Reflexões sobre a experiência do rei-pastor Davi
O pastor, devido às suas funções em diferentes níveis, exerce um tipo de poder. As Escrituras apresentam personagens que poderiam ser considerados modelos de pastor. Entre eles, talvez Davi seja o que melhor reflita essa realidade. No entanto, apesar de ser um tipo de Jesus, o “Bom Pastor”, Davi empregou o poder para fins contrários aos princípios divinos. Por isso, não pôde evitar as consequências de sua decisão. Este artigo analisa a relação do pastor com o poder e, para isso, analisa o caso de Davi como referência.
O rei-pastor
Na Bíblia, provavelmente o nome de Davi seja mais recorrente do que o de Moisés. No aspecto histórico, ele é considerado um “personagem complexo”,1 que poetas, literatos, historiadores, escultores e outros tentaram representar. No entanto, a importância de Davi não consiste somente em seu papel como rei, mas também em sua atitude como pastor e sua relação com a genealogia do Messias.
Ao se referir a Davi, Asafe afirmou que Deus “o tirou do aprisco das ovelhas, do cuidado das ovelhas e suas crias, para ser o pastor de Jacó, Seu povo, e de Israel, Sua herança. E ele os apascentou segundo a
integridade do seu coração e os dirigiu com sábias mãos” (Sl 78:70-72). De acordo com o texto, pode-se deduzir que Davi se destacava por sua capacidade como rei e sua atitude como pastor da nação de Israel.
O termo pastor (ro‘eh) deriva do verbo hebraico ra‘ah, que significa “pastar, apascentar, engordar, cuidar, governar, pastorear e transmitir conhecimento”.2 No Antigo Oriente Médio, essa definição era aplicada ao rei, uma vez que sua função não era apenas governar, mas também cuidar do povo. Curiosamente, as Escrituras contêm muitas referências nas quais o Senhor é apresentado como Pastor.3 Isso pressupunha que os monarcas de Seu povo deveriam agir como pastores também.
A Bíblia mostra que Deus é quem apascenta, pastoreia e governa Seu povo. Da mesma forma, na visão bíblica, o pastorado “envolve cuidado terno e supervisão cheia de atenção”.4 Assim, nota-se que Davi cumpriu essas condições. Além disso, é considerado o protótipo do verdadeiro pastor: o Messias. A diferença é que Cristo restauraria o sentido pleno do pastorado davídico (Ez 37:22, 24). Em Seu reinado escatológico, Israel e Judá serão uma só nação. Será também um pastor divino que “regerá com cetro de ferro” (Ap 19:15). Como consequência, o “poder governamental exercido pelo Pastor será de um firme caráter”.5
Acredita-se que o pastor recebe um tipo de poder por parte de Deus; portanto, deve administrá-lo segundo o modelo bíblico. Davi se destacava em suas funções como rei e pastor. De fato, ele teria sido quem se “aproximou mais do ideal bíblico de pastor-monarca”.6 Em alguns episódios, usou o “poder” para fins políticos, mas o fez como rei. Sua atitude para com o povo mostra um monarca disposto a se sacrificar para protegê-lo. Por isso, o Senhor Se referiu a ele como “um homem segundo o Seu coração” (1Sm 13:14). Essa descrição ainda é ideal para cada ministro e servo de Deus.
Davi e o poder
Embora Davi tenha cumprido com sucesso sua função como rei, expandindo e fortalecendo o reino, sua atitude pastoral em relação às pessoas sobre as quais tinha poder mostra qualidades empáticas.
Em duas ocasiões poderia ter matado Saul; no entanto, não ousou estender a mão contra ele (1Sm 24:6; 26:23). Em outro momento, absteve-se de matar Nabal, graças à intervenção de Abigail (1Sm 25:32-34). Além disso, não respondeu às ofensas de Simei; mas o perdoou (2Sm 16; 19:23). Também agiu com pureza de coração em relação a Abner, Amasa, Absalão e Mefibosete, entre outras pessoas.
Durante os primeiros anos de seu reinado, Davi foi íntegro no exercício do poder. Ellen White afirmou que “até ali, poucos reis já haviam tido, como governantes, um registro como o de Davi. […] Sua integridade tinha conquistado a confiança e lealdade da nação”.7 O pastor deve empregar o poder recebido para o bem da comunidade. Se o utiliza para satisfazer interesses egoístas, pode correr o risco de se tornar temporariamente um agente do inimigo, à semelhança de Davi.
