A carta do apóstolo Paulo a Filemom está como que escondida no meio de grandes livros do Novo Testamento. Contudo, por tratar-se de única no gênero, que sobreviveu e chegou aos nossos dias, ela é uma gema preciosa de instrução para os cristãos modernos. É um apelo pessoal de Paulo a Filemom, a fim de que este recebesse de maneira cristã e amorável um escravo fugitivo que se convertera, e agora estava a seu serviço durante sua prisão em Roma. Em sua argumentação, o apóstolo chega ao ponto de afirmar que se porventura o fugitivo devesse alguma coisa a seu dono, Paulo mesmo restituiria.

Várias lições podem ser tiradas do episódio. Lutero, por exemplo, via nesta epístola um exemplo da grande intercessão de Cristo por nós. Assim como Paulo intercedeu em favor de Onésimo, no dizer do grande reformador, “nós somos os Onésimos dEle”.1

Há, também, outros que têm visto a mensagem da epístola como significando o comportamento cristão diante da escravatura, ou a amorosa simpatia de um apóstolo por um escravo. A verdade, porém, é que em virtude de ser uma carta sui generis, várias direções podem ser tomadas; e se levarmos para o campo prático do cristianismo, chegaremos a corroborar com os 25 versículos da carta, velhos e inamovíveis princípios do evangelho e do ensino de Cristo. Pois não era propósito do escritor apresentar novos conceitos, teorias ou doutrinas; mas, num chamado pessoal ao leitor ou eventuais leitores, levá-los a praticar conceitos já estabelecidos.

Neste artigo nos limitaremos a explorar as evidências internas do livro, a respeito da atividade social e comunitária da Igreja, bem como qual direção tomar diante das necessidades sociais a serem atendidas.

Como cristãos, em alguns momentos estamos numa encruzilhada em nossa ação pe-las causas sociais e assistenciais. Ou optamos pelo modelo da chamada Teologia da Libertação, que horizontaliza a atividade cristã diante dos vários problemas que afligem o ser humano, ou decidimos fazer como outros, que apenas acham que a Escatologia irá resolver todos os problemas do mundo. Para estes, seria uma demonstração de falta de confiança em Deus, tentar fazer alguma coisa para reverter o quadro de miséria, injustiça e de desprezo aos valores humanos.

Existe ainda uma terceira via, assumida por cristãos e não cristãos, que é o paternalismo e o assistencialismo do tipo “dar um peixe para o pobre, em lugar de ensiná-lo a pescar”. Aliás, isso é feito com certa freqüência com o intuito de acalmar a consciência, sem preocupação pelo verdadeiro amor cristão.

Mas, qual seria o procedimento correto do cristão diante dos problemas sociais? Contemplação? Isenção? Paternalismo? Assistencialismo? Participação nos moldes marxistas?

A carta a Filemom possui em sua análise contextual lampejos de como e por que deve agir um cristão, diante da conjuntura social e política.

Vejamos alguns pontos:

1. Envolvimento de todos

O primeiro ponto para uma compreensão de que a Igreja deve agir coerentemente, é a descoberta de que a preocupação do apóstolo Paulo era a de que ele queria um envolvimento não apenas por parte de Filemom, no problema do escravo Onésimo, mas de toda a comunidade cristã.

No prólogo da epístola, é dito que ela é endereçada a Filemom, à Afia e a Árquipo (que, provavelmente, eram respectivamente a esposa e o filho de Filemom) “e à igreja que está em tua casa” (vs. 1 e 2).

Na época, era comum os cristãos reunirem-se em casas exatamente por faltarem construções próprias para adoração, louvor e pregação. O autor está, portanto, dirigindo seu apelo não somente a Filemom. Paulo confiava em sua obediência e sabia que estaria disposto a fazer mais do que se lhe havia solicitado (v. 21). O contexto sugere que a carta deveria ser apresenta também à família e à igreja, a fim de que o perdão e restauração resultassem plenos para Onésimo.

É apropria-do concluirmos que a tarefa de ajudar é para todos. O desafio de ajudar o próximo não começa com o governo ou com a Igreja, institucionalmente falando. Cada um deve fazer sua parte dentro da grande tarefa de minimizar o sofrimento alheio. Fazer isso significa seguir o autor do cristianismo (Atos 10:38).

2. Ação equilibrada

A maneira como foi tratada a questão nos mostra que o cristianismo não é escapista, muito menos as suas doutrinas.

Às vezes, algumas pessoas utilizam os argumentos do sacerdote e do levita da pará-bola do Bom Samaritano, para fugirem de suas responsabilidades sociais. Outros raciocinam que somente quando Jesus voltar é que os problemas do mundo serão plenamente resolvidos, e isso é verdade. Contudo, a volta de Cristo deve ser a alegre concretização de nossas esperanças, sem nos fazer esquecer de que, enquanto estamos no mundo, temos de praticar boas ações, frutos de nosso relacionamento com Ele, e da salvação em nós operada por Ele (Mat. 25:31 a 46).

O melhor caminho, neste caso, não é horizontalizar o evangelho, tendo uma Igreja ligada apenas às questões sociais; nem verticalizá-lo, apenas sonhando com a vida futura, vivendo inutilmente no mundo. O caminho é equilibrar as duas linhas de ação conjunta entre fé e prática.

