Dr. Alberto Treiyer

I. A Contaminação do Santuário e os Ritos de Purificação

A purificação do santuário prescrita para o Dia da Expiação pressupõe uma contaminação: as impurezas (tm’), as transgressões (ps’) e os pecados (btt’t) do povo de Israel (Lev. 16:16, 19 e 33; cp. 21:22 — ’mn). O problema consiste, porém, em saber como esses pecados contaminavam o santuário, a própria natureza dos pecados e o papel do ritual de sacrifícios designados para sua purificação.

Os autores nem sempre têm estado de acordo nestes aspectos. Assim, alguns acham que os israelitas contaminavam o santuário com seus pecados quando eles iam ao templo.1 Outros acreditam que a contaminação do santuário era insinuada nos textos que falam da contaminação da terra ou do acampamento dos israelitas, pois o santuário se encontrava “no meio deles”.2 Por conseguinte, o santuário podia ser contaminado sem a presença física do povo no santuário. Fala-se de uma contaminação “aérea”, “dinâmica”, que contamina o santuário “de uma maneira magnética”3 ou mesmo demoníaca.4 Há também os que pensam que os sacrifícios5 ou a condição ritual dos israelitas6 tinham uma parte a desempenhar.

No tocante à categoria dos pecados que deviam ser eliminados do santuário no Dia da Expiação, alguns acham que se tratava de pecados deliberados,7 de pecados de ignorância,8 ou dos dois.9 Há também os que crêem que em Kippur — em contraste com a purificação individual através do ano — eram os pecados da nação ou da congregação inteira que deviam ser expiados.10 Quanto aos pecados anuais, cumpre destacar que, segundo certo número de autores, os pecados expiados no Dia da Expiação não tinham sido purificados durante o ano,11 embora fossem acumulados no santuário.12 Segundo outros, o santuário era purificado dos pecados perdoados durante o ano.13 A função do ritual no Dia da Expiação é, pois, interpretada diferentemente, conforme a posição assumida nos pontos que acabamos de mencionar, e também de acordo com a compreensão que se tem da significação do sacrifício.

Talvez nos admiremos do pouco lugar que o assunto da contaminação do santuário ocupa entre os eruditos. Por vezes, nem sequer se referem a ele. Por outro lado, se levarmos em conta a diversidade de posições assumidas sobre este ponto por aqueles que pelo menos mencionam o fato de vez em quando, a razão dessa falta de interesse parece ser evidente: eles preferem ser prudentes e não alongar-se sobre o que não é claro; ou, então, recorrem ao método da crítica histórico-literária para descarregar o que acham confuso e mal compreendido pelos autores bíblicos.14

Conquanto creiamos que este assunto, em seus aspectos essenciais, seja bem claro na Bíblia, devemos admitir que uma resposta a cada posição assumida não pode ser tratada ligeiramente. Com efeito, para não cair em parcialidade, será necessário levar em conta os múltiplos aspectos que intervinham na contaminação e na purificação do santuário.

Descobrimos assim que a vida nacional e individual, e a vida religiosa, se encontram estreitamente entrelaçadas na Bíblia. Por esta razão, o estado do povo em relação ao templo, e o estado do templo em relação ao povo, repercutiam em cada aspecto das atividades dos homens. Essa relação entre o povo e o templo, e vice-versa, fazia com que as atividades do culto israelita só pudessem ser compreendidas sob um verdadeiro sistema paradoxal, algo normal e corrente na mente oriental. Ao passo que do povo provinha uma corrente de pecado e de contaminação, em direção ao santuário, deste último provinha uma corrente de purificação e de santificação, em direção ao povo.15 Além disso, um povo impuro devia procurar manter a pureza do templo e, ao mesmo tempo, só do templo ele obteria sua completa purificação.

Como podia ocorrer tudo isso? Quais era os elementos rituais que alimentavam esse paradoxo, salvaguardando assim a manutenção do culto e a existência nacional? Tendo sempre em conta esta realidade, passaremos agora à procura de elementos bíblicos que nos permitam compreender melhor o fundamento ideológico sobre o qual Levítico 16 e o Dia da Expiação em geral estavam situados.

II. A Contaminação do Santuário

Não podemos deter-nos aqui para considerar as diversas expressões e palavras utilizadas no Antigo Testamento para descrever a impureza.16 Diremos simplesmente que a linguagem usada na Bíblia para expressar tanto a noção de contaminação como a de purificação é verdadeiramente rica e significativa.17 Portanto, quando for necessário, salientaremos o valor do termo empregado na língua original.