Além disso, Ellen White acrescentou que “o poder de Davi lhe havia sido dado por Deus, mas para ser exercido apenas de acordo com a lei divina. Assim, uma vez que ele ordenasse algo contrário à lei de Deus, obedecer seria pecado”.8 Pode-se supor que tanto o pastor quanto a igreja deveriam discernir e obedecer ordens que estão em conformidade com os princípios bíblicos. Espera-se também que quem tem poder sobre o rebanho aja em harmonia com a mesma lei.
O pastor exerce um tipo de poder, independentemente da atividade que desenvolve. Sobre ele pesa uma delicada responsabilidade, especialmente sobre a maneira como usa esse poder. É possível encontrar casos em que o uso do poder desvirtua os verdadeiros propósitos. Isso pode ocorrer nas relações governante-nação, pastor-igreja, ancionato-membros, esposo-esposa, entre outras.
O poder tem sido motivo de sérias discussões e reflexões. Acredita-se que ele “se torna real na capacidade do ser humano para atuar sobre outro ser humano ou para influenciar as ações de outro ser humano”.9 Além disso, “pode ser abusivo ou destrutivo, inclusive violento, ou pode resultar em algo belo e doador de vida”.10 É preciso admitir que o poder opera entre os seres humanos de maneira relacional, por isso, não se deve ignorar seus efeitos.
Nas relações humanas existem hierarquias necessárias, inclusive, nas comunidades eclesiásticas. Espera-se que cada pessoa que assume alguma responsabilidade ou tenha algum tipo de poder o exerça à semelhança do que fez o pastor Davi em relação a Israel. A Bíblia afirma que ele “julgava e fazia justiça a todo o seu povo” (2Sm 8:15). Ellen White via o exemplo do rei como algo a ser aplicado no contexto da igreja. Ela afirmou que “os mesmos princípios de piedade e justiça que deviam orientar os líderes entre o povo de Deus nos dias de Moisés e de Davi deviam ser igualmente seguidos pelos que receberam a missão de cuidar da recém-organizada igreja de Deus na dispensação cristã”.11
Abuso de poder
Às vezes, podem ocorrer situações de abuso de poder nas comunidades eclesiásticas. De fato, “o poder religioso tem mais capacidade de corromper que o civil por sua estrutura firmemente hierarquizada”.12 Além disso, é importante refletir sobre o fato de que “é uma constante histórica e universal que todo ser humano que alcança o topo e se mantém por muito tempo nele se mimetiza com o cargo e, finalmente, torna-se difícil separar a pessoa do cargo”.13 O problema é que, embora seja de amplo conhecimento que “o poder é um potente corrosivo, […] todas as pessoas são atraídas pelo poder”.14
Embora Davi exercesse o poder de maneira reverente e íntegra, teve um episódio em que cedeu ao seu egoísmo, em seu envolvimento com Bate-Seba (2Sm 11). Nesse relato é possível encontrar alguns elementos sobre como o poder funciona: força, segredo, sentença, perdão e ordem.15
Todas as pessoas que usufruem do poder correm o risco de ser tentadas a usá-lo para preservar seu status ou agir contra aqueles que se mostram como uma ameaça.
A força é coercitiva, não persuasiva. Quanto ao segredo, a forma como agem os que têm o poder, empregando informação “secreta”, gera desconfiança entre os subordinados. Por isso, esperam que os demais se calem. A sentença, por sua vez, julga as pessoas classificando-as entre boas e más. O perdão ou a graça é empregado para dar oportunidades ou não. Finalmente, a ordem “não admite contestação […], não deve ser discutida, explicada ou posta em dúvida”.16
Davi empregou os elementos mencionados para consumar seus desejos. Em relação a Bate-Seba empregou a força. Quanto a Urias, fez uso desprezível do segredo. A sentença de morte que o soldado fiel carregou evidencia isso. O perdão próprio ou encobrimento do pecado, depois da morte de Urias, parecia se enquadrar perfeitamente em seus planos. Por outro lado, o perdão à cidade de Rabá não aconteceu. Finalmente, a ordem dada a Joabe a respeito de Urias completou seu crime.
Ellen White afirmou que depois da morte do soldado heteu, “um relatório sobre a execução de sua ordem foi enviado a Davi, mas foi tão cuidadosamente elaborado que não comprometia nem Joabe nem o rei”.17
Não se pode ignorar que o uso inapropriado do poder provoca dano a si mesmo. É provável que, em algumas ocasiões, o pastor o use mal; mas, diante da presença do Invisível nada passa despercebido.
Ellen White afirmou que “o poder exercido por todos os governantes da Terra é concedido pelo Céu. E o seu sucesso depende do uso que fizerem dessa concessão”.18 Por inferência, esse conceito pode se aplicar adequadamente ao ministério pastoral.