Paulo resolveu um problema que estava ao seu alcance, não permitindo que Onésimo escapasse de seu dever diante de Filemom, mas fazendo-o voltar para acertar as contas com seu patrão.

“Cristianismo nunca é escape; é sempre conquista.”1

3. Primeiro o indivíduo. Depois o sistema

O cristianismo transforma as pessoas, antes dos sistemas políticos. Às vezes não compreendemos, ou mesmo não aceitamos, o fato de os escritores bíblicos não combaterem com mais veemência a escravatura, promovendo assim uma campanha abolicionista. A verdade é que estamos, há muitos anos, distantes do assunto. A escravatura chegava a ser racionalizada e explicada com o argumento de que ela fazia parte da “natureza das coisas” e que “certos homens deveriam ser escravos… para servirem a uma classe mais alta de homens”.2

Na época de Paulo, os escravos eram “parte de uma estrutura social, e eram considerados membros da família de seu senhor. Entre os anos 146 a.C. e 235 a.D., a proporção de escravos para homens livres é dito ser de três para um”.3 Mudar isso não era tarefa que fosse desempenhada a curto prazo, ou por algum sonhador utópico.

E interessante notar ainda, que o objetivo primário da Igreja era pregar o evangelho, proporcionando a transformação de vidas, abrindo, dessa maneira, o caminho para transformações sociais.

Ellen White afirma: “Não era obra do apóstolo subverter arbitrária ou subitamente a ordem estabelecida da sociedade. Tentar isto seria obstar o sucesso do evangelho. Mas ele ensinava os princípios que atingiam o próprio fundamento da escravatura, os quais se postos em execução, minariam seguramente todo o sistema… O cristianismo cria um forte laço de união entre o senhor e o servo, o rei e o súdito… Foram lavados no mesmo sangue, vivificados pelo mesmo Espírito; e são feitos um em Cristo Jesus.”* 1 2 3 4 4 5 1 2 3 6

Há duas coisas mais que não devem ser esquecidas: a primeira é que o fato de Deus tolerar alguma coisa (no caso, a escravatura) não significa que Ele a aprova. E, em segundo lugar, a epístola a Filemom e outras passagens a respeito do relacionamento entre senhores e escravos lançaram uma semente que germinou, culminando com a liberdade e com o desprezo que o mundo civilizado possui em relação à escravatura em suas várias formas.

Assim, a transformação de vidas individuais deve ter prioridade aos sistemas. É muito provável que o fracasso de sistemas políticos e governos ocorra hoje exatamente porque as tentativas de mudanças estão fundamentadas numa estrutura estabelecida por homens vis, egoístas, e não transformados à semelhança de Jesus Cristo.

4. Motivação correta

A carta a Filemom mais uma vez levanta as questões tão significativas: Por que fazemos o bem? Qual a força que impulsiona nossas ações? No elogio feito a seu destinatário, o apóstolo esclarece o que levaria os cristãos a agirem no sentido de ajudar aos necessitados: “estando ciente do teu amor e da fé que tens para com o Senhor Jesus e todos os santos, para que a comunhão da tua fé se tome eficiente, no pleno conhecimento de todo o bem que há em nós, para com Cristo” (vs. 5 e 6).

Nesses dois versos aparecem duas expressões preponderantes:

“Amor e fé para com o Senhor Jesus…” Esta é a questão: os cristãos fazem o bem por amor a Cristo, como se estivessem fazendo para Ele mesmo. Não para serem salvos, pois no juízo nem saberão que fizeram (Mat. 25:37 a 40).

“A comunhão da tua fé…”. A palavra grega traduzida como “comunhão” é koinonia, que tem vários significados. Entre eles, o de compartilhar generosamente. “Paulo está pedindo a um homem generoso para ser mais generoso ainda… Isto significa que por nos esvaziarmos, nós somos preenchidos com Cristo. Significa também que estarmos com as mãos abertas e o coração generoso é a mais segura maneira de aprender mais e mais das riquezas de Cristo.”7

Conclusão

A mensagem de Paulo a Filemom nos dá a idéia de utilidade. Utilidade em tudo. Os cristãos são aqueles que de forma bondosa, e até silenciosa, são úteis ao mundo, mesmo que não sejam reconhecidos por isso.

A carta mostra que o amor cristão não é apenas um conjunto bem elaborado de teorias, desprovido de ações práticas. Mas, lança-nos no âmago da questão, mostrando não só como devemos amar ao próximo, mas, acima de tudo, por que devemos amá-lo.

O amor e a utilidade estão até nos nomes de seus principais personagens. Filemom significa “amoroso, temo, afetuoso”. Onésimo significa “aproveitável, útil”.

O cristianismo necessita de homens e mulheres que sejam verdadeiros e honestos como Paulo a fim de que sejam vistos imitadores de Cristo no trato das questões sociais, tais como foram Onésimo, Filemom e a Igreja daquele tempo.

Quanto ao resultado final do pedido de Paulo, não há uma resposta completa. Todavia, Inácio, um dos mártires cristãos, em sua Epístola ad Ephesum, capítulo 1, fala de Onésimo como o bispo de Éfeso.8

Se isso for verdade, permanece a lição de que o cristão espera a gloriosa volta do Senhor, enquanto vive no mundo uma vida de amorosa utilidade, ajudando a mudar uma sociedade corrompida.