Qualquer teoria substrativa da encarnação, isto é, que afirme que através da encarnação Cristo teve sua divindade diminuída, deve ser rejeitada, porque é antibíblica e conspira contra a nossa salvação. Ele era Deus no mais alto sentido antes da concepção em Maria, e continuou a sê-lo depois. Justamente por isso, pôde Ele, enquanto esteve entre nós, transmitir a revelação salvífica de Deus.
São João 1:1-18, o conhecido prólogo do quarto Evangelho, tem sido considerado por alguns expositores bíblicos a chave para uma correta compreensão da mensagem joanina do Evangelho. João nos oferece, na parte inicial de seu livro, mais do que uma simples introdução. O prólogo é, na realidade, um bem elaborado sumário de tudo aquilo que é exposto a seguir. Profundos temas essencialmente cristológicos são referidos de forma direta, objetiva, para serem, no devido curso da narrativa, ampliados e abordados segundo o propósito do escritor.
Uma tentativa de resumir substancialmente a mensagem do quarto Evangelho, possivelmente resultaria na seguinte afirmação: na pessoa e obras de Jesus Cristo temos de forma absoluta e definitiva a revelação salvífica de Deus à raça humana. Este é sem dúvida o tema predominante do evangelho, e naturalmente o prólogo confirma este fato. As palavras de abertura são um categórico enunciado da divindade de Jesus, de Seu eterno companheirismo com o Pai, e de Seu status de Criador (versos. 1-3); na seqüência, Ele é apresentado como a vida e a luz que “ilumina a todo homem” (versos. 4-9); mencionam-se então as duas possíveis atitudes humanas para com a revelação divina em Jesus: rejeição, em resultado da incredulidade, ou aceitação, em virtude da fé (versos. 10-13). A seguir, o evento histórico da encarnação é explicitamente referido, com uma clara menção de seu efeito salvífico: “Vimos a Sua glória, glória como do Unigênito do Pai.” (verso. 14.) Finalmente, Jesus é apresentado como a culminância de todas as bênçãos da salvação (versos. 15-17). As palavras finais do prólogo, são: “Ninguém jamais viu a Deus: o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é que O revelou” (verso 18).
Em lugar de “Deus unigênito”, como aparece na Almeida Revista e Atualizada, outras versões registram “Filho unigênito”, neste texto. Por razões que não devemos aqui abordar, cremos que a primeira expressão deve ser preferida e adotada.
Meditemos um pouco neste texto, e observemos como a mensagem da revelação de Deus em Jesus se difunde no corpo do Evangelho.
Jesus é Deus revelado
É evidente que em S. João 1:18, o evangelista liga dois predicados previamente aplicados a Jesus — theos, Deus, no verso 1; e monogenes, unigênito, ou melhor, único.1 No verso 14, para realçar a singularidade e intimidade do Seu relacionamento com Deus, Ele é monogenés theos, Deus o Filho único; e, como tal, somente Ele viu a Deus e pode revelá-Lo. Aqui, o verbo ver horao, no tempo perfeito, aponta para além do simples ato de ver com o olho físico, e envolve a ideia de um conhecimento perfeito, completo, de Deus. As palavras de S. Mateus 11:27 vêm à lembrança: “Ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar.”
Moisés, que é referido no verso 17, contemplou a Deus (Núm. 12:8). Mas João diz que “ninguém jamais viu a Deus”. É em seu ser essencial que Deus jamais foi visto por quem quer que seja, anjos ou homens. Visões de Deus foram dadas aos profetas, mas todas elas foram parciais. As teofanias do Antigo Testamento, por mais sublimes e apoteóticas que tenham sido, não puderam revelar o ser essencial de Deus. Um privilégio Moisés não pôde ter: ver a face de Deus (Êxo. 33:20). Somente Cristo, que participa essencialmente da divindade do Pai, tem visto a Deus. E desde que Ele Se fez carne (verso 14) sem perder Sua condição divina, pode igualmente revelar Deus ao homem. “Somente o Deus-homem pode plenamente revelar Deus ao homem. Ele é Deus e é homem e pode agir, e de fato age, como intérprete de Deus ao homem.”2
“Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta”, é o anelante pedido de Filipe (S. João 14:18). Quanta verdade tal pedido expressa! O discípulo afirma que ver o Pai é tudo quanto se faz necessário. Ver a Deus é, no contexto deste evangelho, o segredo para a vida eterna. Poderia alguém desejar mais? Outra coisa: Filipe acredita que Jesus pode mostrar o Pai. Daí o pedir-Lhe.
