 10:43; 13:39; 16:30-33; 18:8). Isso significa que o perdão dos pecados não é automático, mas resulta de aceitação e de confiança irrestritas no dom salvador de Jesus (Jo 1:12; 3:16; Rm 1:16,17; 10:9). Em terceiro lugar, o batismo está associado ao arrependimento, que é subproduto da fé. Por si só, o ato de crer consiste numa resposta voluntária e consciente à pregação do evangelho (Rm 10:14), mas essa resposta deve também incluir aquilo que chamamos de arrependimento (At 5:31). Caso contrário, ela não pode ser descrita como genuína (At 20:21; Hb 6:1). Em outras palavras, a fé genuína conduz ao arrependimento.

E o que é arrependimento? No Novo Testamento, há duas palavras gregas que costumeiramente são traduzidas por “arrependimento”: metanoia e metamelomai. Usada apenas seis vezes, metamelomai tem um sentido mais restrito, não indo muito além de sentimento de remorso ou tristeza (Mt 21:29, 32; 27:3; 2Co 7:8; Hb 7:21). É claro que o verdadeiro arrependimento envolve a ideia de remorso ou tristeza, mas não se limita a isso. A noção mais completa do verdadeiro arrependimento é expressa pelo substantivo metanoia, bem como por metanoeõ, seu cognato verbal (“arrepender-se”). A ideia de metanoia/metanoeõ, que juntas aparecem 56 vezes no Novo Testamento, é a de completa mudança da mente, ou seja, mudança radical de atitude ao ponto de influenciar toda a existência do indivíduo (Lc 3:8-14; At 26:19, 20; 2Co 12:21; 2Tm 2:24-26).7

Nesse caso, teria sido muito mais apropriado se apenas metamelomai tivesse sido traduzida em português por “arrependimento,” palavra de origem latina que significa remorso ou tristeza. Em português, a tradução mais correta de metanoia/metanoeõ seria “conversão/converter-se,” cujo significado, etimologicamente, é mudança de rumo ou direção. Portanto, verdadeiro arrependimento significa abandono de velhas opiniões, atitudes e comportamentos, e a aceitação consciente e integral de um novo padrão de crenças, nova disposição ou postura que se reflete em todos os aspectos da vida, como ilustrado, por exemplo, na parábola do filho pródigo (Lc 15:11-24).

A relação entre o batismo e o arrependimento ajuda a explicar uma das mais significativas metáforas batismais do apóstolo Paulo, a metáfora da morte e ressurreição (Rm 6:1-11). Tomando como base a forma do batismo bíblico (imersão), o apóstolo desenvolve a ideia de que a experiência do batismo simboliza a morte para a velha vida (v. 1-3) e a ressurreição para uma vida completamente nova, não mais em sujeição ao pecado (v. 4-6). E tudo isso deve ocorrer num âmbito absolutamente consciente, conforme demonstrado pelo verbo logizomai no v. 11. Esse verbo, que significa “julgar/considerar,” incorpora a noção de uma cuidadosa atividade cognitiva, de modo que, ao aceitar o batismo, o pecador deve estar em plenas condições de tomar decisão, a decisão de servir a Deus, não mais permitindo que o pecado reine em sua vida, mas sujeitando-se voluntária e completamente à vontade de Deus (veja v. 12,13).

O batismo, portanto, consiste numa confissão pública não apenas de mudança de vida, mas principalmente de mudança de senhorio. Ao ser batizado, o pecador está escolhendo submeter sua vida à vontade de um novo Senhor e declarando sua inteira lealdade a Ele. Esse é também o significado dos dois elementos que foram acrescentados ao batismo cristão após o Pentecostes. A fórmula “em nome de Jesus” tem a finalidade de dedicar o candidato a Jesus Cristo. O dom do Espírito Santo tem o objetivo de fazer com que isso seja uma realidade.