Uma rápida olhada aos textos do Antigo Testamento que falam da contaminação do santuário nos permite fazer uma classificação importante, em relação a três consequências possíveis: a supressão do culto e a eventual destruição do templo, a pena de morte dos responsáveis e a purificação do povo e do santuário. Estes três resultados na contaminação do templo israelita tinham causas que revelavam uma situação diferente do povo em relação ao santuário. Por conseguinte, o grau de contaminação do santuário e a natureza dos pecados cometidos não podiam ser considerados no mesmo nível em cada uma dessas circunstâncias.

1. A Profanação do Templo e a Supressão do Culto

A vida do templo dependia do desejo e da necessidade do povo de acercar-se dele, quer para pedir o perdão divino, quer para agradecer a Deus pelas bênçãos concedidas, enfim, para adorá-Lo, etc. A apostasia podia, pois, desembocar entre outras coisas no descrédito total do templo de Jeová e, portanto, na supressão dos serviços religiosos (II Crôn. 29:6 e 7; cf. v. 3). Ademais, o abandono do culto de Jeová e a consequente perda da percepção da santidade divina podiam até levar ao extremo de introduzir objetos de culto pagãos no templo, tornando assim a casa divina abominável aos olhos de Deus (Jer. 7:30; 32:34).

Nessas ocasiões, a presença divina encontrada no Seu santuário e que serviria de garantia, bênção e proteção para o povo, como que ficava adormecida ou escondida de Israel.18 (Saí. 44:23 e 24). Deus parecia não reagir, assim, de Seu santuário, às abominações de Seu povo, por um lado (Sal. 10:1, 4-7 e 11-13), e não intervir para salvá-lo dos males resultantes, por outro lado (Deut. 31:17 e 18; Isa. 54:7 e 8; 64:7; Jer. 33:5; Ezeq. 39:23 e 24). Se Israel se arrependia em tais circunstâncias de apostasia geral, a casa de Deus devia ser reparada (II Crôn. 29:3, 5 e 14-19) e o culto de Deus restabelecido por meio de ritos praticados somente no altar exterior — o dos holocaustos.19 Se isto não ocorria, Deus acabava entregando Seu povo e o santuário em mãos inimigas (II Crôn. 36:14-19; Ezeq. 7:21, 22 e 24; 25:3; Sal. 74:7.)

A descrição desse estado insuportável no qual Israel caiu em determinado momento é bem explícita nos livros proféticos e históricos (Esd. 9:3-5 e 11-15; Jer. 18:9-17; Lev. 18:24-30, etc.). Portanto, o que contamina Jerusalém e profana as coisas santas (hilleleu-qodes, Sof. 3:1-4) é um estado de rebelião em que Deus não pode fazer mais nada. Deus abandona a geração que não escuta Sua voz, que não admite “correção” (Jer. 7:28-30), e que contamina Sua casa, pondo ah as suas abominações (nisikkusyhm). (Ver Jer. 7:30; 32:34). A multiplicação das transgressões (lmi’ayl-ma ‘al) e das abominações (to abot) contaminou (wayetamme’o), pois, a casa de Jeová (II Crôn. 36:14), “até que subiu a ira do Senhor contra o Seu povo, e não houve remédio al-gum” (’ad-le’en mareppe’). V. 16.

Sempre sob este aspecto, tenhamos em mente estes fatos:

a) A contaminação do santuário, nesses casos, está relacionada com irremediáveis situações de apostasia que exigiam o castigo divino (II Crôn. 36:14 e 16; Jer. 7:30; cf. vs. 32-34; Jer. 32:34, cf. vs. 28 e 29; Ezeq. 5:11; 23:38 e 39, cf. vs. 46-48; implicitamente, também em II Crôn. 29:5, cf. vs. 8 e 9).

b) Esse castigo divino podia atingir não só os rebeldes, mas — em caso extremo — o próprio templo. Assim, o santuário, contaminado primeiramente pelos israelitas, era duplamente profanado por seus inimigos, numa invasão (Sal. 74:7; 79:1; Ezeq. 7:21, 22 e 24; 24:21; 25:3; Lam. 2:2; Dan. 11:31).

c) O culto interrompido por uma apostasia ou pela destruição do templo caído em mãos de estrangeiros podia, no entanto, ser restabelecido depois de arrependimento e de reparações (reconstrução) do templo (II Crôn. 29; Esd. 6).20

d) O restabelecimento dos serviços do culto que deste modo haviam sido interrompidos jamais ocorria no interior do tabernáculo. Constatamos somente ritos de sangue que eram praticados, nessas ocasiões, no altar do pátio (II Crôn. 29:22 e 24), como nos casos registrados no Pentateuco, de consagração ou inauguração do santuário (Êxo. 29:12, 36 e 37; Lev. 8:15; 9:9 e 15; cf. Ezeq. 43:18, 20, 22 e 26; II Crôn. 29:21, 22 e 24, etc.).