Mas, de uma coisa, Filipe não se apercebe: mostrar o Pai tem sido o que Jesus tem feito desde o princípio. Entretanto, ao afirmar este fato, Jesus o faz de forma surpreendente: “Há tanto tempo estou convosco, e não Me tens conhecido?” (verso 9). Jesus não Se esquiva ao pedido do discípulo. Muito menos tenta Ele atrair para Si a atenção que o discípulo tem, voltada para o Pai. Bem ao contrário. Ele deseja que Filipe mantenha o pensamento de que uma visão do Pai é imprescindível e suficiente. Mas Ele não esconde Seu desapontamento face ao pedido. Não ter visto ainda o Pai é desconhecer ainda o Filho. É possível que depois de tanto tempo com Jesus, tratando das coisas de Jesus, alguém ainda não O conheça? Parece que sim, e este mal pode acometer-nos.
Mas o desapontamento de Jesus não se prende ao simples fato de não ser ainda conhecido. Isto teria sabor de orgulho ferido, e não seria próprio de Jesus. Ele almeja que os discípulos O conheçam para que assim conheçam o Pai. “Quem Me vê a Mim, vê o Pai”. Conhece-se o Pai por se conhecer o Filho. Não é o caso de que conheçamos o Filho e então nos preparemos para o passo seguinte, que é conhecer o Pai. Não. Conhece-se o Pai no próprio ato de se conhecer o Filho. Não é um conhecimento que se acumula ao outro; menos ainda, que Substitua o outro. É um conhecimento que se identifica com o outro, que significa o outro.
Não podemos entender este fato a não ser com base na unidade essencial de Jesus com Deus. “Eu e o Pai somos um” (S. João 10:30). “Eu estou no Pai e o Pai está em Mim” (S. João 14:10). Jesus participa da essência e natureza divinas do Pai, de modo que Ele pode revelá-Lo através de uma revelação de Si mesmo. Assim, é inegável que a manifestação de Jesus ao mundo é a própria manifestação de Deus, e conhecer a Jesus é conhecer a Deus. “Aqui alcançamos a verdade central, do quê tudo mais depende… Tudo o que está acontecendo deve ser lido como uma história não de Deus e Cristo, mas de Deus em Cristo.”3 É por esta razão que Jesus havia dito um pouco antes do pedido de Filipe: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por Mim” (S. João 14:6).
Este vir ao Pai não é meramente um dia ir para o Céu e viver com Deus. É evidente que tal privilégio só é possível através de Jesus. Mas a idéia aqui é no sentido de conhecer o Pai e ter de volta aquilo que de mais precioso o pecado nos furtou: a comunhão com Ele. Evidência disto são as palavras proferidas em seguida por Jesus: “Se vós Me tivésseis conhecido, conheceríeis também a Meu Pai. Desde agora O conheceis e O tendes visto” (verso 7). “Cada aspecto do caráter de Jesus, revela-nos um aspecto do caráter do Senhor do Céu e da Terra. Cada experiência através da qual Jesus passou em Sua vida com os homens, sugere-nos uma experiência através da qual nosso Pai está passando conosco, Seus filhos.
A cruz do Calvário é um quadro do sacrifício passado e presente do nosso Deus, conforme Ele sofre conosco e por nós.4 O túmulo aberto é para nós símbolo de Seu amor triunfante, mais forte do que o mundo, o pecado e a morte. A corporificação de Si próprio em Seu Filho, feito em todos os pontos igual a nós mesmos, atesta o parentesco essencial entre Ele e nós.”5
A encarnação não exclui a divindade
No diálogo com Nicodemos, Jesus Se apresentou como o autêntico intérprete de Deus, quando disse: “Nós dizemos o que sabemos e testifica o que temos visto” (S. João 3:11). Só Ele pode revelar-nos Deus, porque só Ele tem visto a Deus e O conhece. Ele não é apenas “Mestre vindo da parte de Deus”, como quis o doutor da lei (verso 2), mas Deus enviado como Mestre. Sua origem e condição divina são atestadas no verso 13: “Ora, ninguém subiu ao Céu, senão Aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do homem que está no Céu”.