“No batismo, o pecador submete sua vida ao senhorio de Deus”

Ao aceitar o batismo, o pecador declara solenemente que, desse ponto em diante, sua vida tem um novo Senhor. Ele não mais está entregue aos poderes que até então haviam ditado o curso de suas ações. Cristo agora passa a ter o controle absoluto (cf. 1Co 1:12,13). E o Espírito Santo, à parte de sua capacitação profética (cf. At 1:8; 13:1), é quem vai habilitar o crente a realmente viver em sujeição a Cristo (Rm 8:9, 14-15; G1 4:6; 5:22-25; cf. 1Co 12:3).8

Tem sido sugerido que o próprio uso da palavra “crente,” ou seus equivalentes, no livro de Atos (At 5:14; 11:21; 13:48; 14:1; 15:5, 7; 17:34; 18:8, 27; 19:18; 21:20, 25) indica que, já a partir do Pentecostes, o rito batismal incluía uma espécie de exame do candidato, que deveria responder afirmativamente à pergunta se de fato cria em Jesus como Salvador e Senhor. Há claras evidências de que um exame assim viria a se tornar prática comum na igreja do segundo século em diante. O próprio surgimento da leitura variante de At 8:37 (“Filipe respondeu: É lícito, se crês de todo o coração. E, respondendo ele, disse: Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus”) pode estar relacionado com essa prática, que talvez remonte mesmo aos primórdios da atividade apostólica.9

Seja como for, o batismo não pode ser tratado de forma descuidada, como se ele fosse apenas um testemunho público da aceitação de Jesus Cristo. Embora o batismo seja um testemunho público da aceitação de Jesus, uma vaga percepção desse fato não é o bastante, não à luz do pleno significado do rito conforme encontrado nas páginas do Novo Testamento. A relação existente entre o batismo e o evangelho, a fé e o arrependimento pressupõe elevado nível tanto da capacidade cognitiva quanto do exercício da vontade do batizando. A resposta de fé à pregação do evangelho e o verdadeiro arrependimento implicam em escolhas conscientes e tomadas de decisões que vão impactar profundamente toda a vida e cujo alcance será eterno. A entrega e o comprometimento exigidos pelo batismo não podem de modo algum ser minimizados, ainda mais se os ensinos doutrinários e éticos de Cristo também forem levados em consideração, como aquilo que deve ser compreendido e praticado por todo aquele que aceitou o senhorio de Cristo. (Continua)

Referências:

  • 1 Leland D. Harder, “Age of Batism”, Mennonite Encyclopedia Online (http://www.gameo. org/ encyclopedia/ contents/B369ME.html), acessado em 20/10/2008.
  • 2 Ken Camp, “Batism Meanings and Methods”, Thoughts and Actions (http://thoughtsactions. wordpress.com/2006/08/17/baptism-meanings-and-methods-spark-debate-among-some-baptists/), acessado em 19/10/2008.
  • 3 Veja especialmente Robert L. Webb, John the Baptizer and Prophet: A Socio-historical Study (Sheffield: Sheffield Academic Press, 1991), p. 95-162.
  • 4 b. Yebamoth 47a. Sobre o batismo de prosélitos, veja Louis H. Feldman, Jew and Gentile in the Ancient World: Attitudes and Interactions from Alexander to Justinian (Princeton: Princeton University Press, 1993), p. 288-341.
  • 5 Sobre a relação entre o batismo “em nome de Jesus” do livro de Atos e a fórmula trinitariana de Mateus 28:19, veja em Leon Morris, The Gospel According to Matthew (Grand Rapids: Eerdmans, 1992), p. 747, 748.
  • 6 Para um estudo completo de Atos 19:1-7, veja Wilson Paroschi, “Acts 19:1-7 Reconsidered in Light of Pauis Theology of Baptism”, Andrews University Seminary Studies (a ser publicado em breve).
  • 7 H. Merklein, ”Metanoia/metanoeõ’’, Exegetical Dictionary of the New Testament, 3 v. (Grand Rapids: Eerdmans, 1990-1993), v. 2, p. 415-419.
  • 8 Eduard Lohse, The First Christians: Their Begnnings, Writings, and Beliefs, trad. Eugene Boring (Philadelphia: Fortress, 1983), p. 68.
  • 9 Veja Lars Hartman, “Baptism”, Anchor Bible Dictionary, (Nova York: Doubleday, 1991), v. 1, p. 591.