Este último aspecto da vida de Israel é significativo, pois nos leva a distinguir entre dois tipos de cerimônias relacionadas com o santuário: um que projeta a santificação e a consagração dos homens e do templo no quadro da inauguração ou restauração do culto; o outro, que constituía a conclusão de um ritual e de um culto que não tinha sido, necessariamente, interrompido durante o ano litúrgico.21

Temos de levar em conta, porém, que essa relação entre a profanação do templo e a supressão do culto que acabamos de considerar corresponde a um estado de rebelião e apostasia geral em Israel. É necessário considerar também como o Antigo Testamento projeta a contaminação individual ou minoritária do santuário e as consequências que tinha sobre o culto e o remanescente fiel do povo de Deus.

Referências

1. A. A. Bonar. A Commentary on the Book of Leviticus (Londres. 1875), pág. 308; C. F. Keil, Leviticus (Leipzig, 1878), pág. 117; A. Cohen, The Five Books of Moses with Haphtaroth (Londres. 1977), pág. 708; J. H. Hertz, The Pentateuch and Haftorahs (Londres. 1978), pág. 482; A. B. Levine, In the Presence of the Lord (Leiden. 1974). pág. 74; G. J. Wenham, The Book of Leviticus (Eerdman’s Publishing Company. 1979), pág. 228.

2. L. Moraldi, Espiazione sacrificale e riti espiatori nell’ambiente biblico e nell’Antico Testamento, AB, 5 (Roma, 1976), pág. 235; J. Milgrom, “Two Kinds of HATTA’T”, em VT 26 (1976), págs. 334 e 335.

3. J. Milgrom. “Israel’s Sanctuary: The Priestly Picture of Dorian Gray”, em RB 48 (1976), pág. 393: cf. H. Ch. Brichto, “On Slaughter and Sacrifice, Blood and Atonement”, em HUCA 47 (1976), pág. 29.

4. A. B. Levine, op. cit.. págs. 77-91.

5. G. F. Hasel, “Studies in Biblical Atonement I: Continuai Sacrifice, Defilement. Clean-sing and Sanctuary”, em The Sanctuary and the Atonement (Washington. 1981), pág. 93.

6. K. Hruby, “Le Yom Ha-Kippurim ou Jour de TExpiation”, em OS 10 (1965), pág. 57. Este autor chega a essa conclusão mais de Zac. 5 que de Lev. 16, e confunde seguidamente (J. Morgensten, “Two Prophecies from 530-516 B. C.”. em HUCA 22, 1949) a purificação do templo no Dia da Expiação com sua purificação por ocasião de sua dedicação; M. Noth, Das Dritee Buch Moses, Leviticus (Gottingen, 1978 — primeira edição. 1962), pág. 106; K. Elliger, Leviticus (Tübingen, 1966), pág. 215; N. H. Snaith. Leviticus and Numbers (Londres. 1967), pág. 114; K. Aartun, “Studien zum Ge-setz Über den grossen Versöhnungstag Lev. 16 mit Varianten Ein ritualgeschichtlicher Bei-trag”, StTh 34 (1980), pág. 103: “def allgemeinen kultischen Unreinheit…”.

7. L. Ligier, Péché d’Adam et Péché du Monde (Aubier, 1960), pág. 95. Algumas declarações talmúdicas vão nessa mesma direção: Yoma 86b. Ver também J. Milgrom, Cult and Conscience (Leiden. 1976), págs. 118, 127 e 128; “Sacrificies and Offerings, OT”. em IDBS (1976), pág. 767; “Atonement, Day of”, em IDBS (1976), pág. 83; “Atonement in the OT”, em IDBS (1976), págs. 78 e 79.

8. S. G. Gayford. “Leviticus”, em A New Commentary on Holy Scripture (Society for Promoting Christian Knowledge, 1937), págs. 114 e 115; O. T. Allis. Leviticus (Londres. 1972), pág. 154; D. Hoffmann, Das Buch Leviticus (Berlim, 1905), pág. 448; P. H. Schaff, “Day of Atonement”, em A Religious Encyclopaedia (Nova Iorque, 1891), pág. 167.

9. Mischna, Sebuot 1:6; ver citações de Cohen. Herts e Ligier já mencionadas.

10. A. R. Fausset, “Day of Atonement”, em Bible Dictionay (Michigan, 1975), pág. 62; cf. Hoffmann, op. cit., pág. 448; Noth, op. cit., pág. 106.