A referência aqui não é à ascensão, fato que ocorreria só mais tarde. Essa declaração deve ser entendida dentro de seu contexto. O assunto não é o evento histórico da ascensão, mas o papel revelacional de Deus, que o Filho cumpre em Seu ministério terrestre. Cristo pode falar de ‘ ‘coisas celestiais’ ’ (verso 12) porque sabe o que essas coisas são e as tem visto (verso 11). Ele é o único que “subiu ao Céu”, isto é, que penetrou o conhecimento destas coisas, e que “desceu do Céu”6, isto é, que entrou em comunhão conosco pela encarnação, para trazer-nos o conhecimento destas coisas.
Céu, aqui, tem sentido espiritual, antes que local ou geográfico, e indica a única posição da qual o conhecimento completo e verdadeiro sobre Deus pode ser auferido e trazido. “Ninguém tem entrado em comunhão com Deus e possui desta um conhecimento intuitivo de coisas divinas a fim de revelá-las aos outros, exceto Aquele a quem o Céu foi aberto e que habita lá neste mesmo momento.”7 O paralelismo com o capítulo 1:18 é óbvio:
1:18
“Ninguém jamais viu a Deus”
“O Deus
unigênito”
“Que está no seio do Pai”
“É quem O revelou”
3:13
“Ninguém Subiu ao Céu”
“O Filho do
Homem”
“Que está
no Céu”
“Desceu do Céu”
Alguns colocam em dúvida a originalidade da expressão “que está no Céu”, supondo tratar-se de uma posterior interpolação ao texto joanino. De fato, uns poucos manuscritos gregos contêm esta frase. Mas o autor deste estudo está inclinado a crer, juntamente com alguns comentaristas, que a omissão desta frase num bom número de manuscritos, bem como a alteração dela para “que estava no Céu”, em algumas antigas versões, objetivaram antes de tudo remover a dificuldade naturalmente por ela criada. É mais fácil, no processo de algumas gerações, uma afirmação dessa natureza, na colocação em que se encontra, ser eliminada, do que acrescentada. Sua originalidade não é incoerente com o que estamos vendo e, portanto, não estranha à teologia de João. Ademais, o verbo eimi (ser/estar) é empregado no presente do indicativo em outras passagens, numa conotação semelhante à de 3:13, onde o particípio presente aparece a exemplo de 1:18.
7:34 — “Haveis de Procurar-Me, e não Me achareis; também onde Eu estou vós não podeis ir”. (Veja também o verso 36.)
11:26 — “Onde Eu estou ali estará também o Meu servo.”
14:03 — “… voltarei e vos receberei para Mim mesmo, para que onde Eu estou estejais vós também.”
14:11 — “Eu estou no Pai.” (Com o verbo subentendido).
17:24 — “Pai, a Minha vontade é que onde Eu estou, estejam também comigo os que Me deste…”
Estes exemplos do emprego de “Eu estou ”, apontam para a realidade da íntima e perfeita comunhão do Filho com o Pai, comunhão esta que não foi alterada pelo milagre da encarnação: o Filho, enquanto na Terra, continua sendo um com o Pai (10:30). “Estou no Pai e o Pai em Mim” (14:11), disse Ele. Esta é uma comunhão entre iguais (1:1 e 2), e normatiza uma experiência de comunhão para os seguidores de Cristo. No quarto Evangelho, o verdadeiro discípulo é aquele que, pelo ato de ver e crer, entra com Jesus numa comunhão exemplificada pela do Filho com o Pai. Aqui, uma comunhão entre divinos; ali, entre humanos, mas plena, tão intensa que, como Jesus pôde dizer “Eu e o Pai somos um”, o discípulo poderá igualmente dizer: “Eu e meu Salvador somos um”.
Tal comunhão restaura de fato o relacionamento que existia entre Deus e o homem antes da Queda. “A fim de que todos sejam um; e como és Tu, ó Pai, em Mim e Eu em Ti, também sejam eles em nós” (17:21). Entra o discípulo em comunhão com Deus ao entrar em comunhão com Jesus, porque, ao Se encarnar Ele, tornou-Se um conosco, sem deixar de ser um com Deus. Esta comunhão se efetiva quando nos apoderamos do conhecimento salvífico de Deus, transmitido pelo Filho: “Sabemos que o Filho de Deus veio e nos deu entendimento para conhecermos o Verdadeiro. E estamos no Verdadeiro, nós que estamos em Seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna” (I S. João 5:20, versão do Centro Bíblico Católico de São Paulo).