Em outra ocasião, ela advertiu que “o cargo de uma pessoa não a faz um jota ou um til maior diante da vista de Deus; Ele valoriza unicamente o caráter. O poder despótico que se desenvolveu, como se os cargos convertessem os homens em deuses, assusta-me. É uma maldição, não importa onde ou quem o use. Esse domínio abusivo exercido sobre a herança de Deus gerará uma aversão tão grande à jurisdição humana que produzirá um estado de insubordinação”.19
Ao observar o abuso do poder por parte dos pastores de Israel, o Senhor disse por intermédio do profeta Ezequiel: “Porei sobre elas um só pastor, e Ele as apascentará: o meu servo Davi. Ele as apascentará e será o seu pastor” (Ez 34:23). Embora o verso se refira a Jesus Cristo, de certa forma reconhece Davi como um líder ideal. Consequentemente, Deus espera que os pastores exerçam nobremente “o poder” em sua função ministerial.
O arrependimento sincero de Davi lhe conferiu maior consideração da parte de Deus. Desse ponto em diante, não se observam episódios em que ele tenha abusado do poder, mas relatos de empatia e profundo amor pelo seu povo. Os salmos são uma evidência de seu arrependimento e suas atitudes. Por essa razão, nenhuma decisão deveria ser tomada sem medir as consequências, tanto para quem a toma quanto para quem a sofre. Assim, situações lamentáveis para ambos poderiam ser evitadas.
Conclusão
O poder opera nas relações pessoais em diferentes níveis ou hierarquias. Se for usado como Davi fazia antes de seu pecado, repercutirá positivamente em favor da igreja e de quem o exerce. Por outro lado, se for utilizado para fins egoístas, terá consequências lamentáveis para quem tem o poder, para aquele que é diretamente afetado e também para os que o rodeia.
Davi foi considerado um homem segundo o coração de Deus por causa de seu arrependimento e da forma como administrava a justiça. No entanto, não pôde evitar os efeitos negativos do mau uso do poder. Isso deveria ser um aviso para todo pastor que é tentado a usá-lo para fins que não correspondem aos princípios bíblicos.
Saulo Cruz, professor da Faculdade de Teologia da Universidade Peruana União
Referências
1 Steven L. McKenzie, King David. A Biography (Nova York: Oxford University Press, 2000), p. 2.
2 Luis Alonso Schökel, “Ra‘ah”, em Diccionario Bíblico Hebreo-Español (Madri: Editorial Trota, 1999), p. 710. Ver Moisés Chávez, Diccionario de Hebreo Bíblico (El Paso, TX: Editorial Mundo Hispano, 1992), p. 584; Gerhard Kittel e Gerhard W. Bromiley, Theological Dictionary of The New Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1968), v. 6, p. 487, 478.
3 Ao menos podem ser encontrados 62 textos nos quais Deus é apresentado como Pastor.
4 W. E. Vine, Diccionario Expositivo de Palabras del Antiguo y del Nuevo Testamento (Nashville, TN: Editorial Caribe, 1999), p. 639.
5 Vine, Diccionario Expositivo, p. 761.
6 Walter Alaña, “El Ministerio Pastoral: Su Fundamento Bíblico”, em Walter Alaña e Benjamín Rojas (eds.), Ministerio Pastoral y Educación Teológica: Una Perspectiva Adventista (Ñaña, Lima: Editorial Unión, 2019), p. 52.
7 Ellen G. White, Patriarcas e Profetas (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), p. 638.
8 White, Patriarcas e Profetas, p. 638.
9 Rodney A. Werline, “Prayer, Politics, and Power in the Hebrew Bible”, em Interpretation: A Journal of Bible and Theology 68, n. 1, 2013, p. 6.
10 Werline, “Prayer, Politics, and Power”, p. 6.
11 Ellen G. White, Atos dos Apóstolos (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), p. 61.
12 Ig Valem, Ley de Acton y Pitt: Teoría del Poder. (Morrisville, NC: Editorial Lulu, 2011), p. 55.
13 Valem, Ley de Acton y Pitt, p. 39.
14 Valem, p. 282.
15 Canetti, Masa y Poder (Barcelona: Muchnik Editores, 1981), p. 352-373.
16 Canetti, Masa y Poder, p. 379.
17 White, Patriarcas e Profetas, p. 638.
18 Ellen G. White, Profetas e Reis (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2021), p. 292.
19 Ellen G. White, El Ministerio de las Publicaciones (Buenos Aires: Asociación Casa Editora Sudamericana, 1999), p. 141.