11. T. K. Cheyne, “Day of Atonement”, em Encyclopaedia Biblica. I. (Londres. 1899), col. 385; S. H. Kellog, The Book of Leviticus (Nova Iorque, s/d), pág. 237; J. Milgrom, “Sacrifices…’. em IDBS (1976), pág. 766.

12. R. Song 1:5, citado por J. Milgrom. “Day of Atonement”, em EJ, V (1971), col. 1.382; Cult and Conscience…, pág. 128.

13. G. F. Oehler, Theologie des Alten Testaments (Stuttgart. 1891), pág. 498; W. Müller, “Day of Atonement”, em The International Standard Bible Encyclopaedia, 1 (Eeardmans Publishing, 1980); G. F. Hasel, “Studies in Biblical Atonement II: The Day of Atonement”, em The Sanctuary and the Atonement (1981), pág. 119.

14. Este é o caso da maior parte dos trabalhos que têm sido feitos desde a segunda metade do século passado, sobre o assunto do Dia da Expiação. Falando sobre o problema de determinar a natureza — voluntária ou involuntária — de alguns pecados possíveis de ser expiados — de hatta’t e asam — um autor conclui: “Essas confusões e essas incertezas podem ser parcialmente resolvidas por uma crítica literária que lhes atribua certas alterações do texto” (R. de Vaux, Les Institutions de FAT. II. Paris. 1967, pág. 299). Uma explicação semelhante é dada a respeito do Dia da Expiação: “Todos os pormenores rituais descritos em Levítico 16 estão, aliás, longe de ser claros; os processos redacionais sucessivos provavelmente misturaram as coisas” (K. Hruby, loc. cit., pág. 60). Podemos ver assim que o espírito histórico-crítico tem desanimado toda iniciativa para buscar compreender a significação teológica em conjunto da contaminação e da purificação do santuário, à luz dos textos bíblicos em questão.

15. Sem falar em paradoxo. A. A. Ibañez (El Levítico. Vitória. 1974, págs. 139 e 140) diz o seguinte: “Javé comunica Sua santidade ao santuário e os ritos celebrados nele santificam os sacerdotes e o povo. No entanto, outra concepção (cf. Lev. 15:31; Núm. 19:13 e 20; Ezeq. 45:18) supõe que a impureza dos sacerdotes e do povo é comunicada ao santuário.”

16. Diversos autores fizeram um estudo sobre as diferentes nuanças etimológicas que a língua hebraica tem no tocante a este assunto; por exemplo: W. Paschen, Rein und Unterin. Untersuchung zur biblischen Wortgeschichte (München, 1970), págs. 27 e 28; G. F. Hasel, loc. cit., pág. 92; A Treiyer. Le Jour des Expia-tions et la Purification du Sanctuaire (Tese de doutorado em Teologia. Strasbourg. 1982), págs. 114-118.

17. Aqui podemos simplesmente mencionar os termos principais: tm, sqs, niddah. g’d, ha-nepah (hanep). piggul. hll.

18. Embora a presença divina sempre permanecesse oculta aos olhos do povo (cf. I Reis 8:12), detrás do véu do Lugar Santíssimo do Templo, ela se ocultava ainda mais quando não respondia aos clamores do povo. (Ezeq. 39:23).

19. Nestes casos, os ritos de sangue são sempre efetuados fora dos lugares Santo e Santíssimo (Êxo. 29:12, 36 e 37; Lev. 8:15; 9:9 e 15; Ezeq. 43:18, 20, 22 e 26; II Crôn. 29:21, 22 e 24). Ver também I Reis 8:62-64; II Crôn. 7:7 e 9, onde a transferência do culto do tabernáculo para o templo e a dedicação deste último são também efetuadas por meio de ritos e sacrifícios no altar do pátio.

20. Reparação ou reconstrução: II Crôn. 29:3-19; Esd. 6:15; Ezeq. 43:18; restabelecimento dos serviços do culto ou dedicação: II Crôn. 29:21-35; Esd. 6:17; Ezeq. 43:19-26. Esses ritos de reconsagração ou restabelecimento do culto devem estar, portanto, mais relacionados com Números 7:28 e 29 e Levítico 8 e 9, do que com Levítico 16, pois as semelhanças são maiores, não somente em razão do propósito e das circunstâncias, mas também do lugar em que são efetuados.

21. Em nossa tese já citada, dedicamos grande parte de dois capítulos para destacar pormenorizadamente essas duas diferenças fundamentais.

(Continua)