Assim, “que está no Céu”, de 3:13, parece-nos condizente com o que João ensina em seus escritos e, portanto, autêntico. A expressão envolve a idéia da natureza divina de Jesus coabitando com Sua natureza humana, e aponta para a Sua igualdade com Deus, igualdade que Ele reteve enquanto na Terra (5:18). Qualquer teoria subtrativa da encarnação, isto é, que afirme que através da encarnação Cristo teve Sua divindade diminuída, deve ser rejeitada, porque é antibíblica e conspira contra a nossa salvação. Ele era Deus no mais alto sentido antes da concepção em Maria, e continuou a sê-lo depois. Justamente por isso, pôde Ele, enquanto esteve entre nós, transmitir a revelação de Deus, a revelação que salva.
Este é, como vimos, o pensamento central de 1:18. Mas, se a encarnação Lhe furtou um milímetro que seja de Sua igualdade com Deus, somos deixados a tatear nas trevas da ignorância para com Deus e, conseqüentemente, estamos perdidos.
Isaías 14:13 e 14 declara que o filho da alva, Lúcifer, ambicionou subir ao Céu e ser semelhante ao Altíssimo. Entendemos que tal ambição se manifestou no querubim antes de sua expulsão do Céu. Em outras palavras, ele estava num local a que chamamos Céu; todavia, ambicionando subirão Céu. A conclusão lógica é que, nesse texto, subir ao Céu significa participar da igualdade com Deus. Lúcifer não foi além de sua pretensão. Mas o que ele cobiçou pertence a Cristo por direito. “Ninguém subiu ao Céu” senão Ele.
Fé discerne Sua glória
A experiência de Moisés, permanecendo quarenta dias no monte com Deus, e descendo em seguida para transmitir a vontade de Deus a Israel, é um possível background velho testamentário do quadro da revelação de Deus em Jesus Cristo no quarto Evangelho. Moisés é mencionado várias vezes nesse livro, e no interesse deste estudo, duas delas são importantes: no prólogo, imediatamente antes de 1:18, e no diálogo com Nicodemos, imediatamente após 3:13.
Podemos imaginar que a glória na face de Moisés, quando ele desceu da presença de Deus (Êxo. 34:29-35), fosse tipológica da glória divina de Jesus, manifestada quando Ele desceu do Céu, isto é, durante Seu ministério terrestre. A glória em Moisés deve ser contrastada com a glória em Jesus. Moisés tinha tido somente 40 dias de comunhão com Deus e isto lhe fez brilhar a face. Jesus estava com Deus, ou no seio do Pai, desde a eternidade, e pôde manifestar a glória que não é somente uma com a glória do Pai (17:5), mas é a própria glória do Pai a Ele outorgada (versos 22 e 24).
A glória na face de Moisés teve de ser velada por amor de Israel; a glória do Filho foi velada pelo véu de Sua carne (Heb. 10:20) por amor de nós. Israel havia pecado contra Deus no deserto, adorando o bezerro de ouro (Êxo. 32) e, portanto, não estava em condição de contemplar a glória de Deus em Moisés. O problema não era a glória na face de Moisés, mas o pecado do povo. Por causa dele, não podiam contemplá-la. Era mais fácil, todavia, cobrir com véu apenas um rosto, do que milhares ou milhões deles. Assim o véu foi colocado em Moisés. O véu na face de Moisés equivalia a cada rosto em Israel estar coberto com véu.
O mesmo fato ocorre na realidade evangélica. Aqueles que persistiram na incredulidade e no pecado não puderam ver a glória de Deus em Jesus, e discerni-Lo como Deus, deixando assim de usufruir o conhecimento salvífico de Deus. Quando Jesus, explicitamente, afirmou Sua divina natureza e condição, bem como Sua unidade com o Pai, Seus detratores tentaram matá-Lo (5:18; 10:30-33). Olhando para Ele, outra coisa não podiam divisar senão o véu de Sua carne, isto é, Sua condição humana. “…Te apedrejamos,… pois sendo Tu homem, Te fazes Deus a Ti mesmo” (verso 33). Quando Jesus manifestou visivelmente Sua glória no jardim (18:6), persistiram em sua incredulidade e O levaram à cruz.
Paulo diz que até agora um “véu está posto sobre o coração deles”, porquanto, rejeitaram a Jesus como Senhor. “Quando, porém, algum deles se converte ao Senhor, o véu lhe é tirado” (II Cor. 3:15 e 16). Estas palavras não se aplicam apenas aos judeus, mas a todo que não reconhece a divindade plena de Jesus. Mas, dos que O aceitam, Paulo afirma, incluindo-se entre eles: “E todos nós com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito” (verso 18). Para o grande apóstolo, o crente contempla, pela fé, a glória do Senhor agora, embora “como um espelho, obscuramente”; mas no dia de Sua volta “veremos face a face” (I Cor. 13:12).
Em S. João o quadro é o mesmo. No dia da consumação escatológica, os que creram terão a visão completa da glória de Jesus. “Pai, a Minha vontade é que onde Eu estou, estejam também comigo os que Me deste, para que vejam a Minha glória que Me conferiste, porque Me amaste antes da fundação do mundo” (17:24). A razão por que os remidos terão este privilégio é declarada em seguida: eles conheceram o Pai em Jesus, coisa que o mundo não fez (versos 25 e 26).
Mas tal privilégio pode e deve ser desfrutado agora (1:14). Fé entra além do véu e torna Sua glória apreensível. Com efeito, desde a entrada do pecado neste mundo e até que ele seja dele extirpado, fé tem sido o meio apontado para o homem contemplar a Deus e para Ele retornar. Mas a fé não seria de valor algum se Deus mesmo não tivesse tido a iniciativa de procurar o homem. Tal iniciativa divina se tornou efetiva na encarnação. “O Filho do homem veio procurar e salvar o perdido” (S. Luc. 19:10). Por amor de nós, cobriu-Se Deus com o véu da carne humana, pois somente assim poderíamos conhecer a Deus e obter a vida eterna (S. João 17:3).
Resumindo, a encarnação foi a maneira que Deus encontrou para manifestar-Se a Si mesmo aos pecadores. Este é um fato paradoxal. Enquanto Se oculta, Deus Se revela. Cristo veio ao mundo não na glória e majestade próprias de Deus, mas na forma de um humilde servo. Durante o tempo em que Ele estava na Terra, a glória divina estava oculta, velada na carne humana. Todavia, existe uma ocultação e revelação simultânea em Jesus. A revelação de Deus através de Cristo é possível somente porque Deus Se ocultou em carne humana. Aqueles que exercem fé, comprovam este fato e obtêm vida eterna. “A vontade de Meu Pai é que todo homem que vir o Filho e nEle crer, tenha a vida eterna” (6:40).
Fé reconhece Sua divindade
Se fé sem a encarnação nada é, encarnação sem fé presente no homem não pode alcançar seu propósito revelacional. Àqueles que não creram, o ministério de Jesus, que culminou na cruz, foi um escândalo e pedra de tropeço (I Cor. 1:23). João registra que, quando a multidão ouviu o discurso de Jesus sobre Seu sacrifício em favor do mundo, muitos ficaram escandalizados e O abandonaram (S. João 6:60 e 66). Jesus então ligou Sua condição de humilhação à Sua divina posição, dizendo: “Isto vos escandaliza? Que será, pois, se virdes o Filho do homem subir para o lugar onde primeiro estava?” (versos 61 e 62). Mais uma vez, Jesus não tem em vista a Sua ascensão literal ao Céu como um evento isolado de outros de natureza salvífica.
É, aqui, significado o momento de Sua glorificação que, no contexto do quarto Evangelho, ocorre na crucifixão e ressurreição. O evento histórico da ascensão seria testemunhado apenas por crentes, mas o ato de Jesus ser levantado na cruz seria notório a todos (12:32). Se eles se escandalizavam com um discurso, muito mais quando chegasse Sua hora suprema.
Em meio à generalizada deserção, aqueles que creram, tiveram uma especial revelação, e puderam juntar-se a Pedro em sua confissão: “Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras de vida eterna e nós temos crido e conhecido que Tu és o Santo de Deus” (versos 68 e 69). Assim, a manifestação de Deus na humanidade de Jesus se tornou efetiva através de um elemento vital, plantado por Deus no homem: a fé. A medida da manifestação divina de Jesus ao homem depende da medida de fé no homem.
Neste ponto, podemos concordar com Albercht Ritschl, quando declara que a “afirmação de Sua divindade é uma estimativa, feita por crentes, da validade de Jesus a eles; não podem eles prová-lo a quem não possui o senso de valor de Cristo como Seu Salvador.’’8 Cristologia, o estudo da pessoa de Cristo, e soteriologia, o estudo da salvação, são, aqui, mutuamente dependentes. Somos salvos porque temos um Salvador divino e humano, enquanto reconhecemos Sua divindade porque cremos e somos salvos.
No Evangelho de João, os verdadeiros discípulos são aqueles que podem discernir a divina origem de Cristo. É verdade que tal percepção alcança seu clímax após a ressurreição, mas, desde o princípio de Seu ministério, neles se fez presente a fé, ao ponto de reconhecê-Lo como Filho de Deus (1:49) e contemplar Sua glória (2:11).
Fé e visão aparecem igualmente dependentes uma da outra. Crer é o meio, por um lado, para que alguém possa ver a glória de Deus (1:40); por outro lado, fé é a positiva reação à experiência de ver (1:50). Isto é particularmente verdade com respeito aos milagres que os discípulos testemunharam. Tais milagres são semeia, sinais de Sua glória (2:11). Conforme o ministério terrestre de Jesus — Suas palavras, Suas obras — é cumprido, o revelar de Seu próprio ser origina um crescente de fé que culmina na confissão de Tomé: “Senhor meu e Deus meu!” (20:28). Fé salvífica em Jesus é um dom divino que, a exemplo do dom do Espírito, alcança Sua culminância “somente após a ressurreição. Isto é visto na mais completa profissão de fé no Evangelho.’’9
Conclusão
Temos tocado de leve o mais profundo tema do Evangelho: a revelação de Deus em Jesus Cristo. Tentamos observar também as implicações desta gloriosa verdade para a nossa salvação. Cinco pontos capitais jamais deveriam ser esquecidos:
1. Vida eterna é, antes de tudo, o perfeito conhecimento de Deus (17:4). Jesus não somente possui tal conhecimento, mas Ele mesmo é a expressão, a personalização deste conhecimento. Isto se deve ao fato de que Ele é Deus na mesma condição do Pai — Ele é um com o Pai. Conseqüentemente, é apenas meia-verdade o afirmar que Jesus possui vida eterna. É mais do que isto — Ele é vida eterna (I S. João 1:2; 5:20; S. João 11:25; 14:6); portanto, “aquele que tem o Filho tem a vida; aquele que não tem o Filho de Deus não tem a vida” (I S. João 5:11 e 12).
2. Jesus, sem perder um jota ou um til de Sua divindade, tornou-Se homem (1:14). Isto Lhe dá condição de, revelando-Se ao mundo, revelar Deus ao mundo, para que o homem seja salvo.
3. A encarnação, mais do que aproximar Jesus de nós e torná-Lo um de nós, tomou-O um conosco, e isto para sempre. Assim como a encarnação não diminui Sua divindade, igualmente Seu retorno à direta presença de Deus não O tornou menos humano que nós. Diante de Deus, temos Alguém humano como nós, intercedendo por nós, enquanto diante de nós, pela ministração do Espírito Santo e o testemunho das Escrituras, temos Alguém não menos divino do que Deus, comunicando-nos o conhecimento salvífico de Deus. Enquanto conhecemos o Pai em Seu Filho, Deus nos conhece a nós em Jesus. Isto significa sentir intensamente o Seu amor, e desfrutar profundamente do conforto e segurança de Sua salvação.
4. A fé é o meio divinamente apontado para recebermos todas estas bênçãos. (3:16). Elas nos são concedidas gratuitamente em Jesus, “o Amado” (Efés. 1:6). União com Cristo, portanto, é vital: “Sem Mim nada podeis fazer” (S. João 15:5). Esta união só é possível pela fé. “Nós somos completos nEle, aceitos no Amado, somente se permanecermos nEle pela fé.”10
5. Fé e visão, a apreensão da revelação divina em Jesus, são mutuamente dependentes. Porque cremos, vemos; e, porque vemos, cremos. Nessa mutualidade, o conhecimento salvífico de Deus se efetiva em nós, e nossa união com Cristo se torna uma realidade. “É somente através de um correto entendimento da missão e obra de Cristo que a possibilidade de estarmos completos nEle e aceitos no Amado, é colocada ao nosso alcance.”11
Este ponto é particularmente abordado no quarto Evangelho. No transcurso da narrativa, diferentes graus de visão e fé podem ser notados, desde o ponto mais baixo, o da não percepção e da total incredulidade, até o mais alto, o de ver e crer profundamente:
a. NÃO VER E NÃO CRER — 6:30; 9:39; 12:37-40. Insistência em não conhecer o que se passa, permanecendo na incredulidade.
b. VER E NÃO CRER — 6:36. Mesmo com as mais claras evidências a incredulidade persiste
c. VER E CRER SUPERFICIALMENTE — 2:23; 4:48. A visão ainda é inadequada, pois não passa de mera visão ocular. Igualmente, este tipo de fé está longe do ideal.
d. VER E CRER PROFUNDAMENTE — 6:40; 20:8, 28 e 29. Visão ocular e visão espiritual, interna, transcendente, estão juntas. A fé alcança seu ideal.
e. NÃO VER E ASSIM MESMO CRER PROFUNDAMENTE — 20:29. Aqui está o máximo ideal da fé. A visão ocular, que pode redundar numa fé superficial (ponto 3), está ausente. A visão transcendente, que se junta à visão ocular no ponto 4, redundando em fé profunda, irrestrita, evidentemente continua, bem como a fé ideal. Cristo fala daqueles que atingirão o clímax da fé numa época em que Sua presença visível na Terra não será mais notada. Pessoas que crerão nEle porque permitirão que a invisível ministração do Espírito Santo (3:8), que o mundo não vê nem conhece (14:17), tanto quanto a operação interna da Palavra (17:20), Palavra que o mundo rejeita ouvir (5:37; 8:43), sejam eficazes em sua vida.
A experiência de Tomé abre espaço para Jesus expor o que Ele almeja constatar na vida de cada seguidor Seu: uma fé amadurecida, que dispensa a visão ocular de Deus, que não impõe necessárias teofanias e fatos sobrenaturais, nem milagres, para se fazer presente. O último ponto da escalada do ver e crer. “Bem-aventurados aqueles que não viram e creram.”
Você, meu irmão, pode participar desta bem-aventurança. Deseja-o? Oxalá que sim!
Referências:
1. Quanto a ser único e não unigênito, o melhor sentido de monogenes, veja a excelente matéria do Prof. Pedro Apolinário “Cristo — o Unigênito Filho de Deus”, publicada na Revista Adventista. julho de 1978, págs. 12 e 13.
2. A. T. Robertson, The Divinity of Christ in The Gospel of John (Nova Iorque: Fleming H. Revell Company, 1916), pág. 45. O verbo rendido revelar, em 1:18, é exegéomai, de onde vem a palavra exegese Daí a colocação “intérprete” na aludida afirmação do Dr. Robertson.
3. J. H. Bernard, A Criticai e Exegetical Commentary of the Gospel According to St. John (Edinburgh: T. & T. Clark, 1953), vol. I, pág. 148.
4. Comentamos o sofrimento de Deus por causa do pecado em “As Lágrimas de Deus”, Revista Adventista, janeiro de 1987, págs. 8-11.
5. H. S. Coffin, Some Christian Convictions (New Haven: Yale University Press, 1915), págs. 135 e 136.
6. Os verbos anabaíno e Katabaíno (subir e descer), no Evangelho de São João, são geralmente usados no contexto da missão revelacional e salvífica de Jesus no mundo.
7. F. L. Godet, Commentary on the Gospel of John (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1955), vol. I, pág. 390.
8. Cit. em Coffin, op. Cit., pág. 115.
9. R. E. Brown, The Gospel According to John, caps. I-XII (Garden City: Doubleday Company, Inc., 1966), pág. 531.
10. E. G. White, Seventh-day Adventist Bible Commentary, vol. VII, pág. 933.
11. Idem, vol. VI, pág. 1113.
JOSÉ CARLOS RAMOS — SALT/IAE